Texto do grande amigo Julino. Ele tem uma grande qualidade, entre várias outras, estuda e escreve sobre um tema que vivenciou na prática.
Crônicas da Farmacovigilância
por Julino Soares
Talvez esse não seja um assunto comum a você, mas se
perguntar aos seus familiares mais velhos (especialmente se viveram na região
norte ou nordeste) ou mesmo ir até uma feira de alimentos do seu bairro,
certamente irá se de deparar com as famosas “garrafadas”.
As garrafadas são produtos comuns na nossa medicina popular,
produzidas pela maceração de plantas medicinais, animais e/ou minerais em
vinho branco ou cachaça. Estão presentes em diversas regiões do país e podem
ser encontradas em feiras, casas de ervas, barracas de ambulantes,
comercializadas por raizeiros e até produzidas por familiares, amigos e
vizinhos. Eu mesmo já fiz algumas garrafadas usando vinho branco (moscatel) com
algumas ervas, mas cada “raizeiro” possui suas peculiaridades e receitas.
Apesar da sua popularidade, esse assunto pode provocar
muitos conflitos – uma “noite das garrafadas” – entre os raizeiros,
consumidores e os profissionais da saúde. Um exemplo disso são as famosas garrafadas de
avelós ou de babosa para tratamento do câncer e as garrafadas
de Viagra,produtos estes que ainda não têm comprovação científica e podem
causar intoxicações.
Os raizeiros, embasados no conhecimento empírico e
tradicional (e no caso de alguns comerciantes também nos interesses
financeiros) receitam as garrafadas para os mais diversos tratamentos; já pude
observar garrafadas compostas por 14 ervas, com mais de 20 indicações
terapêuticas. Praticamente, podemos encontrar verdadeiras panaceias, com indicações
quase mágicas para todos os males.
Diversos problemas podem ser causados pelo uso das
garrafadas, os quais devem ser considerados; como o uso de plantas sem a
correta identificação e sujidades. Mas se focarmos apenas nas possíveis reações
adversas provocadas pelas plantas já temos um grande problema, pois não sabemos
o quanto negativos estes efeitos podem ser. Em fevereiro de 2010 foi noticiada a
morte de uma mulher causada supostamente pela ingestão de uma garrafada.
Também temos que levar em consideração que o álcool possui
influência sobre diversos órgãos do corpo, incluindo o fígado, modificando o
perfil de eliminação de medicamentos e outras substâncias. Além das garrafadas,
podemos encontrar bebidas alcoólicas comercializadas formalmente que também são
usadas como “medicinal”, como o vinho de jurubeba (esse é das
antigas!) e o uso de aperitivos alcoólicos feitos a base de ervas, como a
Cynar® (aperitivo de alcachofra). Também é comum no Brasil o consumo de bebidas
não alcoólicas que usam a quinina, como a água tônica.
O uso de “bebidas alcoólicas medicinais” não é exclusividade
brasileira. Um bom barman sabe que ainda é utilizado em receitas de
coquetéis a “angostura bitters”. Trata-se de um concentrado de ervas
amargas e aromáticas em álcool, criado inicialmente pelo médico alemão Johann
Gottlieb Benjamin Siegert, em 1824, para tratar soldados com problemas
estomacais.
Fica evidente que apesar das implicações médicas e
sanitárias relacionadas à comercialização e uso das garrafadas, esses produtos
copõem o repertório de “medicamentos populares” e, portanto, são alvo de
estudos etnofarmacológicos.
Os profissionais da saúde e agentes sanitários devem buscar essa compreensão e
construir um diálogo com os “legítimos” raizeiros nas ações de promoção da
saúde. Esse é um desejo possível que este cientista-raizeiro gostaria
de ver!
Julino Soares é biólogo, doutorando pelo Programa de
Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo.
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