quarta-feira, 1 de maio de 2013

Texto histórico da agricultura orgânica do Brasil


A hipótese de trabalho, ou paradigma, para a prática da agricultura convencional, chamada moderna, olha os fatores que influenciam a produção, tais como solo, lavração e preparo do solo, adubação, pragas e controle de pragas, concorrência das ervas invasoras ou a seleção genética das variedades cultivadas, etc., de maneira meramente analítica ou reducionista. Cada fator é encarado independentemente dos demais, como se ele se encontrasse sozinho numa caixa ou gaveta fechada. Entre as gavetas não há praticamente ligações. O raciocínio é linear. Dentro de cada gaveta, com poucas ou nenhuma ramificação lateral, quando aparecem dificuldades, só se tratam sintomas.

Dentro desta visão, na primeira gaveta, o solo é visto quase como se fosse um mero substrato mecânico, que apenas permite à planta ancorar-se para que o vento não a possa levar e que serve também como veículo para nutrientes minerais solúveis ou que facilmente entram em solução.

Quando a agronomia moderna analisa solo para a determinação do tipo e quantidade de adubo a ser aplicado num determinado plantio para a obtenção de uma produção máxima, a análise é feita com métodos que partem deste postulado. O fósforo, por exemplo, é determinado lixiviando-se, isto é, lavando a amostra de solo com um ácido suave e analisando o lixiviado. Isto porque se pressupõe que a planta só pode absorver o fósforo solúvel ou facilmente solubilizável. É comum, então, que a análise nos diga que um determinado solo é muito pobre em fósforo quando, na realidade, ele pode ser um solo até bastante rico em fósforo. Mas o fósforo está presente em forma insolúvel.

É claro que este tipo de política é muito boa para aqueles que querem vender ao agricultor as formas caras de fosfatos solúveis, tais como o superfosfato simples ou triplo, ou mesmo os fosfatos complexos, quando, numa agricultura sadia, com solos vivos, seriam suficientes os fosfatos naturais, em foram de rocha moída simplesmente.

Na segunda gaveta encontra-se a praga, todas aquelas criaturas que podem causar estragos a nossos cultivos. Elas são vistas como se fossem inimigos arbitrários, aparecem como por milagre e têm condições de causar estragos muito graves ou destruir completamente uma lavoura, sempre que nela se conseguem instalar.

Supõe-se que basta que esteja presente numa plantação de batatas ou tomates a espécie certa de pulgão e que ela vai então proliferar e continuar seu trabalho nefasto até acabar com nossa colheita. O mesmo aconteceria com os fungos, nematóides, ácaros ou qualquer outro parasita. Nesta visão, as pragas são organismos fundamentalmente ruins. Sempre que possível devem ser "erradicados". Se não conseguimos exterminá-los, temos que mantê-los afastados de nossos cultivos. As aduanas de muitos países costumam confiscar e destruir frutas ou qualquer material vegetal ou animal encontrados na bagagem dos viajantes internacionais, pois poderiam estar introduzindo alguma nova praga.

Uma vez estabelecida a praga, supõe-se que a melhor maneira de combatê-la é com venenos. Foi desenvolvido, assim, todo um arsenal de biocidas fulminantes e persistentes, os agrotóxicos: inseticidas, acaricidas, nematicidas, fumigantes, fungicidas, bactericidas, até rodenticidas e molusquicidas e outros pesticidas.

A palavra pesticida expressa bem esta visão. Trata-se de matar "pestes". Mais recentemente, diante da crescente conscientização ecológica, a indústria química, que fatura somas fabulosas com a produção e venda de venenos, passou a não mais gostar do termo pesticida e a promover o eufemismo "defensivo". Já era comum também iludir o pobre agricultor com a palavra "remédio". Por isso, no Brasil, os agrônomos conscientes propuseram um termo mais de acordo com a realidade - agrotóxico. Este termo está hoje ancorado por lei.

