Mulheres Guarani participam de oficina sobre práticas alimentares. A atividade aconteceu na aldeia de Tenondé Porã, em São Paulo, e contou com a participação de mulheres de diferentes idades. Foto: CPI/SP
Garantir uma alimentação adequada e saudável em terras que não apresentam plenas condições para sobrevivência física e cultural é o dilema enfrentado pela maioria das aldeias em nosso estado . A questão é tema de vivências com mulheres indígenas promovidas pela Comissão Pró-Índio.
No último sábado, dia 12 de abril, mulheres de diferentes gerações da Aldeia Tenondé Porã em Parelheiros, zona sul de São Paulo, reuniram-se para mais uma vivência de culinária tradicional Guarani promovida em conjunto com a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP).
Enquanto preparavam pratos como mbeju e jopara, as mulheres trocavam ideias sobre as dificuldades enfrentadas na valorização da culinária Guarani frente aos mais jovens e as situações de insegurança alimentar vivenciadas pelos índios em São Paulo.
As vivências foram realizadas na casa de Márcia Voty Vidal, mãe de nove filhos que consegue conciliar as tradições da culinária indígena com os hábitos alimentares incorporados da dieta dos não-índios. Contando com uma variedade de frutas, raízes e verduras como mandioca, batata-doce, milho, feijão e banana, Márcia, de 43 anos, prepara refeições segundo as regras tradicionais. Mas em sua casa, como na de qualquer brasileiro, estão presentes também as carnes, as saladas, o feijão, e os temidos e nocivos arroz branco e açúcar refinado.
Sua filha primogênita Luiza, de 26 anos, que também esteve presente, ponderou que ela, assim como boa parte das mulheres de sua geração, já não segue tanto o costume de fazer pratos tradicionais, como rora (farofa de milho) e mbyta (espécie de bolo de milho) “Eu faço jopara (ensopado de feijão com milho), milho com frango e banana…A gente faz outras coisas, mas não sabe dizer em português. Eu faço bastante xipá (biscoito feito atualmente à base de farinha de trigo), que é para tomar com café. Mas quem sabe mais são os antigos”.
A mudança nos hábitos alimentares, resultado muitas vezes da dificuldade em assegurar a alimentação por meio das antigas práticas como caça e pesca, tem consequências para a saúde dos Guarani. Pesquisadores da UNICAMP no Estudo dos conceitos, conhecimentos e percepções sobre segurança, insegurança alimentar e fome em quatro grupos de etnia Guarani no estado de SP realizado entre 2007 e 2009, documentaram essa realidade em quatro aldeias do litoral de São Paulo: “a adoção de hábitos alimentares prejudiciais à saúde, como é o consumo elevado, especialmente pelas crianças, de alimentos industrialmente processados, com baixo valor nutritivo, como refrigerantes, biscoitos e doces. O sobrepeso e a obesidade estão presentes entre as mulheres adultas e crianças abaixo de 5 anos de idade”.
Os riscos do abandono da dieta tradicional
O endocrinologista João Paulo Botelho Vieira Filho alerta que o gradativo abandono da dieta tradicional e a incorporação de alimentos industrializados (às vezes fornecidos pelo próprio Governo Federal) aliados ao abandono do esforço físico da caça têm prejudicado à saúde dos povos indígenas.
O médico que desde a década de 1970 estuda as causas de diabetes, sobrepeso e obesidade em índios Xavante (no Mato Grosso) e dos Xikrin, Suruí e Gavião (no sudeste do Pará) explica que, entre os Xavante, o Projeto Arroz promovido pela Fundação Nacional do Índio em 1981 trouxe um consumo exagerado do cereal no formato refinado. Com o benefício do governo, eles começaram a comer o arroz em todas as refeições, inclusive com açúcar, durante o café da manhã. A partir disso, o médico passou a observar o abandono progressivo de roças de toco de feijão, cará, abóbora, macaxeira, amendoim e produtos da floresta como coco de inajá, raízes do cerrado, gafanhotos e larvas do coco babaçu, que são fontes proteicas.
“Podemos dizer que a diabetes é uma epidemia entre os índios no Brasil”, afirmou Vieira Filho. A razão para a grande escala da diabetes tipo 2 (adquirida por meio de hábitos alimentares) nos índios deve-se a um fator genético importante: o gen ABCA1, presente apenas em nativos das Américas. A variante genética está ligada ao acúmulo de energia e de gordura, para proteger o corpo dos períodos de estiagem e fome. A partir do momento em que alimentos ricos em carboidratos (que viram açúcar no corpo humano) e gordura passam a fazer parte da dieta nutricional, há um descontrole no organismo.
