domingo, 14 de dezembro de 2014

Canabinoides ajudam a desvendar aspectos etiológicos em comum e trazem esperança para o tratamento de autismo e epilepsia

Autor / Author - Renato Malcher-Lopes - Revista da Biologia (2014) 13(1): 43–59

Resumo

Desde 1843 que as propriedades anticonvulsivantes da Cannabis são conhecidas pela ciência ocidental. Em 1980, ensaios clínicos demonstraram que canabidiol possui atividade antiepilética em pacientes de epilepsia refratária, sendo sonolência o único efeito colateral. O embargo imposto pela proibição do uso medicinal da Cannabis, no entanto, prejudicou imensamente o desenvolvimento científico e a exploração dessas propriedades. Multiplicam-se, contudo, os casos bem sucedidos de uso ilegal e sem orientação para o tratamento de síndromes caracterizadas por epilepsia e autismo regressivo. Os resultados corroboram evidências científicas que indicam a existência de processos etiológicos comuns entre o autismo e a epilepsia. Estudos em modelos animais confirmam envolvimento do sistema endocanabinoide. Esses avanços apontam o início de uma revolução no entendimento e tratamento desses transtornos.

Palavras-chave. Sistema endocanabinoide; Canabinoides; Autismo; Epilepsia. DOI: 10.7594/revbio.13.01.07

Considerações finais 

Em 2012 foi publicado um livro relatando o impressionante caso de uma autista não-verbal que passou a se comunicar utilizando um computador (Fleischmann, 2012). Diagnosticada com autismo aos três, Carly Fleischmann era extremamente hiperativa, exibia frequentes ataques de autoagressividade e comportamento explosivo. Jamais pronunciou uma palavra e por vezes parecia perdida no mundo, à deriva dentro de si. Aos onze anos, entretanto, após anos de terapias, treinos, frustrações, lentos e minúsculos progressos, Carly comunicou-se com o mundo pela primeira vez. Em um dia especialmente marcado por grande inquietação, ela foi a um computador e digitou: “socorro dente dói”. Os pais de Carly ficaram estarrecidos com este primeiro contato e com os muitos que passaram a se suceder: “Percebemos que dentro de Carly havia uma pessoa articulada, inteligente e emotiva que nós jamais havíamos conhecido!”. 

Mais do que uma estória dramática de superação, Carly trouxe ao mundo preciosas informações sobre o que pode acontecer na mente de certos casos de autismo. Ela revelou, por exemplo, que seus ataques de agitação com comportamentos atípicos e de autoagressividade eram, na verdade, reações a surtos de parestesia: “Vocês nunca saberão como é quando eu não consigo parar de me mexer porque minhas pernas ardem como se estivessem em chamas, ou quando eu sinto como se centenas de formigas subissem pelo meu corpo.” Ambientes muito estimulantes também desencadeavam ruídos mentais insuportáveis, levando-a a violentos ataques, comuns entre os autistas, mas que — agora ela revelava — serviam para tentar dissipar essas terríveis sensações, supostamente causadas por ativação anormal de circuitos cerebrais associados ao córtex somato-sensorial. Tais situações são reminiscentes da parestesia observada em epilepsia e outras condições neuro / encefalopáticas (Beauvais et al., 2005; Chu et al., 1997; Erickson et al., 2006; Hess, 1989; Namazi et al., 2011; Rossi et al., 1980; Telegina, 1981)), e das que causam alucinações de outras modalidades, sinestesia e ruídos mentais, quando os demais circuitos sensoriais estão envolvidos. De um modo geral, essas observações estão em concordância com a Teoria do Mundo Intenso de Markram – que postula que o excesso de ativação neuronal na mente de autistas gera um ganho extremo de intensidade na percepção dos estímulos sensoriais (Markram et al., 2007). 

Em palestras recentes (https://www.youtube.com/watch?v=abWeS8iiN5Y), a pesquisadora Adit Shankardass, coautora de alguns artigos citados aqui (Duffy et al., 2013a; Duffy et al., 2013b; Duffy et al., 2014), revelou que resultados preliminares de seu grupo indicam que cerca de 50% das crianças diagnosticadas como autistas exibem focos cerebrais de atividade epileptiforme, que ela chamou de “hidden seizures”, as quais, supostamente, tornam essas crianças incapazes de conexão com o mundo exterior (mesmo quando na ausência de ataques ou convulsões), corroborando a noção extraída desta revisão de que atividades epileptiformes, ou semelhantes a tais, estão relacionadas a diversos sintomas do autismo. 

Assim como Charlotte, do documentário “Weed”, e Anny, do documentário “Ilegal”, cada vez mais numerosos relatos surgem no noticiário nacional e internacional (ver exemplos na sessão “Apêndice”) dando conta de famílias que trataram filhos autistas com extratos de Cannabis para mitigar manifestações comportamentais semelhantes às reportadas por Carly Fleiscchmann. 

Alguns casos extremante dramáticos de autoagressividade tiveram extraordinária melhora não apenas em relação a estes ataques, mas também, a exemplo de Charlotte e Anny, significativas melhoras cognitivas e em sintomas relacionados à interação social e conexão com o meio ambiente. 