Os venenos são pulverizados sobre os plantios de maneira uniforme, de preferência de avião. Até os novos aviõezinhos ultraleves já são às vezes usados para este fim. Para facilitar o trabalho do agricultor, o fabricante de venenos prepara os chamados calendários de aplicação, entre nós também chamados de "pacotes tecnológicos". O agricultor só precisa seguir a risca as instruções, aplicar preventivamente o veneno no momento certo, sem ter que constatar se há ou não incidência de praga. Assim ele estará acabando com todos os bichos indesejáveis. Em alguns cultivos, por exemplo, maçãs, ele fará até 30 ou mais aplicações por temporada. A coisa não é muito diferente na parreira, no pêssego, no moranguinho, em hortaliças. Mesmo depois da colheita ainda se aplicam venenos. No caso da macieira, a maçã, quando entra no frigorífico, é imersa num banho de fungicida. Depois passa por um secador e recebe uma borrifada de cera para que o veneno fique sobre a fruta.

O publicitário que faz o lindo cartaz para induzir as pessoas a comerem estas maçãs, opera em gaveta à parte. Ele nem ouviu falar em toxicologia, para quê? O cartaz mostra uma linda criança comendo a maçã, casca e tudo...

O inço ou erva invasora é visto numa terceira gaveta. Os inços são considerados plantas que não deveriam de existir. Eles competem com nossos cultivos, por água, fertilizante, espaço, e eles poderiam abrigar pragas. Enquanto não conseguirmos colocá-los na lista das plantas em vias de extinção teremos que combatê-los. Mais uma vez, existem instrumentos maravilhosos, prontos para matá-los - os "mata-matos" ou herbicidas, potentes fitocidas, eficientes e fáceis de usar. Alguns deles matam tudo que é verde, outros, dependendo do modo de aplicação, são mais "seletivos", eles matam algumas espécies e permitem que outras, nossas plantas cultivadas, se recuperem de um choque inicial. Alguns são aplicados no solo nu para evitar que germinem as sementes das ervas nativas, outros matam as plantas por contato, ou matando apenas as partes da planta que tocam, ou penetrando na seiva e matando toda a planta. Os "desfolhantes" usados para destruir milhões de hectares de selva no Vietnam e que também foram usados em algumas fazendas na Amazônia, são deste último tipo.

O alvo é manter nu o solo entre as fileiras e debaixo das plantas cultivadas. Houve uma época em que um campo de trigo, na Europa, era algo muito lindo de ver - uma orgia de flores. Nunca esquecerei o púrpura das papoulas. Mais tarde os trigais se tornaram monótonos. Tudo o que florece era eliminado com veneno, até as flores silvestres nas margens das lavouras e beiras de estradas. O vôo irriquieto da borboleta tornou-se espetáculo deveras raro. Os ambientalistas tiveram que comprar terras para dar às ervas naturais - entre elas todas as ervas medicinais - uma chance de sobrevivência. Felizmente, hoje, 1997, verifica-se uma inversão. Conforme constatei em minhas últimas viagens pela Europa, a crescente conscientização ecológica, faz com que na Alemanha já quase não mais se aplique herbicidas nas márgens das lavouras. As papoulas estão voltando.

Uma vez que, como vimos na gaveta um, a função do solo seria apenas ancorar as plantas e veicular nutrientes solúveis, não importa, realmente, se ele está habitado por seres vivos - por minhocas, artrópodos e outros animaizinhos, especialmente colêmbolas e protozoários ou por fungos, algas, bactérias. Portanto, não precisariamos nos preocupar com os efeitos que os adubos solúveis e as enxurradas de venenos possam vir a ter sobre todo este complexo de vida. Já que todos estes seres parecem mais incomodação que vantagem aparente, porque não matá-los todos de uma vez?

Também nunca esquecerei, quando ainda estava no negócio da agroquímica - sim, sou tecnocrata dissidente - uma vez veio a dar em minha mesa um folheto técnico, de nosso departamento de pesquisa, que recomendava, imaginem, heptacloro para eliminar minhocas! De tal maneira foram doutrinados alguns agricultores que já me aconteceu receber consultas sobre como eliminar "ecologicamente", sem venenos, minhocas em parreiras ou pomares... Me lembro ainda de ter lido documentos técnicos de autoridades agrícolas alemãs, que insistiam em que o húmus era totalmente desnecessário na agricultura tropical, que bastavam os fertilizantes sintéticos. De fato, o ideal da agricultura moderna parece ser a hidroponia, isto é, cultivar as plantas em substratos inertes, banhados em solução de nutrientes solúveis. Muitas lavouras modernas com seus solos mortos vêm a ser quase isto.

