Causas da marginalização social, econômica e política também são responsáveis pela marginalização ambiental, observa Lúcio Flávio Ribeiro Cirne. É fundamental superar o pensamento fragmentado e, muitas vezes, dualista que norteia o agir contemporâneo
Por: Márcia Junges
CIRNE, Lúcio Flávio Ribeiro. O Espaço da Coexistência – Uma visão interdisciplinar de ética socioambiental. Recife e São Paulo: Unicap e Edições Loyola, 2013.
São inúmeros os desafios que a humanidade tem pela frente no que tange ao espaço da coexistência. Além da necessidade de haver uma visão integrada entre ser humano e natureza, “é importante ressaltar que a raiz que leva à sistemática depredação da natureza é a mesma que causa as injustiças contra os seres humanos”, pondera o Padre Lúcio Flávio Ribeiro Cirne na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. A partir das reflexões que tece em sua recém-lançada obra O Espaço da Coexistência – Uma visão interdisciplinar de ética socioambiental (Recife e São Paulo: Unicap e Edições Loyola, 2013), Pe. Lúcio acentua que “a preservação do ambiente não acontecerá se permanecerem as numerosas formas estruturais de pobreza que existem em todo o mundo. Sem justiça social não haverá reconciliação entre ser humano e natureza, pois há um vínculo estreito – uma inderdependência, para usar um termo mais ecológico – entre proteção da natureza e justiça social, entre ecologia e economia”.
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne é graduado em Agronomia pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE, em Belo Horizonte, e em Teologia pela Graduate Theological Union, em Berkeley, na Califórnia. É mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio com a tese O Espaço da Coexistência. Estudo interdisciplinar de ética ambiental. Lúcio Flávio, padre jesuíta, é pró-reitor comunitário da Unicap e professor de Teologia nesta instituição, além de coordenador do Instituto Humanitas Unicap.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos pensar em um espaço de coexistência a partir da temática que aborda em sua obra recém-lançada?
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne – Em face à complexidade das relações entre sociedade e natureza, evidenciada mais intensamente pela profunda crise ambiental que hoje vivemos, faz-se necessária uma reflexão ética cujo horizonte seja demarcado por uma perspectiva relacional e integradora capaz de superar posicionamentos redutores e fragmentados. Ou seja, que afirmem o direito à alteridade: o reconhecimento e aceitação do outro.
A visão dualística entre o sujeito (razão humana) e objeto (a natureza), própria da racionalidade instrumental moderna, não permitiu que as éticas que emergiram nesse paradigma rigidamente antropocêntrico fizessem o reconhecimento da natureza em sua complexidade e concretude própria. No lado oposto desse pensamento, como reação à mentalidade antropocêntrica, tem surgido um vigoroso movimento ambientalista em cujo interior encontra-se uma corrente sustentada por princípios éticos que defendem uma harmonização intrínseca com a natureza. São modelos de ética ambiental centrados numa visão biocêntrica em que o indivíduo se dilui no horizonte de um todo igualitário, de modo que a diferenciação fica suprimida e tanto a natureza como o ser humano, paradoxalmente, não são reconhecidos como um outro.
Multiplicidade e coexistência
Ora, no mundo diferenciado e plural em que vivemos, faz-se necessário aprender a ser distintivamente o “eu” dentro de um quadro que inclua também o outro, sem dominância, numa imagem de igualdade. É o que defendemos na proposta de um discurso ético que se configura como um espaço da coexistência. Em seu livro Espaços de Esperança , D. Harvey coloca no centro do seu pensamento geográfico o princípio da diferença que enfatiza que cada um tem a sua história, concretizada em espacialidades próprias. Nessa perspectiva, enquanto a desigualdade exclui outras presenças, a diferença, resgata-as justamente porque necessita da multiplicidade e da coexistência. De modo análogo, colocamos no centro de nossa reflexão ética esse conceito de espaço entendido como uma teia de relações, espaço da multiplicidade onde os indivíduos estão interligados e ajustados pela complementaridade dialética do eu e do outro.
É a arena dinâmica da vida que respeita a particularidade e a subjetividade de cada componente. O espaço assim considerado permite superar as várias dicotomias (sujeito/objeto, natureza/ser humano, opressor/oprimido) – relação desigual na qual um dos polos fica esquecido ou dominado pelo outro – e dá condições para se pensar em uma existência relacional e harmoniosa. Sendo um espaço, lugar de todos os outros, seja o outro da natureza ou os outros de nossa própria espécie humana, será mais fácil compreender que cuidar do ambiente, o que implica também cuidar de nós mesmos.
IHU On-Line – Em que medida se pode falar de uma visão interdisciplinar de ética socioambiental?
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne – A elaboração de um discurso ético no contexto da atual crise ecológica enfrenta, entre tantos desafios, a necessidade de superar o pensamento fragmentado e não raro dualista que orienta o nosso agir contemporâneo. Percebemos, por exemplo, que nas várias tendências e modelos de ética nem sempre há uma visão integrada da realidade, apresentando uma ou outra forma de reducionismo, seja antropológico, biológico, socioeconômico ou religioso. Além disso, sabemos que a complexidade do nosso mundo pede que tenhamos uma necessária abertura a um pluralismo epistemológico na consideração das grandes questões que nos afetam, particularmente aquelas relacionadas ao meio ambiente. Ha, pois, a necessidade de uma colaboração de todos os saberes, um esforço conjugado no qual as diferentes aproximações da realidade podem interagir numa tarefa interdisciplinar.
IHU On-Line – Como podemos compreender a relação entre Teologia da Criação, com paradigma ecológico, e o conceito geográfico de espaço?