O documentário “Weed” foi dirigido pelo neurologista Sanjay Gupta, consultor da CNN famoso por sua histórica oposição ao uso medicinal da Cannabis. Após o impacto desse trabalho, entretanto, Dr. Gupta reviu sua posição, criticou o alarmismo sobre o uso medicinal da Cannabis e pediu desculpas públicas por ter contribuído para criar medo na população sobre as diversas e versáteis formas de se fazer uso dos recursos medicinais dessa planta e de seus derivados. De fato, ele se viu ainda compelido a realizar um novo episódio, “Weed 2”, no qual retrata o drama de inúmeras famílias norte-americanas que, após conhecerem o caso de Charlotte, passaram a migrar para estados norte-americanos onde o uso medicinal da Cannabis é regulamentado, na esperança de poder aliviar severos sofrimentos e, em muitos casos, salvar a vida de seus entes queridos. No Brasil, os casos de sucesso, via uso clandestino do óleo rico em CBD, se multiplicam a cada dia, assim como as angústias em consequência dos impiedosos entraves legais e burocráticos que, contrariando receitos éticos da medicina e da ciência, dificultam o uso tanto de produtos fitoterápicos, quanto de canabinoides isolados, para os quais a biossegurança já é conhecida empiricamente há milênios (Kalant, 2001) e ratificada pela ciência moderna (Banerjee et al., 1976; Bergamaschi et al., 2011b; Carlini, 2004; US-National-Toxicology-Program, 1996). Especificamente em relação ao canabidiol purificado, uma extensiva revisão da literatura médico-científica realizada em 2011 (Bergamaschi et al., 2011b) verificou a segurança do uso deste fitocanabinoide. 

Trabalhos com experimentos in vitro mostraram que CBD não é tóxico para células. Estudos em humanos verificaram que o uso crônico não causa alterações em apetite, não causa catalepsia, não afeta parâmetros fisiológicos (batimentos cardíacos, pressão sanguínea, e temperatura corporal), não afeta a mobilidade gastrintestinal, não altera funções psicomotoras e não é psicotrópico. Uso crônico de doses até 1500 mg/dia são bem toleradas por humanos. O único efeito colateral evidenciado em humanos foi a possível ocorrência de sonolência (Bergamaschi et al., 2011b; Cunha et al., 1980; Maa e Figi, 2014). 

Em camundongos, foi observado que administração de CBD a fêmeas lactantes no primeiro dia de nascença pode reduzir a produção de espermatozoides pelos filhotes machos na fase adulta (Dalterioed e Rooij, 1986). Em relação a interações medicamentosas, estudos in vitro sugerem uma possível alteração no metabolismo hepático da droga ciclosporina, um agente imunossupressor (Jaeger et al., 1996). Como discutido acima, o THC pode ter ação ansiogênica em altas concentrações, sobretudo para indivíduos geneticamente sensíveis, que correspondem a cerca de 1% da população (Arendt et al., 2008; Stowkowy e Addington, 2013), mas este efeito é bloqueado por CBD, sobretudo quando a proporção CDB /THC é alta, como é o caso, por exemplo, do óleo de Cannabis utilizado por Charlotte, Anny e demais casos reportados nesta revisão. De qualquer modo, é importante notar que em roedores o uso diário de THC por 13 semanas ou por dois anos não causou nenhuma patologia ou toxicidade aguda ou crônica. 

Pelo contrário, os ratos que receberam THC por dois anos viveram mais tempo e tiveram significativamente menos incidência de tumores malignos e benignos do que animais não tratados (US-National-Toxicology-Program, 1996). 

Causa enorme comoção as cenas mostradas em “Weed 2” e o drama de famílias que vão perdendo seus filhos para encefalopatias epiléticas, especialmente quando sabemos que em 1843 os potentes efeitos anticonvulsivantes do extrato de Cannabis já eram formalmente conhecidos pela ciência ocidental. O embargo científico imposto ao mundo pela proibição do uso medicinal da Cannabis desde 1937 causou desnecessárias perdas de vidas e devastadores sofrimentos. Fato que acabou forçando pessoas comuns a retomarem, contrariando as leis, seus direitos fundamentais de cuidar da sua saúde e do bem estar de seus familiares, buscando sempre, porém, estar a par das inúmeras informações já disponíveis na literatura cientifica - as quais parecem permanecer ignoradas pelas autoridades e por parte dos conselhos médicos do mundo. Conforme as informações revisadas aqui, este histórico e heroico movimento civil anti-obscurantista, ao qual estamos assistindo, está contribuindo também para o aprofundamento do entendimento cientifico da etiologia da epilepsia e do autismo, revelando novos caminhos para o desenvolvimento da ciência médica, para o resgate de vidas e para o alívio de sofrimentos severos. 

Apêndice 

Links para reportagens sobre uso de Cannabis na terapia de sintomas de autismo severo: 

https://www.youtube.com/watch?v=62eDqPmc7Wo 
https://www.youtube.com/watch?v=mRUWWtTjHPE 
https://www.youtube.com/watch?v=Q0XVBYZjW_8 
https://www.youtube.com/watch?v=nwi--2aXhnU 
https://www.youtube.com/watch?v=_ZuUafvZ4to 

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