Por isso, quando entregamos a um laboratório de análises agronômicas uma amostra de composto ou biofertilizante de biogás, eles nos fornecem uma simples análise NPK, isto é, uma análise meramente elementar que só procura determinar os elementos N, nitrogênio, P, fósforo e K, potássio, raras vezes algo mais. Eles não procuram nem ver a extremamente complexa e ainda quase desconhecida bioquímica destes fertilizantes vivos, fertilizantes que alimentam a vida do solo.

Olhemos a próxima gaveta. Trata-se da gaveta que contém os fatores genéticos. Os geneticistas que fazem a seleção das novas variedades norteiam-se pelo critério da eficiência máxima, isto é, produção máxima por hectare. O que realmente conta é aquele quilo a mais na colheita. É claro que também levam em conta a estética. A maçã ou batata deve ter aspecto atrativo na estante do supermercado.

Ainda há a questão da seleção de variedades resistentes às pragas - aparentemente uma ligação desta gaveta com a gaveta número dois. Mas a resistência ao ataque de parasitas é vista como apenas geneticamente inerente à variedade. Não se procura ver relação entre suscetibilidade da planta e o ambiente em que ela terá que viver, a não ser o ambiente de nossas lavouras modernas - solo morto, muita química.

É por isso que as gigantescas corporações do negócio dos agrotóxicos já compraram quase todas as companhias de produção de sementes. Elas querem monopolizar os bancos genéticos para controlar a seleção de maneira a poder promover somente variedades que dão resposta máxima a seus insumos químicos. O ideal delas é um novo pacote: semente patenteada recoberta. Esta escapa completamente do controle do agricultor, que foi quem, no passado, por seleção consciente ou empiricamente inconsciente, criou a fantástica diversidade biológica dos cultivos nas tradicionais culturas camponesas. Querem obrigar o agricultor a não mais produzir semente própria para comprar, sempre de novo, semente peletizada, semente que vem recoberta de adubo químico, de fungicida, de inseticida, eventualmente outros cidas e, esta é a parte mais importante, um herbicida total para o qual a respectiva variedade da semente é resistente. Não mais resistência a pragas, resistência ao agrotóxico..!

O paradigma contém mais algumas gavetas. Mas trata-se de gavetas que o especialista em assuntos agronômicos prefere não olhar. Vejamos a gaveta ecologia. Somente à medida que os ambientalistas fazem muito barulho por causa dos passarinhos e peixes mortos eles aceitarão levar em conta efeito letal mais seletivo para seus venenos, para só matar parasitas sem, aparentemente, pisar a fauna silvestre. Sob pressão, a indústria falará de "combate integrado". Isto significa usar o veneno somente em caso de emergência, nunca preventivamente, como no caso do "calendário de aplicação" e aplicar somente no momento certo do ciclo vital do parasita para minimizar a quantidade e o número de aplicações de venenos. Mas é claro que esta tática não é do interesse deles, diminui as vendas, de modo que, na prática, não passa de propaganda ou truque para abrir mais mercado. Alguns anos atrás, os traficantes de veneno conseguiram convencer uma secretaria estadual de agricultura de que deveriam aplicar certos inseticidas sobre todas as lavouras de algodão, por avião ou helicóptero, após a colheita, sobre o restolho, para "erradicar" o bicudo. Foram necessárias algumas ações judiciais para evitar esta loucura. Mas a secretaria, pelo que me consta, já tinha comprado os venenos. Não houve perda de negócios para a indústria.

Podemos mencionar mais uma gaveta, a justiça social. Mas esta parece não interessar. Para que existem sociólogos e politólogos? Não se deve invadir seara alheia. O que interessa hoje é o agribusiness, pouco importa àqueles que o promovem o número crescente de agricultores obrigados a abandonar a terra.

Esta é, em essência, se bem que apresentada de maneira bastante simplificada, para melhor compreensão, a visão reducionista dentro da qual é encarada a fitossanidade na agricultura, dita moderna.

Fato interessante na aplicação deste paradigma é que, à medida que o aplicamos, transformamos os campos agrícolas de maneira a tornar realidade o que diz o paradigma. Na maioria de nossos campos agricolas o solo não passa de substrato mecânico sem vida e as pragas se comportam como se fossem inimigos arbitrários.

