Sobre a importância dos quintais, cada vez mais desaparecidos e, com isso, as nossas raízes também.
sábado, 15 de abril de 2017
Desmatamento no Cerrado pode resultar na extinção de 1140 espécies nos próximos 30 anos
Combinação de políticas pode evitar extinções de proporções históricas projetadas para o Cerrado
Estudo coordenado por brasileiros, publicado na Nature Ecology and Evolution, mostra que o Brasil pode perder até 1140 espécies, entre elas, bromélias e Arara-Azul
Lychnophora humillima – Foto: Fernando M. Fernandes-lpr
O avanço do desmatamento no Cerrado poderá resultar na extinção de 1140 espécies de plantas nos próximos 30 anos, um número oito vezes superior a todas as espécies de plantas registradas como extintas desde 1500 em todo o mundo, mostra um estudo internacional coordenador por brasileiros publicados nesta quinta-feira, 23, na Nature Ecology and Evolution. Por outro lado, os autores demonstram que este quadro é evitável sem prejudicar a agricultura, e apontam para uma série de políticas públicas e privadas já em implementação ou desenvolvimento que, caso coordenadas e com foco neste objetivo, poderiam evitar o quadro de extinções projetado.
Segundo Bernardo Strassburg, coordenador do estudo, Diretor Executivo do Instituto Internacional para a Sustentabilidade e Coordenador do Centro de Ciências para a Conservação e Sustentabilidade do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da PUC-Rio, o Cerrado já perdeu praticamente metade de sua área, mas ainda reúne 4600 espécies de plantas que não existem em nenhum outro local do planeta. Se o ritmo do desmatamento continuar, daqui a 30 anos, o Cerrado ficará ainda menor, perdendo mais um terço do tamanho atual. Esse resultado será causado pelo desmatamento para a expansão da soja, cana de açúcar e pastagem. Nos últimos anos, o Cerrado já perdeu 88 milhões de hectares, 46% de sua cobertura nativa. Entre 2002 e 2011, as taxas de desmatamento na região (1% ao ano) foram 2,5 vezes mais altas do que na Amazônia.
Entre as espécies mais vulneráveis estão um fruto bem conhecido, o babaçu (Attalea brasiliensis), uma espécie de arnica (Lychnophora souzae e Lychnophora humílima), a canela-de-ema-gigante, da Serra do Cipó (Vellozia gigantea), uma espécie de sempre-viva (Actinocephalus cipoensis), além de várias bromélias e orquídeas. Entre os animais, as espécies que poderão desaparecer estão o Lobo-guará, Onça parda (Puma concolor), Tatu-canastra, Ariranha, Tamanduá-bandeira, Arara-Azul e a Anta. “O Cerrado brasileiro abriga uma coleção enorme de espécies únicas no mundo, que é a base deste bioma tão fundamental para a economia, segurança hídrica e energética do país. O que identificamos é que a progressão do desmatamento levará a um quadro de extinções de espécies de plantas em escala jamais registrada no mundo. Este quadro, irreversível e lamentável por si só por razões morais, teria impactos graves para a manutenção deste ecossistema fundamental para a economia e a sociedade brasileira”, diz ele.
É justamente na combinação de políticas públicas e privadas que reside o potencial maior para evitar o colapso do Cerrado. Os autores selecionam oito grandes áreas e políticas estratégicas já em implantação ou desenvolvimento pelo Ministério do Meio Ambiente e outro atores que, caso implementadas, financiadas apropriadamente e executadas com um foco também em evitar as extinções do cerrado, poderiam promover a conciliação entre a produção e a conservação. É o caso, por exemplo, da Moratória da Soja, uma história de sucesso na Amazônia, onde praticamente eliminou a conversão direta de floresta para a soja. Caso fosse estendida ao Cerrado, como defendido publicamente pelo Ministro de Meio Ambiente, Sarney Filho, seria um gigantesco passo para assegurar um futuro sustentável para a região. A demarcação de áreas protegidas, financiamento para conservação (inclusive relacionados às mudanças climáticas) e um foco em identificar áreas prioritárias para a conservação, restauração e expansão agrícola são outras medidas essenciais.
“Não é preciso reinventar a roda, as políticas necessárias já existem e foram usadas com sucesso na Amazônia no passado recente. O necessário agora é ter também como foco prioritário evitar este quadro preocupante. Há espaço suficiente para conciliar o aumento da produção agrícola e a conservação e restauração do que sobrou do Cerrado. Não é simples, mas com um esforço concentrado dos atores públicos e privados envolvidos, e a pressão adequada da sociedade para que as políticas tenham o apoio e o financiamento necessários, o Brasil pode reverter um gigantesco desastre em uma grande história de sucesso”, explica Strassburg.
A baixa proteção formal – menos de 10% do Cerrado é coberto por Unidades de Conservação – e alta aptidão agrícola colocam os remanescentes de cerrado como a grande fronteira de expansão do agronegócio. Aliado a isso, a região ainda atrai poucos investimentos diretos em conservação, embora seja fundamental para os recursos hídricos e até para as metas nacionais e internacionais de combate as mudanças climáticas: o desmatamento projetado levaria a emissão de 8,5 bilhões de toneladas de CO2, o equivalente a duas vezes e meia tudo o que o Brasil deixou de emitir com a grande queda do desmatamento da Amazônia entre 2005 e 2013.
“Esses números colocariam em risco a reputação internacional do Brasil como líder em economia verde ou desenvolvimento sustentável. Colocaria também o agronegócio brasileiro como responsável por uma das maiores tragédias já registradas para a biodiversidade mundial, justamente em um momento onde os principais mercados consumidores estão construindo metas de exclusão de cadeias associados ao desmatamento e degradação ambiental”, complementa Strassburg.
Os pesquisadores mostram que é possível conciliar todo o aumento previsto de soja, cana e pecuária em áreas já desmatadas, e ainda liberar áreas para a recuperação da vegetação nativa exigida no código florestal. Aumentando a produtividade das áreas já dedicadas a pecuária de 35% para 61% de seu potencial sustentável, seria possível encaixar os mais de 15 milhões de hectares de expansão de soja e cana e ainda 6,4 milhões de hectares para a recuperação da vegetação nativa. “A chave para destravar um future sustentável para o Cerrado está no potencial para aumentar a taxa de lotação das pastagens, abrindo espaço para a expansão prevista de culturas agrícolas e ao mesmo tempo poupando e restaurando ambientes naturais para a notável biodiversidade da região. Com um apoio politico robusto, este desastre pode ser evitado”, diz o Professor Andrew Balmford da Universidade de Cambridge, e co-autor do estudo.
