segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Brasil e Canadá inovam em pesquisas sobre saúde mental

Unicamp


Campinas, 11 de setembro de 2015 a 20 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 637

Projeto rendeu debates, 40 teses, site, 54 artigos nacionais e internacionais, além de oito capítulos de livros

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Especial para o JU
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Durante cinco anos, pesquisadores, estudantes, usuários e prestadores de serviços da Unicamp e da Universidade de Montreal investigaram modelos de saúde mental no Brasil e no Canadá. O projeto foi financiado pela Aliança de Pesquisa Comunidade-Universidade (ARUC) do Canadá e buscou influenciar debates acadêmicos e políticos em favor da luta contra o estigma das doenças mentais, aproximar os serviços de saúde, a comunidade e a pesquisa acadêmica.

As abordagens de investigação tomaram, como base, metodologias participativas e inclusivas de alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorandos e gerou 40 teses, 54 publicações nacionais e internacionais, oito capítulos de livros, o site www.aruci-smc.org, dentre outros produtos oriundos do projeto. A participação ativa dos usuários no processo de investigação tornou-se um evento sem precedentes no Brasil.

“A quantidade de alunos envolvidos no projeto foi enorme. Só de doutorado e pós-doutorado do Brasil foram 35 alunos. O que me encantou no projeto foi fazer ciência aplicável engajada com a comunidade. Essa é uma tendência mundial de pesquisa participativa inclusiva, que no Brasil tem pouco desenvolvimento. Temos, por exemplo, um artigo recém-publicado nos Cadernos HumanizaSUS, publicado pelo Ministério da Saúde, que foi escrito com a participação dos próprios usuários dos serviços da saúde mental”, revelou Rosana Teresa Onocko-Campos, médica do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e coordenadora do projeto ARUC.

O artigo “A experiência de produção de saber no encontro entre pesquisadores e usuários de serviços públicos de saúde mental: A construção do guia GAM” reuniu 27 autores entre docentes, mestrandos e doutorandos da Unicamp, da Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal do Rio Grande do Sul e também usuários de serviço de saúde mental dos municípios de Campinas (SP), Novo Hamburgo e São Leopoldo (RS), Rio de Janeiro e São Pedro da Aldeia (RJ), e trabalhadores desses serviços. Segundo Onocko-Campos, o artigo levou dois anos para ser escrito.

No Brasil, até a década de 1980, os hospitais psiquiátricos e os asilos eram os principais locais de tratamento para pessoas com problemas mentais graves. A Reforma Psiquiátrica instituiu uma nova política de saúde mental, que teve, como um de seus principais recursos, o desenvolvimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para o tratamento em saúde mental na comunidade, possibilitando o seguimento ambulatorial e a atenção à crise. 

Reconhecendo o contexto de utilização pouco crítica dos medicamentos nos tratamentos em saúde mental, bem como o valor simbólico da medicação para aqueles que a utilizam, foi desenvolvida em Quebec, no Canadá, o guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM), para que os usuários tivessem acesso a informações sobre seus tratamentos e pudessem reivindicar seus direitos e até mesmo a retirada da medicação.
A versão brasileira não manteve o tema da retirada da medicação, mas reforçou a tomada de decisões compartilhadas entre usuário e profissional de saúde. O guia é dividido em passos, onde a pessoa é convidada a fazer um balanço da própria vida para alcançar uma melhor qualidade de saúde.

“O guia GAM revelou que o uso dos medicamentos aumenta o poder dos serviços de saúde mental, coisa que outras pesquisas avaliativas não haviam conseguido mostrar. A medicação psiquiátrica ainda é usada como forma de controle das pessoas. O grande paradoxo é que descobrimos que a palavra do usuário é pouco ouvida na hora da prescrição da medicação nos serviços comunitários de saúde mental”, disse Onocko-Campos.

A pesquisadora da FCM afirma que algumas pessoas têm comparado a medicação psiquiátrica a remédios para hipertensão ou diabetes, como algo que deve ser tomado a vida inteira. A diferença, alega, está na dosagem. Por meio de um exame de sangue é possível ao médico prescrever qual a dose certa para o controle da hipertensão ou diabetes. Já para os medicamentos que afetam percepções e sensações, como os ansiolíticos, não há como ter essa dosagem por meio de exames de laboratório.

“Se eu lhe dou um regulador de humor, como vou saber como está o seu humor se não for confiando no que você me disse? Há pessoas que estão tomando há anos medicamentos sem saber dos efeitos colaterais. Queremos trazer a experiência do usuário para a tomada de decisão quanto a uma boa prescrição”, revelou Onocko-Campos.

A pesquisa, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp, respeitou os aspectos éticos e legais implicados no trabalho com pessoas, sobretudo usuárias da rede de saúde mental. Os usuários da intervenção GAM referiam-se ao grupo como um local para troca de um “saber experiencial” sobre o medicamento, no qual cada um pôde contar sua vivência singular com relação ao uso dos psicotrópicos.