Em artigo publicado na revista norte-americana Ethnicity and Disease, no início deste ano, Vieira Filho e equipe da Escola Paulista de Medicina detectaram que entre uma população de 948 Xavante de Sangradouro e São Marcos, no Mato Grosso, 28,2% tinham diabetes – sendo que, deste montante, 40,6% eram mulheres e 18,4%, homens. Hipertensão foi diagnosticada em 17,5% da população e, ainda segundo o mesmo levantamento, metade da população era considerada obesa (50,8%).
O endocrinologista enfatiza, em seu relatório, que a população indígena deve ser informada acerca de suas particularidades genéticas. “Há escolas indígenas entre os Xavante com merendas inapropriadas do governo, ensinando as crianças a comerem errado. Os brancos foram selecionados em milênios ao açúcar cristalizado (…); os índios foram selecionados ao contrário, somente conhecendo os hidratos de carbono complexos da batata, milho, mandioca, feijão, abóbora, sendo que o açúcar cristalizado (sacarose) é glicotóxico às células pancreáticas produtoras de insulina dos índios”.
Território e soberania alimentar
A soberania alimentar dos povos indígenas tem relação direita com a garantia de seus territórios. Para Maria Emília Pacheco, antropóloga que preside o Conselho Nacional de Segurança Alimentar, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social, não é possível falar sobre combate à insegurança alimentar sem questionar a demarcação e posse da terra e o despejo abusivo de agrotóxicos. “Sem a questão territorial, que é uma questão fundante, é muito difícil falar de soberania alimentar indígena”, enfatiza.
No Estado de São Paulo, a segurança territorial é ainda um desafio, uma vez que somente 12 das 39 terras indígenas existentes já se encontram demarcadas e homologadas. O quadro se agrava na medida em que grande parte das terras indígenas em nosso estado não apresenta as adequadas condições para sobrevivência física e cultural.
Terras de tamanho diminuto, uma população crescente pressionando os limitados recursos naturais e novos hábitos de consumo são alguns dos fatores da inseguridade alimentar dos povos indígenas em São Paulo que têm baixo acesso aos alimentos, tanto em termos qualitativos quanto quantitativos.
Cada vez mais, os índios em São Paulo dependem dos não índios para garantir a sua alimentação, o que afeta sua autonomia e sustentabilidade. “Antigamente, a vida era melhor, mais saudável. Era mais difícil para conseguir o alimento, mas era mais saudável, mais na cultura. Hoje, para sobreviver, tem que trabalhar para ter dinheiro.”, explica Márcia Voty, de Tenondé Porã.
Conforme descreve a pesquisa da UNICAMP, o acesso à alimentação se dá pelas doações (cesta básica), mas também, pela compra dos alimentos, com recursos advindos da venda de artesanato, assalariamento, aposentadorias e do programa Bolsa Família, não mais da agricultura, caça e pesca. Porém as fontes atuais não garantem a alimentação na constância, na quantidade e na qualidade necessárias.
Essas questões têm sido debatidas com as mulheres de Tenondé Porã nas preparações coletivas de alimentos que também serão realizadas em outras aldeias do estado. “A Pró-Índio vem discutindo com as mulheres Guarani formas de enfrentar os problemas relacionados à insegurança alimentar com vistas a organizar ações conjuntas para influenciar políticas públicas” explica Carolina Bellinger, assessora de programas da CPI-SP.
Uma das demandas que já surgiu nas conversas relaciona-se com a merenda escolar apontada pelas mulheres como um dos fatores de inserção de novos hábitos na dieta dos Guarani, pois tem alterado as preferências alimentares das crianças e adolescentes. “A questão merenda estará na pauta das ações de incidência, queremos discutir com os atores estatais a importância de aprimorar a qualidade dos alimentos oferecidos e de se valorizar as formas de preparos tradicionais nas escolas”, afirma Carolina Bellinger.
As vivências de cozinhar são realizadas com o apoio financeiro de DKA-Áustria, Christian Aid e Size of Wales.
Por Bianca Pyl, da Comissão Pró-Índio de São Paulo, para o EcoDebate, 17/04/2014
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