“O aumento da produtividade da pecuária pode ser feito através das técnicas que já existem como pastejo rotacional ou suplementação alimentar. Porem vários obstáculos, como escassez de mão de obra e aspectos financeiros, devem ser superados para acompanhar os produtores nessa transição” complementa Agnieszka Latawiec, Diretora Executiva do Instituto Internacional para Sustentabilidade e Coordenadora do Centro para Ciência de Conservação e Sustentabilidade da PUC-Rio.
Esta recuperação da vegetação nativa tem papel fundamental para evitar o colapso: se for realizada em áreas prioritárias para a biodiversidade, poderiam evitar até 83% das extinções projetadas. “A nova Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa, criada por decreto presidencial no mês passado, pode auxiliar na promoção desta restauração em áreas prioritárias”, diz Carlos Alberto de Mattos Scaramuzza, Diretor de Conservação de Ecossistemas do Ministério do Meio Ambiente e um dos autores do artigo.
Espécies que poderão ser extintas no Cerrado até 2030, caso o desmatamento continue no ritmo atual (Foto cedida ao CNCFlora por uma licença de uso de imagem. Crédito nas foto)
Flora:
Palmito
Araucária
Jacarandá-da-bahia (Dalbergia nigra)
Vellozia gigantea (canela-de-ema-gigante, da Serra do Cipó)
Podocarpus barretoi e Podocarpus brasiliensis (gimnospermas, parentes dos pinheiros, e muito ameaçados)
Actinocephalus cipoensis (uma espécie de sempre-viva)
Lychnophora souzae e Lychnophora humílima (espécie de arnica)
Animais:
Lobo-guará
Onça parda (Puma concolor)
Tatu-canastra
Ariranha
Tamanduá-bandeira
Arara Azul
Anta
Fruto
Babaçu (Attalea brasiliensis)
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O artigo intitulado “Moment of truth for the Cerrado hotspot” foi escrito por pesquisadores do Brasil (Centro de Ciências para Conservação e Sustentabilidade do Rio, Departamento de Geografia e Meio Ambiente, PUC-Rio; Instituto Internacional para a Sustentabilidade; Universidades Federais do Rio de Janeiro (UFRJ), Minas Gerais (UFMG) e Goiás (UFG), do Centro Nacional de Conservação da Flora e da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável), do Reino Unido (Universidade de Cambridge) e da Suíça (União Internacional para a Conservação da Natureza;
Autores:
Bernardo B. N. Strassburg, Thomas Brooks, Rafael Feltran-Barbieri, Alvaro Iribarrem, Renato Crouzeilles, Rafael Loyola, Agnieszka E. Latawiec, Francisco J. B. Oliveira Filho, Carlos A. de M. Scaramuzza, Fabio R. Scarano, Britaldo Soares-Filho e Andrew Balmford
Colaboração de Claudia Moreira, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 24/03/2017
Jovens agricultores do Piauí utilizam energia solar para cultivar produtos biofortificados
Com o objetivo de apresentar uma solução inovadora, que possibilite ao jovem rural uma fonte de renda segura que o mantenha no campo, a Embrapa, por meio do projeto Biofortificação de Alimentos (Biofort), implantou, em fevereiro de 2017, a primeira Unidade de Segurança Produtiva Solar, em Santo Inácio, na região Sul do Piauí.
Equipe na área de irrigação por meio de energia solar. Foto: Embrapa
Essas Unidades são pequenas áreas para cultivo em que são utilizadas todas as tecnologias necessárias para reduzir o risco de perda da produção em decorrência de alterações climáticas ou problemas no manejo.
O jovem produtor Henrique Lima César, egresso de Escola Família Agrícola, condição prioritária para a escolha, é um dos beneficiados com a implantação de uma Unidade de Segurança Produtiva Solar. Morador da comunidade Malhada do Juazeiro, em Santo Inácio, ele foi selecionado por meio da observância de aptidão e dedicação à produção agrícola e se a área em que produz apresenta riscos que impedem a efetiva produção agrícola, tais como ser em área de risco climático, acesso restrito a energia elétrica e composição familiar apta à produção agrícola.
Na área escolhida, o produtor tem água disponível para o cultivo irrigado por meio de gotejamento. O bombeamento da água é feito por meio de energia solar e ele utiliza tecnologias da Embrapa relacionadas a espaçamento e planta cultivares de feijão-caupi, batata-doce e macaxeira biofortificadas, com maior qualidade e melhor produtividade. “É um trabalho muito bom, pois tenho água durante dez horas por dia, o que dá uma média de 50 litros de água por dia para utilizar na irrigação. Com o kit de energia solar já estou ampliando meu projeto com mais produtos biofortificados e ampliando minha renda”, comenta.
A iniciativa pioneira na região é fruto de uma parceria entre a Embrapa, Fundação Dom Edilberto, Centro Educacional São Francisco de Assis (Cefas), Escola Família Agrícola de Santo Inácio e a Codevasf. Na ação, cada instituição parceira tem papel fundamental para a obtenção de resultados positivos. A Fundação Dom Edilberto realizou a perfuração de um poço tubular; a Escola Família Agrícola (EFA) promove a capacitação de jovens produtores; o Biofort propiciou o conjunto de bombeamento solar e as cultivares de batata-doce, feijão e macaxeira biofortificados; a Codevasf cedeu o kit de irrigação por gotejamento e o CEFAS promove a assistência técnica e acompanhamento ao produtor. Com a ação conjunta das instituições, o jovem produtor está satisfeito com a oportunidade, pois agora tem a garantia de que terá a colheita do que plantou.
De acordo com Marcos Jacob Almeida, analista da Embrapa Meio-Norte e articulador da ação, essa parceria entre as instituições visa demonstrar e promover um modelo produtivo capaz de gerar sustentabilidade econômica, social e ambiental, com potencial de tornar-se uma política pública em toda a região. “A sucessão familiar tem sido a maior ameaça à existência da agricultura familiar, os jovens estão buscando outras atividades devido aos elevados riscos para se produzir sob mesmas condições que seus pais trabalham. Sem que haja atrativos no meio rural como mecanismos que reduzam os riscos na produção, a tendência é chegarmos à condição futura de uma agricultura sem agricultores. Essa iniciativa é importante para que o jovem possa produzir e se manter no campo”, destaca Almeida.