Mas uma minoria crescente de agricultores e técnicos em agricultura começam a ver as coisas desde uma perspectiva diferente. Eles raciocinam não em termos reducionistas, mas holísticos. Para eles tudo está ligado com tudo. Não conseguem ver inimigo arbitrário no parasita. Tampouco querem exterminá-lo. A simples idéia de que pudesse haver criaturas que merecem ser exterminadas os repugna. Como qualquer iniciante em biologia e ecologia sabe, um processo tão vetusto como é a Evolução Orgânica, mais de três e meio bilhões de anos, não pode produzir espécies erradas, que nem deveriam existir.

Se os parasitas realmente fossem como postula a indústria em seus lindos folhetos e cartazes, graficamente perfeitos, e em seus agressivos anúncios de TV, já não haveria vida neste planeta. Não há espécie vegetal ou animal que não tenha seus parasitas e eles existem há milhões de anos. Todos teriam tido tempo amplamente suficiente para exterminar seus hospedeiros e se teriam acabado também. O grande processo vital da Evolução Orgânica teria entrado em colapso. Se isto não aconteceu é porque o parasita não tem condições de prosperar sobre hospedeiro são. Ele só prospera sobre o que está de alguma forma em situação marginal. Em um ecossistema intato, toda população, de seja qual for a espécie, sempre tem seus indivíduos doentes, fracos, feridos, desequilibrados. É em cima destes indivíduos que o parasita prospera, sem jamais exterminar toda a população da espécie hospedeira. Ele é um dos crivos do mecanismo de seleção natural, que tende a melhorar constantemente as espécies.

Os camponeses tradicionais, com sua sabedoria ancestral, sabiam que a praga não ataca a não ser as plantas que não estão bem equilibradas. Por isso, eles procuravam obter cultivos sãos através de um manejo adequado do solo, o que incluia descanso da terra, compostagem de resíduos vegetais e animais, adubação verde, adubação foliar, cobertura morta, rotação de cultivos, plantas companheiras e muitas outras práticas. Os agricultores biológicos modernos, com os conhecimentos científicos de hoje, obtem resultados muito melhores. Só raras vezes eles combatem diretamente as pragas. Então, eles têm à sua disposição uma série de defensivos naturais, não tóxicos, tais como cinza, talcos de rochas, extratos herbais, caldos biológicos como soro de leite, chorume de biogás e outros inimigos naturais.

Um perito convencional confrontado com uma laranjeira ou um pessegueiro atacados de cochonilha ou pulgão, ou por doença fúngica, olha a árvore e procura determinar qual a espécie do parasita. Então escolhe o veneno que considera mais adequado e mais barato para livrar a árvore de seus atacantes. Em geral o raciocínio termina aí. Talvez ele se preocupe ainda com o tipo de traje e proteção que os aplicadores devem usar, porque tem havido muitas intoxicações e mortes.

Já o perito de visão ecológica olha também para baixo. Ele examina o solo. Pergunta ao agricultor qual a adubação que fez, quais os herbicidas que usou, se usou agrotóxicos no ano anterior. Com uma pá de corte ele levantará uma fatia de solo. A extrutura ou falta de extrutura deste solo, os organismos que nele constata ou deixa de constatar, tudo isto lhe diz muito sobre o porquê do ataque de praga.

Uma vez, observando ataque de pulgão em cítricas com agrônomos convencionais, estes, irritados, me perguntavam - mas porque você vive perguntando sobre o programa de adubação, nós estamos falando de pulgão! Logo descobri que o agricultor havia aplicado grandes quantidades de esterco de galinha fresco. Aí estava a causa do ataque de pulgão. Mais adiante veremos porque.

Na visão convencional da fitossanidade, um dos fatores mais indicados como propiciador do ataque de pragas é a monocultura. O argumento é simples: quando confrontado com imensas e maciças extensões de seu hospedeiro, o parasita, quer se trate de animal, fungo, bactéria ou vírus, e mesmo planta, como no caso da erva de passarinho, oronbache ou cúscuta, faz uma verdadeira festa, o que não seria possível se os indivíduos da planta hospedeira estivessem dispersos, intercalados com muitas outras espécies, como é o caso na floresta nativa.

Mas na Natureza também ocorrem monoculturas, se bem que apenas em condições ambientais extremas. Num lago que recebe excesso de nutrientes - esgotos ou adubos lixiviados das lavouras - ocorre uma situação chamada eutroficação: uma só espécie de alga predomina sobre as demais formas de vida vegetal e seus predadores não mais conseguem mantê-la controlada. Enquanto ela dura, temos aí uma monocultura sã. As chamadas marés vermelhas são fenômenos desta natureza. No Ártico, em ecossistemas de duna ou praia, em desertos, banhados, ocorrem muitas vezes monoculturas de uma só espécie vegetal. Em banhados de água salgada, por exemplo, podem observar-se monoculturas desta ou daquela espécie, elas se sucedem, mas quase não se misturam. Nunca observei proliferação séria de parasitas nestas monoculturas naturais. Quando algum parasita aparece, a incidência é limitada a alguns indivíduos marginais da população hospedeira.

