Editorial
Fraudes, erros e enganos
Por Carlos Vogt
10/04/2013
Na origem do mundo moderno, lá atrás, no tempo de reis, nobres, vassalos, cortes, súditos, feudos, camponeses, quando a burquesia nascia, no século XII, nascia com ela o romance e com ele a fixação literária do anti-herói, do herói sem nenhum caráter, dotrickster, do pícaro, do malandro, do trapaceiro, capaz de expor, pela esperteza, às vezes ingênua, às vezes sabida, mas sempre sagaz, as mazelas sociais de seu tempo e, pelo atrevimento de sua conduta, organizar a desordem que o seu comportamento revelava no convencionalismo das relações humanas.
O Roman de Renart, no século XII e os Fabliaux, entre os séculos XIII e XIV, são apontados como os principais marcos dessa literatura nascente com características que se incorporarão, de modo indelével, nesse gênero narrativo pitoresco, cheio de malícia, sátira e paródia e cuja linhagem produzirá, em diferentes países, e em diferentes épocas, obras fundamentais de ficção: Pantagruel e Gargântua, de François Rabelais, Lazarillo de Tormes, de autoria anônima, D. Quixote, de Miguel de Cervantes, Tom Jones, de Henry Fielding, Felix Krull, de Thomas Mann, Macunaíma, de Mário de Andrade, só para citar alguns títulos inolvidáveis de tipos inesquecíveis.
Na literatura brasileira, o veio é fecundo e produziu, além da história de nosso herói sem nenhum caráter, outras preciosidades como Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antonio de Almeida, e no teatro, O auto da compadecida, de Ariano Suassuna.
Mas a galeria é grande e inclui uma grande quantidade de obras que, de uma forma, ou de outra, repetiram os feitos e os predicados de esperteza, astúcia e cinismo de Pedro Malasartes, entre elas duas óperas: uma chamada Malazarte, de Oscar Lorenzo Fernandes e Graça Aranha e a outra, Pedro Malazarte, de Camargo Guarnieri e Mario de Andrade.
Mazzaropi encarnou no cinema em As aventuras de Pedro Malasartes, de 1960, o personagem caipira, ingênuo, tinhoso, cheio de artimanhas, protagonista de tantas peripécias herdadas da tradição popular da península ibérica e que fincou raízes profundas na cultura brasileira.
A vigarice é certamente uma das heranças desse jogo de faz-de-conta e de dissimulações que marca, muitas vezes sem piedade e sem escrúpulos, a saga de fraudes e enganos que também, pela moralidade inerente, expõe os erros da sociedade de que o pícaro quer se vingar e, assim, se vinga. Não a transforma, contudo, nem tampouco a destrói. Sua vingança é, pela fraude e pelo engano, expor os enganos e as fraudes de que é feita a sociedade de seu tempo e de seu entorno e, desse jogo de esperteza contra esperteza, tirar proveito para o seu bem-estar pessoal e para a satisfação de seus desejos e apetites reprimidos ao longo de sua história de abandono, de infância miserável, de falta de identidade familiar, de fome e de expedientes de sobrevivência.
José de Souza Martins, na coluna em que escreve semanalmente para o jornal O Estado de S. Paulo (18/03/13, p. C-8), fala do conto do vigário para anotar que, sendo já comum em São Paulo, ganha ocorrência e expressão ainda maiores depois da inauguração do Viaduto do Chá, em 1.892. Tantas vezes vendido a incautos fazendeiros e negociantes que vinham a São Paulo a negócios e topavam com a oportunidade de ouro de aumentar a fortuna pelas mãos de vigaristas que manipulavam a avidez do outro contra ele próprio, transformando-o de esperto em enganado e de explorador em vítima, o Viaduto do Chá transformou-se, numa época, em ícone do conto do vigário.
Os contos do vigário proliferavam e se multiplicavam pelo país, pelo estado e seus interiores, no imaginário de adultos e crianças, nas histórias das famílias sentadas em cadeiras nas calçadas em frente às casas, no lusco-fusco de fantasias e realidades que iam povoando de valores e representações o processo de nossa formação cultural.
Como tive ocasião de escrever anteriormente no editorial “Geografia do país da infância”, aqui mesmo na ComCiência, nº 72, de 10/12/2005, há alguns traços integrantes da composição de nossa identidade cultural que, de certa forma, têm semelhanças de família com essas características herdadas de ancestrais pícaros e que algumas vezes, senão muitas, evoluíram para a picaretagem.
Um desses traços é o famigerado jeitinho brasileiro ligado, de certo modo, ao da cordialidade, aos quais se acrescenta ainda um terceiro, o da malandragem, formando, assim, um verdadeiro triângulo das bermudas nos mares de navegação da busca dos caminhos de nossa identidade cultural.
Como escrevi naquele então, o jeitinho, a cordialidade e a malandragem perderam a aura na sociedade brasileira contemporânea, com ampla alteração de valores culturais: o malandro vira bandido, o jeitoso vira aproveitador e oportunista e o homem cordial quer tirar vantagem em tudo, inclusive da própria cordialidade.
Na verdade, este é um fenômeno que se generaliza e que, com variações locais, adquire foro global, mas que cá, entre nós, apesar das mudanças, conserva ainda uma certa nostalgia romântica do aventureirismo maroto e ingênuo convivendo, contudo, com uma dinâmica competitiva de desafios e de padrões de desenvolvimento que nos obriga, agora, a ser, novamente, múltiplos e contraditórios em nossa multiplicidade: espertos, cordiais, malandros em busca da construção de sermos corretos, racionais e honestos, sem falar da seriedade que também nos empurra para a realização do desejo de sermos nós, e sendo nós, sermos outros.
Desse modo, fraudes, enganos e erros estão presentes na sociedade brasileira como em outras sociedades, com uma diferença, talvez, de grau, ou mesmo de qualidade, já que se inscrevem em nossa cultura, por traços de família, numa longa tradição de valores, em que o maior deles é o de ter prazer em ser bonzinho para enganar e tirar vantagem.
O malfeito, como se sabe e como se tem visto, faz parte da cultura política nacional. Para desfazê-lo é preciso mais do que palavras e a confissão pública de boas intenções, já que ele faz parte do gosto de fazer política e da política de fazer gosto.
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