Por Eugênia Ribeiro, jornalista
Embrapa Meio-Norte
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 04/04/2017
Plantas brasileiras recém-descobertas no Espírito Santo correm perigo de extinção
Parte de sua área de ocorrência situa-se em áreas florestais desprotegidas do Espírito Santo
Bertolonia duasbocaensis. Foto: Renato Goldenberg
O Brasil é reconhecido pela riqueza de sua flora. São quase 50 mil espécies já identificadas e o número não para de crescer. Duas novas plantas da família Melastomataceae (a mesma das quaresmeiras e manacás-da-serra), foram descobertas recentemente no Espírito Santo: Bertolonia duasbocaensis e Bertolonia macrocalyx. Mesmo recém-descritas, ambas estão criticamente ameaçadas de extinção, se considerados os critérios da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN). Apesar de serem espécies com necessidades específicas, o pesquisador responsável conta que algumas unidades foram encontradas fora de áreas de conservação.
O trabalho de identificação e classificação das plantas é tão complexo e longo quanto o nome do projeto do qual faz parte: “Diversidade da flora vascular e status de conservação das espécies endêmicas em três unidades de conservação da Floresta Atlântica Montana no estado do Espírito Santo”. Este é mais um dos quase 1.500 projetos financiados pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Desde que foi criada, em 1991, a Fundação já contribuiu com a descoberta de mais de 50 espécies de vegetais, por meio deste tipo de apoio.
Renato Goldenberg, pesquisador responsável pela descoberta e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que as espécies foram encontradas em 2009, mas só agora puderam ser descritas. “A partir de então, tivemos que comparar essas duas plantas com as outras espécies já identificadas do gênero Bertolonia, cerca de 15, para termos certeza de que eram novas. Tivemos que acessar materiais de outros herbários, inclusive de fora do Brasil”. A publicação do artigo com as informações confirmadas sobre as plantas aconteceu em novembro de 2016, no PeerJ, publicação online especializada em ciências biológicas e médicas.
Tanto a Bertolonia duasbocaensis (cujo nome remete à Reserva de Duas Bocas) quanto a Bertolonia macrocalyx, são tão desconhecidas que não têm nomes populares. “Essas plantas são pequenas, com folhas de formato arredondado e um fruto triangular”, descreve Goldenberg. O professor ressalta que elas precisam de condições específicas para sobreviver, como locais muito úmidos em barrancos e fundos de grotões – cavidades formadas em relevos desnivelados –, sempre sob cobertura florestal densa.
Bertolonia macrocalyx. Foto: Cláudio N Fraga
“Se a floresta não estiver bem preservada, essas são as primeiras plantas que desaparecem”, destaca o pesquisador. “Alguns exemplares foram encontrados na Reserva Ecológica de Duas Bocas, em Cariacica, que é uma área protegida. Porém, outras estavam em regiões alteradas nos arredores da reserva, e isso é incrível”, exclama. Goldenberg comenta que a Mata Atlântica no Espírito Santo já foi severamente agredida e acredita que outras plantas tenham desaparecido antes de serem descobertas na região.
Malu Nunes, diretora executiva da Fundação Grupo Boticário, destaca a importância de projetos como esse. “Conhecer as diferentes espécies da flora do nosso país é o primeiro passo para conservá-las. Esse tipo de descoberta nos mostra o quanto a nossa biodiversidade é rica e o quão importante é investir no meio científico”, conclui.
Colaboração de Bruna Habinoski, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 03/04/2017
Vegetação exuberante da Amazônia corre risco de ser substituída por gramíneas
Vegetação exuberante da Amazônia corre risco de ser substituída por gramíneas. Entrevista especial com Henrique Barbosa
IHU
Os prognósticos das últimas pesquisas sobre a Amazônia indicam que, futuramente, o novo regime de clima da floresta poderá ser mais parecido com o do Cerrado, por conta de dois fatores: o aumento do desmatamento e os efeitos das mudanças climáticas, informa o físico Henrique Barbosa à IHU On-Line. “Com as mudanças climáticas, esperamos que a temperatura na Amazônia aumente e as chuvas diminuam. Isso também vai causar um aumento nos períodos de seca, e as secas ficarão mais secas”, diz na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Coautor de um estudo internacional que analisa as consequências da seca e do desmatamento na Amazônia, o pesquisador explica que, se o regime de clima da floresta for alterado, “haverá uma substituição da vegetação exuberante da Amazônia por uma vegetação mais rala, com gramíneas e árvores espaçadas, ou seja, a vegetação nessa região será mais parecida com a atual vegetação do Cerrado”. As mudanças na vegetação, por sua vez, impactarão diretamente o ciclo hidrológico da Amazônia, e como consequência haverá uma diminuição das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do país.
“Chove muito na Amazônia e uma das razões disso é que a floresta emite muito vapor de água para a atmosfera. Mas quando se troca a vegetação nativa por outra – ao desmatar e trocar a vegetação nativa por soja ou pastagem, por exemplo -, diminui-se sobremaneira a quantidade de água que essa vegetação devolve para a floresta”, frisa. E adverte: “O que nosso estudo faz é alertar para o perigo de que essas mudanças que estamos impondo à Amazônia podem estar causando um processo de savanização do bioma, mesmo naquelas regiões que não foram perturbadas”.
Na avaliação de Henrique Barbosa, manter uma floresta “heterogênea” é fundamental para diminuir os efeitos da seca. “Se a vegetação for toda igual, a floresta como um todo responde de maneira igual às mudanças de chuva e de temperatura. Isso significa que, quando a temperatura for alterada de modo a causar efeitos na vegetação, toda a floresta sentirá esses efeitos, ou seja, a floresta inteira será perturbada de uma hora para a outra. (…) Isso demonstra que a própria biodiversidade da floresta, especialmente a vegetal, é importantíssima para manter a estabilidade dela”.
Henrique Barbosa | Foto: USP
Henrique Barbosa é doutor em Física pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Entre 2004 e 2008 atuou como pesquisador assistente no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe e atualmente leciona no Instituto de Física da Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as evidências ou hipóteses que indicam que a Amazônia pode entrar num ciclo de desmatamento e seca nos próximos anos?