Mas aqui no Rio Grande do Sul temos enormes monoculturas de eucalipto, algumas delas milhares de hectares em uma só peça. Praticamente não se conhecem pragas nestes plantios. O único parasita sério que conheço no eucalipto em nosso Estado é a erva de passarinho. Ela ataca variedades que gostam de solo bem drenado quando estas se encontram plantadas em solo de nível freático alto. Este é o caso dos grandes eucaliptos do Parque da Redenção, em Porto Alegre. Em árvores sadias, mesmo quando algum pássaro traz a semente da erva, ela germina mas não consegue vingar. O problema com a formiga cortadeira se limita às primeiras semanas, enquanto as mudas recém transplantadas ainda estão fracas.

Também temos monoculturas igualmente grandes e extensas de acácia negra. Nestas, a praga mais temida é o serrador, um lindo escaravelho com grandes antenas. A fêmea, à maneira de um castor, corta troncos e galhos de até uma polegada de diâmetro e faz a postura na parte destacada, morta, do galho. Pude observar que o ataque é seletivo. Partes de um plantio são atacadas, outras não. Parece haver correlação entre ataque e condição de solo. Em áreas de solo muito úmido ou em solos extremamente pobres e esgotados o serrador ataca, em solos ricos, argilosos, bem drenados, não vi ataque. Esta e outras observações contradizem frontalmente o paradigma convencional.

Portanto, a história deve ser mais complicada. Se é verdade que a grande monocultura é ecológica e socialmente indesejável, é também verdade que podemos obter monoculturas sãs, sem veneno. Parece que está envolvido um fator de palatabilidade. Às vezes o parasita gosta do hospedeiro, consegue proliferar, outras vezes não. A imagem do parasita como inimigo arbitrário não se aplica.

Em mais de cinqüenta anos de diálogo intensivo com a Natureza, fiz muitas observações deste tipo. Enquanto escrevo estas linhas, de minha janela, estou observando uma colônia de grandes lagartas cabeludas em um ficus. Elas passam o dia dormindo na base do tronco. À tardinha, em caravana, sobem para pastar. Mas elas só comem as folhas dos galhos internos, de folhas fracas por falta de sol, os galhos que a árvore acabaria perdendo mesmo sem este ataque. Interessante é a preferência por certo tipo de folhagem numa mesma árvore. Todos os anos é assim.

Há um outro postulado da fito-farmacologia convencional que não pode estar sempre certo. Quando combatemos parasitas com veneno, digamos que estamos combatendo cochonilhas em laranjeiras com parathion, é comum aparecer logo depois ataque violento de ácaros. Torna-se então necessário recorrer a um acaricida. A explicação proposta é de que o parathion, como inseticida de amplo espectro, teria eliminado os inimigos naturais dos ácaros, que teriam então chance de proliferar livremente. É o velho postulado do inimigo arbitrário. Se não mantivermos sob controle as populações dos organismos parasitas, seja com veneno ou por predação natural, eles vão atacar. Até a filosofia do combate biológico muitas vezes é a mesma da guerra química.

Mas a proliferação de ácaros também pode ser desencadeada pelos carbamatos modernos que são fungicidas e que certamente não matam seus inimigos naturais. Além disso, os fungicidas modernos, muitas vezes, parece que promovem exatamente os fungos que deveriam eliminar. Em nossa região vitícola, quando foram abandonados os tradicionais e baratos tratamentos a base de cobre, cal e enxofre, em favor dos carbamatos caros, os viticultores logo se viram numa situação em que, quanto mais pulverizavam, mais tinham que pulverizar, em alguns casos até 30 vezes por temporada. É como se o fungicida tornasse a parreira mais palatável para o fungo. Certamente vão surgir complicações bem piores com a entrada dos ainda mais caros e mais perigosos fungicidas sistêmicos.

