sexta-feira, 7 de junho de 2013

Artigo: Anredera cordifolia (Basellaceae), uma hortaliça potencial em desuso no Brasil.

Valdely Ferreira Kinupp; Francisco Stefani Amaro; Ingrid Bergman Inchausti de Barros


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Faculdade de Agronomia - Departamento de Horticultura e Silvicultura, Avenida Bento Gonçalves, 7.712, Bairro Agronomia, CEP. 91.540-000 Porto Alegre/RS, Brasil - Fones: (51) 33.16.65.70. vkinupp@hotmail.com

RESUMO

Anredera cordifolia é uma trepadeira da família Basellaceae muito comum em vários Estados brasileiros, sobretudo, em terrenos abandonados, cafezais e pomares. É considerada erva daninha, pois produz grande biomassa e é muito prolífica vegetativamente. Contudo, suas folhas, tubérculos aéreos e rizomas são comestíveis possuindo potencial de aproveitamento imediato como hortaliça.

PALAVRAS-CHAVES: Anredera cordifolia, plantas alimentícias, soberania alimentar, segurança alimentar, nutrição, fome, etnobotânica.

ABSTRACT

Anredera cordifolia (Basellaceae), a potential vegetable in disuse in Brazil.

Anredera cordifolia is a vine of Basellaceae family that is very common in several Brazilian States, mainly in abandoned lands, coffee plantations and orchards. It is considered as weed because it produces large biomass and it is very prolific by vegetative propagation. However, their leaves, aerial stems and rhizomes are edible and have an immediate potential use as vegetable.

KEYWORDS: Anredera cordifolia, food plants, feed sovereignty , feed security, nutrition, famine, ethnobotany.

Muitas plantas que medram entre as plantas cultivadas ou em áreas abertas pelo homem são denominadas "daninhas" ou "inços", contudo, em sua maioria são espécies com grande potencial de cultivo e/ ou extrativismo como fonte alimentar. Esses termos pejorativos são bastante discutíveis e dependem muito do ponto de vista de quem os categorizam e do momento histórico. Na história da alimentação humana há os modismos temporários e, obviamente, a alimentação sofre influências da mídia e dos interesses econômicos. Assim o homem acabou optando pela especialização ao invés da diversificação alimentar. Muitas espécies, atualmente denominadas "daninhas" por alguns, vêm servindo de alimento para populações humanas desde o Paleolítico e outras, que hoje gozam de privilégios no campo, na indústria, nos mercados e nas mesas dos consumidores, eram até pouco tempo atrás consideradas "inços".

No Brasil, algumas plantas foram durante algum período cultivadas em hortas e roças de subsistência e a partir da introdução de monoculturas e produção em grande escala de umas poucas espécies melhoradas permitindo a fácil aquisição destas em supermercados e feiras, aquelas deixaram de ser cultivadas e até mesmo de serem aproveitadas com finalidades alimentícias. No entanto, dados disponíveis na literatura específica (Díaz-Betacourt et al., 1999; Rapoport et al., 1995; Rapoport et al., 1997; Rapoport et al., 1998; Rapoport et al., 2001) e observações pessoais mostram que o fator preponderante para falta de uso é o desconhecimento do que pode ser utilizado como alimento e seu modo de preparo.

Uma destas plantas que já foi, em determinadas épocas e locais, cultivada como hortaliça ou como ornamental, sendo hoje considerada pela maioria das pessoas uma erva daninha altamente infestante é a espécie Anredera cordifolia (Tenore) Steen (bertalha). Segundo Cronquist (1981) pertence a família Basellaceae, uma pequena família com quatro gêneros (Anredera (= Boussigaultia), Basella, Tournonia e Ullucus) com cerca de 20 espécies tropicais ou subtropicais, especialmente nos Neotrópicos. Destas Basella alba L. de origem incerta, acreditando-se ser nativa da Ásia tropical, Índia ou Indonésia e segundo Paiva (1997) é cultivada e usada como verdura em vários países tropicais da Ásia, África e da América Central e do Sul (no Brasil, sobretudo no Nordeste e Norte). E Ullucus tuberosus Caldas (ulloco, melloco), uma cultura de grande importância alimentar nos Andes, onde os rizomas são usados tradicionalmente. Desta espécie também as folhas são consumidas (saladas) em menor escala (Facciola, 1998).