Henrique Barbosa – Existem evidências científicas de como a floresta interage com a atmosfera, ou seja, de como a atmosfera e a biosfera interagem, e quais são os mecanismos de retroalimentação que existem entre elas. Nesse panorama, uma das coisas que é clara para os cientistas é que a cobertura de vegetação que encontramos em uma localidade, por exemplo, na floresta tropical úmida da Amazônia ou na Caatinga, para citar dois exemplos, pode não ser estável. O que isso significa? Imagine um sistema com mais de um ponto de equilíbrio. Os dois sistemas de equilíbrio existentes são uma vegetação parecida com o Cerrado e outra, com a Amazônia. O estado em que esses sistemas de equilíbrio vão se encontrar dependerá das condições climáticas, ou seja, dos regimes de precipitação e da variação de temperatura.
Pontos de equilíbrio
Vou explicar isso dando o seguinte exemplo: é como se tivéssemos uma caixa de papelão numa sala. Quando empurramos essa caixa, ela é afastada, mas se mantém na mesma posição. No entanto, se a empurrarmos demais, ela vai tombar de lado e vai encontrar outra posição de equilíbrio. O equilíbrio da vegetação e dos biomas ocorre mais ou menos desse modo, porque os biomas têm mais de um ponto de equilíbrio, dependendo da distribuição da vegetação e, especialmente, da temperatura e da umidade típica de cada região. Então, se perturbarmos demais essas duas variáveis climatológicas – temperatura e umidade -, o tipo de vegetação de determinado bioma pode ser alterado.
As evidências que temos são de que a Amazônia teve dois status de equilíbrio: um com temperaturas mais altas e menos precipitação, no qual a vegetação era muito mais parecida com a do Cerrado, e outro com bastante chuva, com temperaturas mais amenas e sem grande variabilidade, que é o que se tem hoje na Amazônia.
Ciclo de desmatamento e seca: Cerrado se expandirá sobre a Amazônia
Fiz essa explicação introdutória para dizer, então, o que é esse ciclo de desmatamento e seca, o qual foi apontado em nosso estudo. Uma das questões que abordamos no estudo foi tentar identificar e quantificar a importância dos mecanismos de retroalimentação entre a floresta e a atmosfera.
Quando o homem emite mais carbono para a atmosfera, aumenta o efeito estufa e entramos nesse processo de mudanças climáticas antrópicas, causadas pelo homem. E com as mudanças climáticas, esperamos que a temperatura na Amazônia aumente e as chuvas diminuam. Isso também vai causar um aumento nos períodos de seca, e as secas ficarão mais secas. Portanto, considerando essas possibilidades, é mais provável que o novo regime do clima seja parecido com o do Cerrado. Isso significa que nas regiões de fronteira entre a Amazônia e o Cerrado, à medida que as árvores forem morrendo e novas forem nascendo, haverá uma substituição da vegetação exuberante da Amazônia por uma vegetação mais rala, com gramíneas e árvores espaçadas; ou seja, a vegetação nessa região será mais parecida com a atual vegetação do Cerrado.
Por conta das mudanças climáticas, há uma chance maior de que a vegetação típica do Cerrado domine o espaço da Amazônia
Esse não é um processo que acontece da noite para o dia, vai ocorrer no tempo de vida das plantas. Por conta das mudanças climáticas, há uma chance maior de que a vegetação típica do Cerrado domine o espaço da Amazônia, e, à medida que o desmatamento continuar aumentando na região, esse quadro será acelerado.
Desmatamento interfere no ciclo de chuvas
Chove muito na Amazônia, e uma das razões disso é que a floresta emite muito vapor de água para a atmosfera. Mas, quando se troca a vegetação nativa por outra – ao desmatar e trocar a vegetação nativa por soja ou pastagem, por exemplo -, diminui-se sobremaneira a quantidade de água que essa vegetação devolve para a floresta.
De onde vem essa água? Sempre do oceano e, no caso brasileiro, do oceano Atlântico, próximo à costa do Pará. Essa água evapora do oceano, é carregada pelos ventos, entra por cima do continente e chove. Como as árvores da Amazônia puxam muito a água que está no solo e fazem a respiração, elas acabam emitindo bastante vapor de água para a floresta. Então esse vapor de água que as árvores emitem se junta com o que sobrou de vapor de água na atmosfera depois da primeira chuva; todo esse vapor de água continua sendo carregado pelos ventos, e vai chover novamente mais para frente.
É justamente por causa da quantidade de água que a Amazônia emite para a atmosfera, que há uma grande quantidade de chuvas na região. Se a vegetação da Amazônia fosse diferente, ou seja, composta de vegetações que não emitissem tanta precipitação para a atmosfera, acabaria secando o ar que vem do oceano e só choveria nas regiões próximas da costa. Entretanto, como as árvores da Amazônia têm uma evapotranspiração muito grande, elas conseguem sustentar esse ciclo de vapor de água, e a vegetação faz essa reciclagem do vapor de água que veio do oceano. Se a atual vegetação da Amazônia for trocada por pastagem, vai chover bastante, mas a água, ao invés de ser devolvida para a atmosfera, correrá para os rios e irá embora.
Então, quando desmatamos uma certa região e trocamos uma floresta por pastagem, a região será afetada como um todo e isso vai gerar implicações em outras regiões. Nesse caso, tanto a Amazônia quanto o Pantanal e o Sudeste serão afetados, porque a nova vegetação não vai mais ser capaz de emitir tanto vapor de água para a atmosfera, e com isso vai diminuir a precipitação, mesmo numa região que nunca teve sua vegetação alterada. Então, se perturbarmos um pedaço da floresta, consequentemente perturbaremos uma parte da floresta que nunca foi tocada, por causa desse vínculo que existe no ciclo do vapor de água.
IHU On-Line – Quais são as novidades apontadas pelo estudo do qual o senhor participa, em relação ao fluxo e ao ciclo das águas na Amazônia?
Henrique Barbosa – Essa explicação que fiz sobre o fluxo e o ciclo das águas é bastante geral, e já tínhamos conhecimento do modo como esse ciclo se dava. O que fizemos de diferente nesse estudo – e fomos o único grupo que fez isso até hoje – foi considerar o transporte do vapor de água em cascata. Vou explicar como isso funciona. Normalmente, quando os cientistas avaliam a importância da Amazônia para as chuvas no Sudeste do Brasil, eles usam diversos tipos de modelos de observação e tentam, de alguma maneira, acompanhar a água que foi evapotranspirada pela floresta e verificar por onde ela passa e quando e onde chove.