Entre os agricultores orgânicos é conhecimento geral que o ataque de pragas tem a ver com o estado metabólico da planta. A suscetibilidade ao ataque do parasita, portanto, está primordialmente ligada à nutrição da planta. Outros fatores, tais como concorrência dos inços, interações positivas ou negativas de plantas companheiras (alelopatia), condições climáticas, etc., também influem. As condições para a saúde da planta devem ser otimizadas para que o ataque da praga seja minimizado. Um manejo adequado do solo permite obter um cultivo livre de parasitas mesmo que ele esteja rodeado de lavouras atacadas.

Para fins de demonstração é fácil preparar duas plantas em maceta ou canteiro, de tal modo que uma, em solo equilibrado, se mantenha livre da praga, enquanto que a outra, na terra desequilibrada, seja atacada. Quando a praga ocorre, digamos pulgão em tomate, pode-se fazer tocar as folhas das duas plantas. O pulgão não vai da planta atacada para a outra. Mas se queremos ver ataque na planta que até então estava sã, basta dar-lhe uma boa dose de adubo nitrogenado solúvel, especialmente se for adubo amoniacal.

Quais serão os processos metabólicos envolvidos?

É comum supor-se que a planta sã produz suas próprias defesas contra a praga, que ela absorveria da microvida do solo ou produziria ela mesma substâncias antagônicas aos parasitas, seus próprios pesticidas, por assim dizer, ou que ela teria meios mecânicos de defesa, cutícolas mais duras ou pelos mais densos. Tudo isto deve influir. Mas, parece que mais importante e de importância capital é um fator bem mais simples:

Francis Chaboussou, um pesquisador francês no INRA (Institut National de la Recherche Agronomique), em seu livro propõe a teoria da "Trofobiose" Em sua expressão mais sucinta esta teoria diz que o parasita morre de fome na planta sã! Um aparente paradoxo.

Parece que os parasitas carecem do mecanismo enzimático que lhes permitiria decompor proteínas em seus aminoácidos constituintes. Este é um passo indispensável quando um organismo se alimenta das proteínas de outro. As proteínas estranhas não podem ser diretamente aproveitadas, porque cada organismo tem suas proteínas específicas. Com os aminoácidos obtidos na proteólise novas proteínas são sintetizadas. É como demolir uma casa, para, com os tijolos, telhas, cabos, canos, fazer nova casa, porém diferente. Os parasitas seriam parasitas por causa desta deficiência. Eles precisam encontrar abundância de aminoácidos e demais nutrientes na seiva - açucares, sais minerais e nucleótidos. Estes últimos são as peças base, as letras, por assim dizer, do código genético.

De acordo com Chaboussou, os parasitas, quer se trate de insetos, ácaros, nematóides, protozoários, fungos, bactérias ou mesmo vírus, só podem proliferar em plantas com desequilíbrio metabólico que leve a níveis exagerados de nutrientes na seiva. Numa planta sã estes níveis são baixos. Proteossíntese e proteólise estão equilibradas. Logo que aparecem aminoácidos e os demais nutrientes, eles são absorvidos pela proteossíntese ou, quando a planta está em repouso, como é o caso da hibernação ou estivação, a planta cessa de produzir aminoácidos e nucleótidos, também pára de levantar nutrientes minerais. Numa planta assim, o fungo ou o pulgão não tem vez, ele morre de fome ou seus sentidos lhe dizem que não adianta instalar-se nesta planta.

Mas, como acontecem os níveis exagerados de nutrientes? Ou por inibição da proteossíntese os nutrientes ficam sobrando, ou porque é exagerada a oferta. Também pode haver excesso quando a proteólise predomina sobre a proteossíntese. Este é o caso das folhas velhas.

Para que ocorra congestão de aminoácidos, a inibição da proteossíntese pode ser mínima. A planta pode ainda estar crescendo vigorosamente e ter aspecto muito sadio. Vejamos uma metáfora. Imaginemos uma autopista com um fluxo de carros a l20 km/h. Aparece um estrangulamento de três para duas vias. Dalí para diante o fluxo retorna a l20 km/h, mas dalí para trás surge um grande congestionamento.

