Carta de Monteiro Lobato a seu amigo Rangel
Fazenda 3/3/1917
Rangel: A homeopatia!... Eu pensava como você; ou peor ainda, não me dava ao trabalho de pensar coisa nenhuma a respeito. Não acreditava nem descria - não pensava no assunto e pronto. Mas um dia sobreveio o "estalo" e fiquei tonto. O meu Edgarzinho apareceu com uma doença no nariz. Isso na fazenda. Ele tinha dois anos. Corro a Taubaté. Consulto os médicos locais: "O melhor é ver um especialista em São Paulo". Vamos para São Paulo. "Quem é o baita para narizes?" J. J. da Nova. Vou ao Nova. Examina, cheira, fuça e vem com um grego: "Rinite atrófica. Só pode sarar lá pelos 18, 20 anos - mas vá fazendo umas insuflações com isto" – e deu-me uma droga e um insuflador.
Voltamos para Taubaté, muito desapontados. Dezoito anos! Mas minha casa lá era defronte à duma prima. Vou vê-la. Tenho de esperar na sala de visitas um quarto de hora. Em cima da mesa redonda está um livro de capa verde. Abro-o. "Bruckner, O Médico Homeopata". Instintivamente procuro a seção Nariz. Leio conjuntos de sintomas. Um deles coincide com os sintomas da rinite de Edgar. Prescrição:"Mercurius". Entra a prima. Conto o caso do menino e aquele encontro ali. "Vale alguma coisa isto de homeopatia?" pergunto céptico. E ela: "Experimente. Não Custa".
Quando saí, passei pela farmácia. "Tem Mercurius?" Tinha. Comprei Cinco Tostões. "Almeida Cardoso - Rio". Levo pra casa. Falo a Purezinha. Sem fé nenhuma, dou automaticamente os carocinhos ao Edgar, mais do que mandavam as instruções. Cinco em vez de três. Depois, mais cinco. De noite, mais cinco. No dia seguinte, o milagre: todos os sintomas da rinite haviam desaparecido!... Mas sobrevirá uma novidade: purgação nos ouvidos. Cheio de confiança, corro à casa da prima, atrás do livro de capa verde. Procuro "Ouvidos" e leio esta maravilha: "As vezes sobrevem purgação no ouvido por abuso de Mercurius, e nesse caso o remédio é Sulphur".
Vou voando a farmácia. Compro Sulphur. Mais 500 reis. Dou Sulphur ao Edgar e pronto - sarou do ouvido! Sarou da rinite, sarou de tudo! Preço da cura: 1000 reis. Pela alopatia, em troca da não-cura: varias consultas medicas, viagem a S. Paulo, drogas insuflantes e aparelho insuflador - e a desesperança.
Que fazer depois disso, Rangel, senão mandar vir um livro de capa verde e uma botica com todas as homeopatias do Almeida Cardoso? Cem mil reis custou-me, e desde então curo tudo. Curo tudo em casa e no pessoal da fazenda. Fiquei com fama de mágico. Vem gente dos sítios vizinhos. "Ouvi dizer que o senho é um bom doutor que cura" - e curo mesmo. Chega a vir gente até do município vizinho atras dos "carocinhos mágicos"...
Lobato
Texto integral retirado de: A BARCA DE GLEYRE; LOBATO, MONTEIRO, II TOMO – QUARENTA ANOS DE CORRESPONDÊNCIA ENTRE MONTEIRO LOBATO E GODOFREDO RANGEL; ED BRASILIENSE, 1946, 1a EDIÇÃO.
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