Ciclo de água intermediário
O que fizemos de diferente foi escrever um modelo e desenhar um conjunto de equações que consigam representar vários ciclos de água intermediários; ou seja, até chegar ao ponto de interesse, por exemplo, no Sudeste, a água sai da Amazônia, se transforma em chuva no meio do caminho, entra no solo, é puxada de novo por outras águas naquela região, é emitida de novo para a atmosfera, vai mais para frente, chove outra vez, evapora de novo. Conseguir acompanhar esse ciclo das águas em vários ciclos de evaporação, precipitação e reevaporação, precipitação e reevaporação novamente, é uma novidade. Isso traz uma contribuição a mais. A nossa estimativa – e a estimativa da maioria dos estudos recentes – é de que a água que sai diretamente das plantas da Amazônia e vai para a atmosfera é responsável por 20% das chuvas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Quando consideramos que a água que saiu da Amazônia pode se transformar em chuva no meio do caminho, por exemplo, no Pantanal, e depois evaporar novamente e ir para o Sudeste, percebemos que a responsabilidade da Amazônia pelas chuvas no Sul e Sudeste do país é ainda maior, cerca de 25%. É a primeira vez que foi feita a verificação desse transporte de água em cascata, e usamos esse mesmo processo no estudo que foi publicado recentemente na Nature.
Ciclo de desmatamento e seca
O que percebemos é que, quando consideramos esse transporte em cascata, o ciclo de desmatamento e seca fica mais intensificado do que se poderia prever se fosse considerado apenas o transporte do vapor de água direto, de um lugar para o outro. Então, o que observamos é que já estamos sentindo os efeitos das mudanças climáticas e as mudanças nos regimes de precipitação na Amazônia e, ao mesmo tempo, continuamos desmatando – na verdade o desmatamento voltou a aumentar nesses últimos dois anos. Ou seja, estamos forçando o sistema e contribuindo para que diminuam as chuvas e aumentem as temperaturas, o que deve levar a essa transição de uma floresta tropical úmida para uma vegetação típica do Cerrado.
IHU On-Line – É possível verificar que percentual da Amazônia já tem uma vegetação mais parecida com a do Cerrado?
As regiões que foram desmatadas se parecem muito mais com o Cerrado do que com a Amazônia
Henrique Barbosa – É muito difícil avaliar, porque esse é um processo lento que acontece numa escala de tempo do ciclo de vida das árvores, então é algo a ser verificado em mais de vinte anos. De todo modo, as regiões que foram desmatadas se parecem muito mais com o Cerrado do que com a Amazônia, e toda a região conhecida como Arco do Desmatamento já sofre com isso, como Rondônia, Acre e Pará.
Nesse sentido, o que nosso estudo faz é alertar para o perigo de que essas mudanças que estamos impondo à Amazônia podem estar causando um processo de savanização do bioma, mesmo naquelas regiões que não foram perturbadas. Nosso estudo se concentra especificamente na Amazônia, mas esse cenário também pode acontecer nos demais biomas. Certamente se mudar o regime de precipitação e temperatura na região do Cerrado, por exemplo, a vegetação vai sofrer e vai haver mudanças.
IHU On-Line – Então, se o ciclo hidrológico da Amazônia for alterado, serão alterados os ciclos hidrológicos de todos os biomas do país?
Henrique Barbosa – Sim, por causa dessa influência da água que vem da Amazônia e que alimenta a precipitação em outras regiões no continente sul-americano: 20 ou 25% das chuvas da região Norte da Argentina e do Sul e Sudeste do Brasil são geradas da água que vem da Amazônia. Se essa quantidade de água for reduzida, espera-se que as chuvas diminuam nessas outras regiões.
Para fazer esse cálculo, também temos que considerar a variabilidade climática, ou seja, chove mais no verão e menos no inverno. Mas isso não significa que em todo verão chove a mesma quantidade. Em alguns verões chove muito e, em outros, chove pouco. Essa variação de chuvas de um ano para o outro significa que estamos provocando uma mudança que é difícil de separar da variabilidade natural do sistema.
IHU On-Line – O que seria preciso fazer para reverter ou evitar esse ciclo de desmatamento e secas que está sendo previsto para a Amazônia?
Henrique Barbosa – É preciso vontade política dos governantes para querer fazer essa mudança. Por razões diferentes, entre elas vontade política e preço de commodities, nos dois governos Lula e no primeiro governo Dilma, conseguiu-se controlar muito o desmatamento, o qual foi reduzido a quase zero. Contudo, essa urgência sobre o assunto foi deixada de lado, tendo em vista outros problemas que o país estava enfrentando, e os políticos passaram a se concentrar mais em outras pautas.
De todo modo, não se pode deixar de ter a preservação da floresta como um dos itens principais da lista do que se deve fazer, principalmente para quem está na posição de definir as leis, as estratégias de manejo e a legislação ambiental. Como cientista, posso fazer pesquisa e tentar educar as pessoas para transmitir esse conhecimento. Como jornalista, você pode ajudar divulgando esses estudos. Agora, como população, poderíamos ir a Brasília pressionar os políticos, mas, em última instância, são aqueles que estão com a caneta na mão que irão escrever a lei.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo ou explicitar algum outro ponto do estudo?
Henrique Barbosa – Uma coisa interessante que observamos é que, se a floresta for heterogênea, o efeito da seca pode ser diminuído. Se a vegetação for toda igual, a floresta como um todo responde de maneira igual às mudanças de chuva e de temperatura. Isso significa que, quando a temperatura for alterada de modo a causar efeitos na vegetação, toda a floresta sentirá esses efeitos, ou seja, a floresta inteira será perturbada de uma hora para a outra. Portanto, quanto mais heterogênea for a floresta – se em certas localidades existirem árvores que são mais resistentes ao estresse hídrico e, em outras localidades, árvores que são menos resistentes; em outras existirem árvores que aguentam mais a variação de temperatura e, em outras, árvores que aguentam menos, ou seja, se há essa variabilidade grande, tal como se observa hoje na Amazônia -, maior a possibilidade de estabilizar esse ciclo negativo de desmatamento, de redução das chuvas, de transição de floresta para cerrado. Quando a floresta é heterogênea, esse ciclo não consegue se propagar tão rápido. Isso demonstra que a própria biodiversidade da floresta, especialmente a vegetal, é importantíssima para manter a estabilidade dela, sem falar na sua importância para o desenvolvimento científico e para o desenvolvimento de remédios.
Por que devemos nos importar com a Amazônia?