Chaboussou mostra que muitos dos modernos agrotóxicos inibem proteossíntese. A maioria deles é até certo ponto sistêmica, quer dizer, penetra na seiva da planta. Eles terão, portanto, algum efeito, positivo ou negativo. Como se trata de biocidas, é provável que predominem os efeitos negativos. Esta deve ser a razão porque, à medida que aumenta o uso dos agrotóxicos, aumenta a incidência e o número de pragas. Não se trataria só da eliminação dos predadores dos parasitas, mas de aumento de suscetibilidade das plantas cultivadas. Muitos dos casos em que pensamos que houve aparecimento de resistência da praga ao agrotóxico são na realidade casos de aumento de suscetibilidade da planta, especialmente no caso de doenças fúngicas. É por isso que Chaboussou deu à primeira edição de seu livro o título "As plantas que adoecem dos pesticidas"( .

A taxa de proteossíntese depende, fundamentalmente, de uma nutrição equilibrada. Mas, da maneira como alimentamos nossos cultivos nas lavouras modernas, torna-se quase impossível encontrar plantas equilibradas. Aplicamos fertilizantes solúveis, em forma de sais concentrados, de acordo com fórmulas empíricas, baseadas em análises que muitas vezes não têm sentido. A aplicação é feita toda de uma vez, em geral no sulco, junto com a semente, raramente dividida em duas ou mais aplicações, sendo as posteriores de cobertura ou de aplicação foliar. Assim é impossível evitar que a planta absorva demais num momento e passe fome mais adiante, quando a chuva lixiviou ou a química do solo fixou os elementos que estavam solúveis. Este é quase sempre o caso do fósforo. A planta também receberá demais de um elemento enquanto sofrerá deficiência de outro. Nem precisamos aqui entrar na problemática dos antagonismos entre os diferentes nutrientes que entram em jogo quando eles estão maciçamente disponíveis.

Mais sério é o problema dos micronutrientes. A proteossíntese parece ser muito sensível a deficiências em micronutrientes. Quando degradamos a estrutura do solo pela excessiva agressão mecânica, causamos erosão e perda de húmus, destruimos a vida do solo pela agressão química e eliminamos o alimento da microvida do solo, não mais aportando matéria orgânica porque eliminamos a rotação de cultivos, compostagem, adubação verde. O que podemos esperar? Num solo morto a planta sempre encontra dificuldades para levantar micronutrientes.

Aqui convém mencionar um dos fatores mais importantes para a saúde das plantas. Um fator que a fitossanidade na agronomia moderna praticamente não leva em conta: a micorriza.

A maioria das plantas vive em simbiose com outros organismos no solo. A ponta da raiz capilar, a última extensão da raiz, já quase microscópica em diâmetro, exuda uma substância gelatinosa, chamada mucigel, com a qual se recobre como se fosse uma luva. Nesta capa constituída de alimentos energéticos, açucares e amidos, instalam-se bactérias especiais, muitas vezes específicas das respectivas plantas. Além disso, esta capa e o próprio tecido da raiz são atravessados por filamentos, os hifens do micélio de certos fungos, também quase sempre específicos. Estes filamentos se extendem até vários metros além da ponta da raiz e podem unir-se com o micélio que serve à planta vizinha da mesma espécie. Esta simbiose tripartita - planta, bactéria e fungo, a que damos o nome micorriza, consegue retirar nutrientes minerais até da estrutura cristalina da rocha, isto é de cacos de pedra e grãos de areia ou de concreções minerais. Mas a micorriza só funciona em solo vivo, rico em húmus. Não mais precisamos entrar em detalhe sobre como os métodos da agricultura moderna destroem a micorriza - em proveito da industria química...

Outra simbiose importante é o rizóbio. As leguminosas albergam em nódulos especiais que produzem em suas raízes determinadas bactérias que fixam para elas nitrogénio do ar, fazendo gratuitamente, em temperatura de ambiente e em pressão atmosférica o que a indústria química, no processo Haber-Bosch só consegue fazer em altas temperaturas e tremendas pressões e com enorme custo de energia.

No verão de l982, depois de mais de dez anos de ausência, visitei os vinhedos do Palatinado na Alemanha. Grandes manchas de parreiral estavam amarelas como enxofre.Tratava-se de uma deficiência chamada clorose, uma espécie de anemia da planta devida à dificuldade em absorver ferro. Mas não falta ferro no solo. A dificuldade provém dos modernos métodos agrícolas. Os vinhedos estavam altamente mecanizados, os solos compactados pelo peso das máquinas. Doses elevadas de adubos solúveis e as enxurradas de venenos acabaram com a vida do solo. A indústria química, causadora deste problema, veio logo oferecer uma nova "solução", aplicação foliar de um quelato de ferro. Assim, em vez de penitenciar-se de seus erros, ela consegue fazer ainda mais negócios.