No Brasil existem poucos trabalhos sobre plantas alimentícias alternativas, sejam inços ou nativas subutilizadas de grande potencial de uso imediato ou futuro. Sendo assim, o objetivo do presente estudo é demonstrar a importância alimentar de Anredera cordifolia, enfatizando seu aproveitamento a partir do extrativismo nos campos agrícolas e terrenos abandonados e fornecer subsídios para pesquisas futuras com enfoques fitotécnicos e nutricionais e divulgar dados de revisão bibliográfica sobre esta espécie para técnicos e produtores rurais estimulando o seu cultivo, comercialização e consumo.

MATERIAL E MÉTODOS

Folhas, bulbilhos aéreos e rizomas de Anredera cordifolia foram coletados em diferentes condições em terrenos baldios de Porto Alegre, RS para descrição botânica, registro fotográfico e correta identificação de acordo com metodologia usual e quando de áreas não poluídas para consumo e elaboração de diferentes pratos. Uma coleta foi depositada no Herbário ICN (Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS) como material testemunha (voucher): V.F.Kinupp 2.921.

Foi realizada uma ampla revisão bibliográfica sobre a família Basellaceae: seus usos, biologia e revisões taxonômicas, entre outros aspectos na literatura específica mundial e em bancos de dados na internet, como o do Kew Botanical Garden (http://www.kew.org/bibliographies).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A espécie estuda é identificada erroneamente com o nome de Anredera baselloides (Kunth) Baill. em herbários e na literatura, como em Lorenzi (2000). Esta espécie existe, contudo é rara e é conhecida no Equador e Peru, porém este nome tem sido freqüentemente mal aplicado para várias outras espécies do gênero Anredera (Eriksson, 1999; Eriksson, 2004).

A bertalha (A. cordifolia) foco do presente estudo é uma trepadeira que se enrola em suportes (volúvel) com rizoma carnoso e bulbilhos/tubérculos aéreos (Foto).

Suas folhas são alternas, curto-pecioladas, largo-ovadas, de consistência carnosa e mucilaginosa com coloração verde-escuro e, como o próprio epíteto específico diz em formato de coração. Suas flores são de cor creme e perfumadas. Segundo Reitz (1968) os frutos são desconhecidos no Brasil. Aliás, a formação de frutos parece ser um fato raro em toda a família. Mesmo na espécie Ullucus tuberosus cultivada, tradicionalmente, nas regiões andinas somente recentemente foi registrado a ocorrência de frutificação (Rousi, 1988). No tocante aos frutos de A. cordifolia até o presente nenhuma população observada produziu. Esta espécie parece reproduzir-se, exclusivamente, vegetativamente por tubérculos aéreos
e subterrâneos.

Em relação ao uso, atualmente, poucas pessoas ainda aproveitam esta verdura. Cita-se o pai do primeiro autor que manejava a bertalha associada ao bananal para consumo familiar e forrageira para porcos (Nova Friburgo, RJ) e uma senhora que cultiva, em espaldeira, tal espécie em sua horta (Santa Cruz do Sul, RS). Entretanto, A. cordifolia é facilmente encontrada em terrenos baldios e cercas na área urbana de Porto Alegre, RS e, em vários Estados do Brasil. Esta espécie é conhecida, popularmente, por vários nomes. O mais difundido no Brasil é bertalha. Colonos de origem alemã em Pirapó, RS chamam de speck blatter (significando folha-gorda, folha-toucinho). Mas, também constam na literatura consultada caruru-de-seda (RS), caruru-baiano (RS), cipo-manteiga (Lontras/SC), carurudo-reino (MG) e na Argentina é conhecida por papilla e zarza e no Peru por olloquitos (Pio Corrêa, 1926; Reitz, 1968; Zurlo & Brandão, 1990); em inglês por madeira-vine (Cronquist, 1981; Facciola, 1998). São citados ainda cipó-babão, folha-santa e trepadeira-mimosa (Lorenzi, 2000). O nome folha-santa, provavelmente, deve-se ao uso medicinal popular para tratar feridas cutâneas em forma de emplastro como o feito pelos colonos alemães de Pirapó, RS e outras comunidades rurais do Rio Grande do Sul.

Dados parciais de Anredera cordifolia mostram a grande quantidade de fitomassa foliar produzida. Suas folhas podem ser consumidas em saladas cruas ou cozidas, refogadas, ensopadas, em bolos e suflês. Os bulbilhos aéreos e rizomas são mucilaginosos similares ao quiabo (Abelmoschus esculentus) e podem ser comidos cozidos como batata-inglesa (Solanum tuberosum). A produção excessiva de mucilagem ("baba"), pouco aceita por grande parte dos consumidores, sobretudo, no Rio Grande do Sul, onde nem mesmo o tradicional quiabo é muito difundido, pode ser amenizada pelo acréscimo de algumas gotas de vinagre ou limão durante o preparo.