Se fizermos uma lista dos países mais poluidores do mundo, o Brasil está em oitavo lugar, justamente por causa do desmatamento e das queimadas na Amazônia
Outra questão que gostaria de comentar é por que devemos nos importar se um tipo de vegetação vai desaparecer na Amazônia, se outro tipo de vegetação vai surgir em seu lugar. Isto é, por que devemos nos preocupar se a vegetação da Amazônia pode ser substituída por uma vegetação de Cerrado? Uma das questões centrais é que as árvores da Amazônia são todas muito grandes, têm troncos enormes, ou seja, possuem de 30 ou 40 metros de altura, e a quantidade de carbono armazenado nessas árvores é muito grande. Então, se uma árvore dessas morre e nasce uma muito menor no local, vai haver uma diferença entre duas massas de carbono e essa diferença vai para a atmosfera. Nesse processo de substituição da vegetação da Amazônia pela vegetação do Cerrado, aumentaríamos muito a quantidade de carbono na atmosfera e, consequentemente, aumentariam as mudanças climáticas, as mudanças de temperatura e precipitação e também o processo de savanização. Por isso, temos que ter cuidado com a Amazônia.
Se fizermos uma lista dos países mais poluidores do mundo, o Brasil está em oitavo lugar, justamente por causa do desmatamento e das queimadas na Amazônia. Se não considerarmos o desmatamento e as queimadas, o Brasil nem aparece nessa lista, porque a atividade industrial brasileira é muito pequena. Então, temos de pensar não só em preservar a floresta, mas também nos efeitos que essa preservação acarreta para as mudanças climáticas, porque se não fizermos isso, os efeitos serão muito maiores não só na Amazônia, mas no mundo todo. Se o nível das águas subir por conta do aquecimento global, como está sendo previsto, a população que vive na região costeira será completamente afetada.
(EcoDebate, 29/03/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
Maior ameaça ao Cerrado é considerar sua vegetação nativa um estorvo ao desenvolvimento
Maior ameaça ao Cerrado é considerar sua vegetação nativa um estorvo ao desenvolvimento. Entrevista especial com José Felipe Ribeiro
Alto Paraíso (GO) – Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no município de Alto Paraíso (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
IHU
Apesar de o Cerrado não ter rios de grande vazão, o bioma “concentra nascentes que alimentam oito das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras” e nele nascem os “rios que originam seis das principais regiões de hidrográficas brasileiras: Parnaíba, Paraná, Paraguai, Tocantins-Araguaia, São Francisco e Amazônica”, informa o biólogo José Felipe Ribeiro à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ribeiro explica que a preservação da vegetação nativa do Cerrado “é fundamental para a manutenção dos níveis de água em grande parte do país”, porque é no bioma que estão localizados três dos grandes aquíferos brasileiros, o Guarani, o Bambuí e o Urucuia.
O biólogo diz ainda que o mito de que o Cerrado é um bioma seco, por conta da sua terra árida, tem origem no “desconhecimento do clima” da região, que é fortemente sazonal. “Como o inverno seco pode durar quase seis meses, para muitos a secura deste período seria a situação predominante. Entretanto, os verões chuvosos, originalmente, podem trazer, em média, para a região cerca de 1.600 mm de chuva. Para efeitos comparativos, a média de pluviosidade na Mata Atlântica é de 2.000 mm”, compara. Ele diz ainda que a maior ameaça ao Cerrado é “achar que a vegetação nativa é um estorvo ao desenvolvimento. Neste sentido, entre as principais ameaças estão os grandes monocultivos e o extrativismo predatório. Os grandes monocultivos simplesmente eliminam qualquer diversidade regional pela completa eliminação da vegetação local”, adverte.
José Felipe Ribeiro | Foto Fabiano Bastos/Embrapa Cerrado
José Felipe Ribeiro é graduado em Biologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília – UnB e doutor em Ecologia pela University of California. É pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e, no momento, atua na Embrapa Cerrados. Também leciona no curso de Botânica da Universidade de Brasília.
Ribeiro estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 08-5-2017, ministrando a palestra O Cerrado Brasileiro: berço das águas e celeiro do mundo, às 19h30min. A conferência faz parte do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida. A programação completa está disponível aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Para além da paisagem clássica de savana e árvores tortas, o que é o Cerrado brasileiro?
José Felipe Ribeiro – O Cerrado brasileiro apresenta fisionomias que englobam formações florestais, savânicas e campestres. Em sentido fisionômico, a floresta representa áreas com predominância de espécies arbóreas, onde há formação de dossel, contínuo ou descontínuo, enquanto savana refere-se a áreas com árvores e arbustos espalhados sobre um estrato graminoso, sem a formação de dossel contínuo e campo, e designa áreas com predomínio de espécies herbáceas e algumas arbustivas, faltando árvores na paisagem.
A flora do Cerrado é característica e diferenciada dos biomas adjacentes, embora muitas fisionomias florestais compartilhem espécies com outros biomas. Além do clima, que é fortemente sazonal, com invernos secos e verões chuvosos, da química e física do solo, da disponibilidade de água e nutrientes, e da geomorfologia e topografia, a distribuição da flora é condicionada pela latitude, frequência de queimadas, profundidade do lençol freático, pastejo e inúmeros fatores antrópicos.
IHU On-Line – O Cerrado brasileiro pode ser considerado berço das águas do mundo? Por quê?
José Felipe Ribeiro – No Cerrado, nascem rios que originam seis das principais regiões de hidrográficas brasileiras: Parnaíba, Paraná, Paraguai, Tocantins-Araguaia, São Francisco e Amazônica. O bioma, que ocupa um quarto do território brasileiro, não tem rios de grande vazão, mas concentra nascentes que alimentam oito das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras. Já que nele estão localizados três grandes aquíferos – Guarani, Bambuí e Urucuia –, responsáveis pela formação e alimentação desses rios, a preservação da vegetação do Cerrado é fundamental para a manutenção dos níveis de água em grande parte do país. Esse potencial hídrico dá ao bioma o título de Berço das Águas.
IHU On-Line – Em que medida o mito de que o Cerrado é seco e é uma terra árida, compromete as ações de preservação desse bioma?
José Felipe Ribeiro – Esse mito é resultado do desconhecimento do clima, que é fortemente sazonal. Como o inverno seco pode durar quase seis meses, para muitos a secura deste período seria a situação predominante. Entretanto, os verões chuvosos, originalmente, podem trazer, em média, para a região cerca de 1.600 mm de chuva. Para efeitos comparativos, a média de pluviosidade na Mata Atlântica é de 2.000 mm. Qualquer ação de preservação precisa entender e levar em conta as espécies que estão adaptadas a esta sazonalidade do bioma.