Quanto ao aumento na produção de aminoácidos na planta, basta olhar as pesadas aplicações de adubos nitrogenados solúveis, especialmente os derivados do amoníaco - sulfato de amônio, uréia, nitrato de amônio e outros. O efeito é o mesmo quando o amoníaco é de origem orgânica. A aplicação de esterco fresco de galinha é causa quase imediata de ataque de pragas. O alto conteúdo de nitrogênio está em forma de ácido úrico que logo libera amoníaco no solo.

A teoria de Chaboussou também explica porque numa mesma planta às vezes apenas algumas folhas, em geral as mais velhas, são atacadas, outras não. Numa planta de abóbora ou pepino é comum ver-se forte ataque de mildiú nas folhas velhas, enquanto que o resto da planta está limpo. Estas são as folhas que estão sendo drenadas de seus nutrientes para serem levados às folhas novas, nelas a proteólise predomina sobre a proteossíntese.

Naturalmente a coisa é mais complexa, não estão em jogo apenas os aminoácidos, mas como já vimos acima, também os açúcares, que são os repositório de energia da célula, sem a qual a proteossíntese não pode funcionar. O mesmo se aplica aos nutrientes minerais. A proteossíntese funciona quando todos os ingredientes necessários estiverem presentes. Quando houver estrangulamento de qualquer um deles, ela se inibe. Isto causa congestionamento dos demais na seiva, a seiva se torna mais nutritiva para o parasita. Por isso, a praga só vinga em planta desequilibrada.

A teoria de Chaboussou tem a grande vantagem de ser facilmente verificável ou refutável a campo e em laboratório. Por que ela continua ignorada?

Para mim, além do diálogo direto com a natureza, a maior prova de que ela deve ter muito de verdade é como a indústria química se recusa solenemente de dela tomar conhecimento. Há mais de dez anos alertei os departamentos de pesquisas de duas grandes transnacionais dos agrotóxicos, só diziam que não tiveram tempo de ler o livro de Chaboussou... Para eles nada seria mais fácil do que refutá-lo, se for possível. Em correspondência recente, de um ano para cá, com o IVA, que é o lobby dos agrotóxicos e adubos químicios na Alemanha não consigo que me respondam perguntas concretas quanto à posição deles diante dos ensinamentos de Chaboussou.

Se a teoria da Trofobiose é correta, e tudo parece indicar que é, então nos encontramos diante de uma importante revolução na agronomia, uma revolução que me parece tão importante quanto foi a revolução desencadeada por Liebig no século passado. Devemos fazer o possível para que esta não seja deturpada como foi aquela! Felizmente temos hoje uma constelação diferente.

SOBRE O TEXTO:

Original em língua inglesa publicado na revista THE ECOLOGIST Journal of the Post Industrial Age. Vol. 14 Número 2, 1984.

Nota: Em seu livro

AN AGRICULTURAL TESTAMENT Sir Albert Howard Geoffrey Cumberlege Oxford University Press\ first edition 1940

=> Sir Albert Howard já relata como - 50 ANOS ATRÁS - a prática agrícola demonstrava o absurdo do paradigma fitossanitário da época, que já era o atual. De grande interesse, interesse ATUAL neste livro são os capítulos sobre a saúde dos cultivos, especialmente a relação enfermidade ou praga e húmus, a micorriza e o manejo do solo. De grande atualidade, também é o capítulo sobre o esquema de pesquisa da época. Parece que estão falando da EMBRAPA de hoje.

=> Interessante, este e outros livros estão nas bibliotecas das escolas de agronomia - os "cientistas" atuais acham poder desprezá-los.

=> Em 1979 foi publicada uma nova edição da tradução do alemão deste livro:

Mein landwirtschaftliches Testament Sir Albert Howard Edition Siebeneicher Volkswirtschaftlicher Verlag-Múnchen

=> Quem sabe, alguns agrônomos jovens, outros jovens de espírito, conseguirão achar o tempo para debruçar-se sobre este livro, e, lendo-o com atenção, aprenderão, também, o diálogo direto com a Natureza e com a sabedoria dos antigos.

=> A edição em português "Plantas Doentes Pelo Uso de Agrotóxicos (A Teoria da Trofobiose)" foi publicada pela editora LP&M.

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