Jornal da Universidade Federal do Pará. Ano XXIX Nº 122. Dezembro e Janeiro de 2014.
Ervas e plantas são utilizadas para curar doenças do corpo e da alma.
por Brenda Rachit/ Dezembro e Janeiro de 2014
foto Alexandre Moraes
“Chega-te a mim”, “comigo ninguém pode”, “chama freguês”, “ganha aqui, ganha acolá”, “pega não me larga”, “faz querer quem não me quer”. Esses são alguns dos banhos que perfumam o mercado do Ver-o-Peso e atraem turistas e nativos com a promessa de trazer prosperidade, felicidade, saúde, amor e bons fluidos. Esses banhos e ervas também são comumente encontrados em outros mercados e nas feiras de Belém.
Embora o paraense disponha da biodiversidade amazônica cotidianamente, as características genéticas e ecológicas dessa diversidade biológica são pesquisadas com mais frequência do que seus aspectos socioculturais, ou seja, a forma como o indivíduo se apropria e utiliza esses recursos.
Para melhor entender essa questão, o professor do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da UFPA Flávio Bezerra Barros desenvolveu o Projeto “Do Ver-o-Peso aos terreiros de candomblé: um estudo sobre as dimensões sociais da biodiversidade em Belém do Pará”.
A proposta da pesquisa surgiu dentro do Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Biodiversidade, Sociedade e Educação na Amazônia (BIOSE). O projeto, sob a coordenação do professor Flávio Barros, dedicou-se a estudar a dimensão da biodiversidade em dois campos de pesquisa: nos mercados e nas feiras e também nos terreiros do candomblé na Região Metropolitana de Belém.
A pesquisa é de cunho interdisciplinar, dialogando com a Antropologia, Etnobiologia e Etnofotografia, “que corresponde a um registro fotográfico em contexto com o campo teórico, no sentido de dar visibilidade à etnografia escrita, trazendo uma dimensão que aproxima o leitor da narrativa que está impressa ali no texto”, explica o professor.
Segundo Flávio Barros, uma das pesquisas do projeto destacou mais de 180 espécies de plantas e animais com finalidades medicinais e mágico-religiosas apenas no Mercado do Guamá. O professor explica que o caráter medicinal desses produtos está ligado tanto ao tratamento físico quanto ao espiritual e tem relação direta com a crença dos consumidores, em sua eficácia. Problemas como desemprego, doenças físicas e da alma são algumas das razões que levam as pessoas a procurar banhos e chás nas feiras e nos mercados.
Chá de tamaquaré deixa o marido “manso”
A utilização dessas plantas e animais revela a intimidade entre a população da região e a natureza. Como exemplo, temos o uso do lagarto tamaquaré, em chás ou em pó, que geralmente é procurado por mulheres que desejam “amansar” seus maridos, como brinca Dona Onete na música “Feitiço Caboclo”: “O resultado fica tudo dominado, ele fica abestado, abobalhado, bobão, pateta, patetão, pilotado, só faz o que você quer com o chá do Tamaquaré”.
“Isso mostra que as pessoas observam, conhecem essa biodiversidade e querem transferir para o lado humano aquela propriedade que o animal possui. Partindo do princípio de que o tamaquaré é manso, o companheiro também ficará manso como o lagarto”, explica Flávio Barros.
A pesquisa verificou que o universo religioso também está estreitamente ligado ao uso da biodiversidade. Segundo o pesquisador, as pessoas também se utilizam das propriedades naturais de forma mágico-religiosa. “Elas atribuem valores e conceitos que fogem da nossa capacidade de compreensão do que é natureza e do que é cultura”, acrescenta Flávio Barros.
Assim, o projeto também é desenvolvido com base em entrevistas e observações empreendidas em terreiros de candomblé. Com a autorização do sacerdote do terreiro, a equipe faz os registros da pesquisa. O perfil do público analisado é bastante diverso, são mulheres e homens de idades e orientações sexuais diferentes, bem como de padrões econômicos distintos.
“Temos feito entrevistas de cunho qualitativo e abertas para dar voz ao interlocutor, para que ele narre a sua história e a sua experiência, para que possamos capturar os elementos que consideramos cruciais no entendimento desse fenômeno”, explica o pesquisador. O projeto também utiliza a observação participante, para que os pesquisadores entrem em contato com a dinâmica dos grupos analisados.
Sacrifício de animais também foi analisado
Outra questão observada foi a dos animais sacrificados em rituais de terreiros, pois há uma grande dissensão quanto a isso. Flávio Barros chama atenção para a necessidade de esclarecer os processos sociais envolvidos nessas dinâmicas. Uma das pesquisas revelou, a partir da Etnografia, a beleza e os fundamentos da atividade ritualística envolvendo animais. “Nós não pensamos que, ao comer peixe e carne de gado, esses processos também implicam sacrifício do animal”, pondera o professor.
O projeto está em andamento há dois anos e constitui-se como um projeto “guarda-chuva”, como diz o pesquisador. A partir do projeto principal, outras pesquisas são conduzidas, sendo estruturadas para se desenvolver a longo prazo. Para o professor, os estudos têm contribuído para melhor compreensão da biodiversidade a partir de um enfoque mais antropológico.
“O projeto contribui para entender a biodiversidade a partir da diversidade de apropriações que as pessoas imprimem nessa relação com a natureza”, além do diálogo fomentado pela Universidade com a sociedade. Isso contribui para diminuir os “pré-conceitos” e a intolerância.
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