IHU On-Line – É possível aliar a produção agrícola com a preservação do Cerrado? Como?
José Felipe Ribeiro – Sim, com certeza. Hoje temos conhecimento suficiente sobre a época de produção de sementes, produção de mudas e manejo de espécies, que, plantadas em consórcio em Sistemas Agroflorestais, são capazes não apenas de manter a biodiversidade como também de gerar lucro ao produtor. Devido à importância dessa flora em termos de diversidade e uso popular, bem como o risco de extinção que essas plantas correm, a Embrapa Cerrados, juntamente com instituições parceiras, as Universidades e Institutos de Pesquisa, vem investindo em pesquisa sobre caracterização biológica, avaliação do potencial econômico, desenvolvimento de técnicas de produção e transferência de tecnologia para gerar e divulgar informações sobre as plantas nativas do Cerrado.
Qualquer ação de preservação precisa entender e levar em conta as espécies que estão adaptadas a esta sazonalidade do bioma
As atividades desenvolvidas pela Embrapa Cerrados são realizadas, principalmente, junto aos agricultores familiares, buscando articular uso e conservação da biodiversidade do Cerrado, e à melhoria da qualidade de vida da população. Aliar a produção agrícola com a conservação da vegetação e da água no Cerrado seria possível com plantios agrícolas bem manejados nas áreas de Uso Alternativo do Solo, e com a conservação com os plantios e/ou manejo das Áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente, conforme previsto na legislação de proteção da vegetação nativa brasileira.
IHU On-Line – Qual a maior ameaça ao Cerrado hoje e como enfrentá-la?
José Felipe Ribeiro – Achar que a vegetação nativa é um estorvo ao desenvolvimento. Neste sentido, entre as principais ameaças estão os grandes monocultivos e o extrativismo predatório. Os grandes monocultivos simplesmente eliminam qualquer diversidade regional pela completa eliminação da vegetação local.
Na coleta extrativa, se a velocidade da extração for maior que a produção natural e ocorre apenas com os melhores exemplares das espécies, há risco de prejudicar a riqueza biológica do ecossistema. Devemos lembrar que a quantidade de frutos e sementes produzidos é aquela necessária para a reprodução da própria espécie ou mesmo como parte da cadeia alimentar de animais nativos, como pássaros e mamíferos.
IHU On-Line – De que forma o desequilíbrio ambiental no Cerrado pode impactar outros biomas e até mesmo a produção agrícola em outras regiões do país?
José Felipe Ribeiro – Primeiro são as mudanças climáticas que estão cada vez mais diminuindo a média de chuva na região. Depois, com atividades antrópicas que impeçam que a água que cai no Cerrado seja incorporada ao sistema, com mau manejo do solo, por exemplo. A chuva, ao invés de ficar no Cerrado pela infiltração, é levada mais rapidamente para regiões mais baixas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
São as mudanças climáticas que estão cada vez mais diminuindo a média de chuva na região
José Felipe Ribeiro – As atividades humanas podem, sim, evitar o conflito da conservação e da produção agrícola. Esta produção, em sinergia com o ambiente natural, pode ser produtora de bens para a humanidade, incluindo aí os serviços prestados pelos ambientes naturais. Afinal, se a nossa espécie escolheu não voltar a morar em cavernas, subir em árvores ou caçar todos os dias para obter seu alimento, temos que entender que, para manter a população humana que aumenta a cada dia, precisamos produzir mais alimento. Entretanto, esta equação deve levar em conta que devemos atingir esses valores com aumento da produtividade em áreas já abertas pela agricultura, com a sustentabilidade nos ambientes naturais e até com o controle populacional da nossa espécie. O nosso planeta está próximo de atingir a sua capacidade de suporte.
(EcoDebate, 04/04/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
‘Cadernos de Saúde Pública'(volume 33 número 2), disponível on-line, debate a não vacinação infantil
A revista Cadernos de Saúde Pública (volume 33 número 2), disponível on-line, coloca em pauta a não vacinação infantil entre as camadas de maior renda/escolaridade como desafio para a Saúde Pública, apesar de a vacinação ser mundialmente reconhecida por autoridades sanitárias e a comunidade médica como importante intervenção preventiva com impacto na redução da morbimortalidade de doenças imunopreveníveis (a exemplo da erradicação da varíola e significativa redução dos casos de poliomielite no mundo). Conforme relata o editorial da publicação, a disseminação de hesitação e resistência às vacinas entre pessoas de alta renda e escolaridade tem se tornado uma questão relevante para a saúde pública em vários países. “No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado na década de 1970, alcançou altos níveis de cobertura vacinal, levando à eliminação da poliomielite no país em 1989 e ao controle de várias doenças como sarampo, tétano neonatal, difteria, tétano acidental e coqueluche. Estudos recentes de cobertura vacinal infantil, no entanto, também têm apontado para a diminuição da taxa de vacinação nos estratos socioeconômicos mais elevados. Nesse contexto, observa-se a reemergência de doenças antes controladas, a exemplo dos surtos de sarampo que atingiram a Califórnia, Estados Unidos, em 2014, e que têm se intensificado no Brasil desde 2011.”
O texto expressa que pesquisadores, sobretudo na perspectiva das Ciências Sociais, têm buscado compreender as causas da não vacinação partindo do pressuposto de que elas têm íntima relação com o contexto cultural, com as diferentes percepções de risco e sua relação com a desigualdade social e solidariedade. “A decisão de vacinar ou não os filhos, expõe a tensão entre o individual e o coletivo. Por conta do efeito biológico da imunidade de grupo, que reduz a incidência e a taxa de transmissão de doenças em uma dada população, a vacinação protege também aqueles que não se vacinaram. Na contemporaneidade, caracterizada pelo crescente individualismo, demanda por autonomia, liberdade de escolha e aversão ao risco, a saúde passa a ser pensada como uma questão de responsabilidade individual. A mídia, sobretudo a internet, tem se tornado cada vez mais uma fonte de informação utilizada pelas pessoas para tomar suas decisões em relação à saúde.” Por outro lado, diz a publicação, pesquisadores, na Europa, apontam a desconfiança em médicos, fontes governamentais e indústria farmacêutica como razões para a hesitação com relação à vacinação.
“Frente a essas questões, a compreensão das diferentes culturas de percepção de risco e as motivações dos pais para vacinar ou não seus filhos são fundamentais para se enfrentar o desafio da prevenção que é colocado para a saúde coletiva”, finaliza o editorial.