A partir da comparação com outra espécie próxima da mesma família acredita-se ser Anredera cordifolia uma espécie de bom valor nutricional. Tomando-se como parâmetro o teor médio de ácido ascórbico, segundo Franco (2004) para a bertalha convencional - Basella alba L. (= B. rubra L.): 58 mg em 100g de folhas cozidas e 41,9 mg na água de cozimento), além de outras vitaminas e fibras alimentares.

Além do aumento da diversidade alimentar e da renda proveniente da venda desta hortaliça, outros benefícios serão notáveis: maximização da produção com o aproveitamento de cercas e árvores mortas para cultivo; economia de tempo e recursos com mão-de-obra para tentar eliminar mecanicamente a "praga" e, sobretudo, ganhos ambientais com a eliminação do uso excessivo de herbicidas para tentar controlar esta vigorosa planta infestante.

Acredita-se que a A. cordifolia apresenta grande potencial para cultivo e comercialização imediatos, pois é bastante similar à algumas espécies já utilizadas, como a bertalha (Basella alba) e com o espinafre-da-nova-zelândia (Tetragonia tetragonioides - Aizoaceae) e com a vantagem de sua rusticidade e das baixas exigências de manejo e, provavelmente, vantagens nutricionais.

LITERATURA CITADA

CRONQUIST, A. An Integrated System of Classification of Flowering Plants. New York: Columbia University Press, 1981. 1262 p.

DÍAZ-BETANCOURT, M.; GHERMANDI, L.; LADIO, A.; LÓPEZ-MORENO, I.R.; RAFFAELE,
E. ; RAPOPORT, E.H. Weeds as a source for human consumption. A comparison between tropical and temperate Latin America. Revista Biología Tropical, v. 47, n. 3, p. 329-338, Fev. 1999.

ERIKSSON, R. Basellaceae comments. roger.eriksson@botany.gu.se. Mensagem pessoal. 30 março 2004.

ERIKSSON, R. Basellaceae. In: Jorgensen, P.M.; Leon-Yanez, S. (Ed.) Catalogue of the vascular plants of ecuador. Saint Louis: Missouri Botanical Garden, 1999. p. 315-316.

FACCIOLA, S. Cornucopia II - a source Book of edible plants. Vista: Kampong Publications, 1998. 713 p.

FRANCO, G. Tabela de composição química dos alimentos. 9ª Edição. São Paulo: Atheneu, 2004. 307 p.

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LORENZI, H. Plantas Daninhas do Brasil - terrestres, aquáticas, parasitas e tóxicas. 3ª ed. Nova Odessa: Instituto Plantarum, 2000. 652 p.

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PIO CORRÊA. M. Dicionário das plantas úteis do Brasil e das exóticas cultivadas. Ministério da Agricultura & Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Vol. 1, 1984 (edição original: 1926). 747 p.

RAPOPORT, E.H.; LADIO, A.; RAFFAELE, E.; GHERMANDI, L.; SANZ, E.H. Malezas comestibles - Hay Yuyos y Yuyuos...Ciencia Hoy, v. 9, n. 49, p. 30-43, Nov./Dez. 1998.

RAPOPORT, E.H.; MARGUTTI, L.; SANZ, E.H. Plantas silvestres comestibles de la Patagonia Andina. Exóticas I. Bariloche: Univ. Nac. Comahue, INTA-UNICEF. 1997. 51 p.

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REITZ, P.R. Flora iIlustrada catarinense - Baseláceas. Itajaí: Herbário Barbosa Rodrigues, 1968. 8 p.

ROUSI, A. The fruit of Ullucus (Basellaceae), an old enigma. Taxon, v.37, n.1, p.71-75. 1988.

ZURLO, C.; MITZI, B. As Ervas Comestíveis - Descrição, Ilustração e Receitas. 2 ed. São Paulo: Editora Globo, 1990. 167 p.

Figura. Ramo florido de Anredera cordifolia (bertalha). Foto: V.F.Kinupp, Porto Alegre/2004.
Detalhes dos bulbilhos aéreos de Anredera cordifolia (bertalha) em escala centimetrada (Foto: V.F.Kinupp, Porto Alegre/2004).

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