Nas narrativas dos usuários, os CAPS foram descritos ora como lugar de tratamento e cuidado positivamente avaliado, como fomentador de espaço de escuta, de troca e produção de trabalho, ora como promotor de sentimentos de baixo poder de troca e de participação. Foram identificados vários problemas associados à dificuldade de comunicação sobre esse tema: relações desiguais de poder, coerção, medo, timidez, uso de linguagem técnica, ausência de escuta para a vivência pessoal e atribuição exclusiva de competências. Percebeu-se a existência de um limite tênue entre o cuidado com a saúde dos usuários e a tendência ao gerenciamento absoluto de suas vidas. 

As pesquisas levaram à constatação de que ainda são necessárias mudanças nas práticas em saúde mental, especialmente no que se refere à valorização da experiência do usuário em seu tratamento.

“Nesses cinco anos de pesquisa, o que nos chamou a atenção foi o aspecto da prescrição de medicamento tanto dentro da reforma psiquiátrica quanto nos serviços comunitários, nos quais é feito de forma tradicional, com pouco diálogo com os pacientes, muita verticalidade e assimetria na tomada de decisão entre médicos e pacientes. A direção proposta é a de que o usuário, em vez de ocupar um lugar de dependência na relação com o serviço, tenha o serviço como espaço a partir do qual retome o seu lugar de cidadão. Isso foi uma diferença que apareceu nos estudos comparados entre o Canadá e o Brasil”, revelou Onocko.

As pesquisas mostraram que a verticalidade do saber médico sobre o usuário apareceu tanto no Brasil quanto no Canadá, mas o que torna os usuários brasileiros mais frágeis, sobretudo os pacientes atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), é a baixa escolaridade, o escasso poder aquisitivo, o acesso à boa alimentação, a baixa qualidade da moradia e outros fatores, se comparados ao nível de vida dos usuários canadenses.

“Como se não bastasse o estigma da doença mental, que gera uma certa segregação social, a diferença cultural torna os usuários mais fragilizados. Precisamos criar canais de comunicação para que os médicos mediquem corretamente do ponto de vista farmacológico, quando necessário, mas com um grau de permeabilidade com o que os pacientes sentem e acham”, reforçou Onocko-Campos.

O projeto como um todo teve um sistema de governança muito particular, pois permitiu inserir os alunos de pós-graduação em grandes grupos de pesquisa e mudar conceitos. Depoimentos de alunos do Canadá e do Brasil mostram que, depois de participarem do projeto ARUC, eles não conseguem fazer pesquisa sobre as pessoas sem pensar o que elas acham.

De acordo com Onocko-Campos, a FCM da Unicamp está entrando com outro pedido de financiamento no Canadá. A ideia é desdobrar o trabalho na apreensão do processo do adoecimento, mantendo a ênfase na inclusão do usuário nos estudos participativos, com maior refinamento e qualidade do ponto de vista científico.

“Às vezes, tendemos a achar que inovação só existe na área mais dura – engenharia, computação, matemática, física –, mas essa é uma pesquisa inovadora dentro da internacionalização. Por conta desse trabalho, estamos buscando novos convênios com a Universidade de Yale, nos Estados Unidos. E em setembro, vamos para Londres conversar com pesquisadores do Kingdom College, o grupo mais citado do mundo de avaliação de serviços mental. Hoje, as pesquisas são aglutinadas em rede. Essa é uma nova tendência da ciência contemporânea”, revelou Onocko-Campos.

Publicações

Artigo: A experiência de produção de saber no encontro entre pesquisadores e usuários de serviços públicos de saúde mental: A construção do guia GAM

Autores: Rosana Teresa Onocko Campos, Eduardo Passos, Analice de Lima Palombini et ali

Unidades: Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Publicação: Cadernos HumanizaSUS, volume 5, Saúde mental, 2015

Artigo: Human rights and the use of psychiatric medication

Autores: Lourdes Rodriguez del Barrio, Rosana Teresa Onocko Campos, Sabrina Stefanello, Deivisson Vianna Dantas dos Santos, Ce´ line Cyr, Lisa Benisty e Thais de Carvalho Otanari

Unidades: Universidade de Campinas e Universidade de Montreal

Publicação: Journal of Public Mental Health, Vol. 13, nº. 4 2014, pp. 179-188

Artigo: A Gestão Autônoma da Medicação: uma intervenção analisadora de serviços em saúde mental

Autores: Rosana Teresa Onocko Campos, Eduardo Passos, Analice de Lima Palombini, Deivisson Vianna Dantas dos Santos, Sabrina Stefanello, Laura Lamas Martins Gonçalves, Paula Milward de Andrade e Luana Ribeiro Borges

Unidades: Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal Fluminense, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Publicação: Ciência & Saúde Coletiva 18(10):2889-2898, 2013

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