Confira todos os artigos do volume 33 número 2 da revista Cadernos de Saúde Pública de fevereiro de 2017.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 05/04/2017
Avanço da desertificação da Caatinga gera impactos socioeconômicos na região
Desertificação da Caatinga gera impactos socioeconômicos. Entrevista especial com Humberto Barbosa
IHU
O desflorestamento, o uso intensivo de terras para a agricultura e a pecuária e a retirada de lenha para fins energéticos e de mineração estão entre os fatores que originaram o processo de desertificação na Caatinga, especialmente na região da Paraíba, a qual tem aproximadamente 94% de suas terras afetadas por esse processo, diz Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens de Satélites – Lapis, que tem monitorado a região. Segundo ele, “93,7% do território do estado está em processo de desertificação, sendo que 58% em nível alto de degradação. (…) Existem microrregiões no estado cujo processo de desertificação já se encontra em estado grave ou muito grave, como em Seridó e Cariris”.
Apenas na Paraíba, pontua, “cerca de 70% da Caatinga encontra-se degradada”. Além dos impactos ambientais, como “a perda de parte do patrimônio genético da flora da Caatinga”, o pesquisador frisa que a desertificação gera uma série de efeitos socioeconômicos na região e afeta “diretamente o comércio local e regional, e a situação econômica de grupos de agricultores familiares”.
Apesar do avanço da desertificação na região, Barbosa adverte que a “adoção de boas práticas de uso do solo e de recuperação de áreas degradadas, por meio de ações de assistência técnica e de educação ambiental, pode contribuir para evitar o agravamento da desertificação no Semiárido brasileiro”.
Humberto Barbosa é doutor em Ciência do Solo e Sensoriamento Remoto pela University of Arizona, EUA, mestre em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Inpe e graduado em Meteorologia pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. É professor da Universidade Federal de Alagoas – Ufal. Também é coordenador do Laboratório de Processamento de Imagens de Satélites – Lapis, uma das principais referências no país quanto à recepção, processamento, análise e distribuição de dados satelitários do Meteosat Segunda Geração – MSG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se chegou ao dado de que quase 94% das terras da Paraíba estão ameaçadas pela desertificação? Esse processo é irreversível?
Humberto Barbosa – Este dado é do Programa de Ação Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca no Estado da Paraíba – PAE-PB: 93,7% do território do estado está em processo de desertificação, sendo que 58% em nível alto de degradação. Esse número varia de acordo com as metodologias utilizadas pelas instituições. Algumas delas trabalham com estimativas menores. É o caso do Instituto Nacional do Semiárido – Insa, que em 2012 divulgou um relatório afirmando que os estados do Ceará e Pernambuco são os mais castigados pelo processo de desertificação, embora, proporcionalmente, a Paraíba seja o estado com maior extensão de área comprometida: 71% de seu território já sofreram com os efeitos da desertificação.
No caso do Lapis, o monitoramento da situação das áreas suscetíveis à desertificação no semiárido brasileiro é feita por satélite.
Dados específicos para a Paraíba
(Fonte: www.lapismet.com)
(Fonte: www.lapismet.com)
O solo leva centenas de anos para se desenvolver. Uma vez perdido por fatores naturais e antrópicos, não é viável economicamente recuperar as áreas degradadas.
IHU On-Line – Desde quando esse processo de desertificação vem ocorrendo nas terras da região, e quais são as causas desse processo?
Humberto Barbosa – Dentre as causas da degradação, estão o desflorestamento, uso intensivo da terra para a agricultura, sobrepastoreio (excesso de animais por área) e erosão. Além de questões como retirada da lenha para fins energéticos e mineração.
Existem microrregiões no estado cujo processo de desertificação já se encontra em estado grave ou muito grave, como em Seridó e Cariris. São os chamados Núcleos de Desertificação.
IHU On-Line – De que modo um processo de desertificação impacta tanto o solo quanto os rios? Nesse sentido, quais são os impactos visíveis na região, seja no solo ou nos rios?
Humberto Barbosa – O processo de desertificação corresponde à perda progressiva do solo, com fortes impactos socioeconômicos relacionados à perda de produtividade da terra. O desmatamento ou desflorestamento provocam a erosão, de modo que ações naturais, como chuvas, ventos e a própria seca, associadas a atividades antrópicas que exercem impactos sobre os ecossistemas, aumentam a deterioração das terras.
IHU On-Line – Algo poderia ter sido feito para conter esse processo?
Humberto Barbosa – Algo ainda pode ser feito para conter o processo de desertificação. A adoção de boas práticas de uso do solo e de recuperação de áreas degradadas, por meio de ações de assistência técnica e de educação ambiental, pode contribuir para evitar o agravamento da desertificação no Semiárido brasileiro.
IHU On-Line – Esse processo de desertificação das terras da Paraíba impacta de algum modo regiões vizinhas? Como?
Humberto Barbosa – Os impactos sobre áreas circunvizinhas são socioeconômicos. Há que destacar também que o Núcleo de Desertificação do Seridó, além da Paraíba, abrange territórios do Rio Grande do Norte. Mas como explicado acima, é resultado da ação de fatores naturais e antrópicos em áreas específicas. Fora isso, perda da produtividade dos solos afetam diretamente o comércio local e regional, bem como a situação econômica de grupos de agricultores familiares.
IHU On-Line – Considerando esse processo de desertificação das terras da Paraíba, que percentual da Caatinga é afetado pela desertificação e quais as consequências desse processo para o bioma como um todo?
Humberto Barbosa – Na Paraíba, cerca de 70% da Caatinga encontra-se degradada. Dentre as causas da degradação, estão o desflorestamento, uso intensivo da terra para a agricultura, sobrepastoreio ou excesso de animais por área e erosão. Como consequências, pode-se mencionar a perda de parte do patrimônio genético da flora da caatinga, prejuízos socioeconômicos, perda de recursos naturais como o solo e sua fertilidade para produção.
IHU On-Line – Quais são as consequências sociais e econômicas desse processo de desertificação das terras da Paraíba? Como a vida das pessoas na Paraíba tem se modificado por conta disso?
Humberto Barbosa – As principais consequências são a pobreza, a migração, a perda dos meios de produção e a insegurança alimentar. Além disso, a baixa densidade demográfica tem sido registrada nos Núcleos de Desertificação da Paraíba, em razão da migração decorrente dos impactos socioeconômicos da desertificação.
(EcoDebate, 11/04/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]