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne – Na direção do que mencionamos acima, a teologia também é convocada a dar a sua contribuição na reflexão e elaboração de um discurso ético que ajude ao cristão de hoje a pensar e agir crítica e responsavelmente diante da problemática socioambiental. Partindo daquilo que lhe é próprio – a compreensão bíblico-cristã da criação em sua perspectiva integradora e relacional –, a Teologia procura a mediação de dados científicos para expressar de forma atualizada a riqueza humanizadora de sua mensagem e, assim, contribuir no esforço comum para superar a crise ecológica atual. No debate sobre as questões ambientais, tem surgido com grande força o horizonte compreensivo sistêmico que nos vem dos estudos da ecologia. Por outro lado, no âmbito da ciência geográfica, uma categoria que tem sido incorporada à discussão sobre desenvolvimento é o conceito de espaço, feito território. Pareceu-nos oportuno, na construção teórica de um espaço ético em vista da superação da crise socioambiental, estabelecer um diálogo com esses três saberes: o teológico, o ecológico e o geográfico, buscando uma interação fecunda e enriquecedora entre esses três modos distintos de encarar a realidade.
Antropocentrismo unilateral
Respeitando o método próprio de cada um e tendo o cuidado de não fazer uma mera transposição conceitual de um campo para o outro, percebemos que há, sim, possibilidade de articulação entre o legado da fé cristã, o paradigma ecológico e o conceito de espaço geográfico na elaboração de uma ética socioambiental. Com a contribuição da ecologia (natureza compreendida como organismo vivo do qual o ser humano é parte integrante dentro de um sistema de vínculos e inter-relações) e da geografia (visão social de ambiente, feito território, construído pela ação humana), superamos tanto o antropocentrismo unilateral, desenvolvido pela racionalidade instrumental moderna, quanto o biocentrismo totalizador. Como numa estrada de mão dupla, abre-se assim o caminho de um diálogo crítico com a Teologia cristã da criação na procura de uma ética capaz de compreender a realidade atual, planejar e orientar o agir humano para superar a crise socioambiental.
IHU On-Line – Em quais aspectos o senhor busca realizar uma visão integrada e relacional do ser humano e da natureza?
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne – A ética da coexistência segue um dinamismo básico que é o da integração–inclusão, buscando sempre a complementaridade. Sabemos que a reflexão ética não pode renunciar ao “princípio antropotópico” segundo o qual o sujeito moral da ética é sempre o ser humano, pois somente ele, enquanto ser de intencionalidade, levanta as questões, elabora reflexões e pode agir responsavelmente. A especificidade do ser humano, face às outras criaturas, é a sua capacidade de intervir na natureza. Nesse sentido, podemos dizer que toda ética tem um aspecto antropocêntrico. Por outro lado, enquanto ecológica, a ética segue a orientação sistêmica do paradigma ecológico, considerando a vida em todas as suas formas dentro da grande rede de relações e interdependências da biosfera. A vida humana é compreendida como parte de uma realidade maior, rejeitando-se, portanto, o dualismo ser humano/natureza, desenvolvido pela racionalidade técnico-científica, em favor de um relacionamento responsável e harmonioso com o mundo natural no qual se reconhece um valor em si mesmo.
Dito de outro modo, a ética da coexistência não concebe o relacionamento humano com o mundo natural em termos de “ser humano e natureza”, e sim como “o ser humano na natureza”. É uma ética que considera a ecosfera como oikos, a casa no interior da qual se partilha o dom da vida, a casa de todos, a casa dos seres humanos e a morada de todos os seres vivos.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios que a humanidade tem pela frente no que diz respeito ao espaço de coexistência?
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne – São muitos os desafios. Ao lado do que já falamos sobre a necessidade de uma visão integrada ser humano e a natureza, é importante ressaltar que a raiz que leva à sistemática depredação da natureza é a mesma que causa as injustiças contra os seres humanos. Há uma íntima relação entre a questão ecológica e o drama da injustiça social que aflige tanta gente neste nosso planeta. As causas que levam à marginalização social, econômica e política também marginalizam ambientalmente. Tomemos, por exemplo, a degradação das áreas nativas das quais depende a sobrevivência de inúmeras populações tradicionais; ou as habitações precárias das grandes favelas urbanas. Uma ética ecológica não pode ficar alheia a essas questões. A preservação do ambiente não acontecerá se permanecerem as numerosas formas estruturais de pobreza que existem em todo o mundo. Sem justiça social não haverá reconciliação entre ser humano e natureza, pois há um vínculo estreito – uma interdependência, para usar um termo mais ecológico – entre proteção da natureza e justiça social, entre ecologia e economia. Numa palavra, a questão ecológica é uma questão socioambiental. Aqui está um traço decisivo do espaço da coexistência.
IHU On-Line – É possível buscar formas de sustentabilidades que integrem o cuidado com a natureza e a solidariedade com o ser humano, principalmente com os mais pobres?
Lúcio Flávio Ribeiro Cirne – Acredito que sim, desde que seja reexaminado o conceito de desenvolvimento sustentável, incorporado nos discursos ecológicos e adotado nos documentos das grandes conferências mundiais sobre esse tema. Um ponto crítico é a permanência do fator crescimento econômico como gerador de desenvolvimento e como categoria base para se pensar o social. Uma sociedade que busca a todo custo o desenvolvimento – na lógica do crescimento econômico – não pode ser uma sociedade sustentável porque está transgredindo os limites dos ecossistemas e esgotando as capacidades limitadas da biosfera. Além disso, falar em sustentabilidade implica também o campo das relações sociais, pois a questão do desenvolvimento sustentável, além do meio ambiente, envolve também as formas sociais de apropriação e uso do ambiente (a categoria do espaço, feito território, ajuda-nos a compreende esse processo), o que implica, entre outras coisas, legitimar atores e considerar a diversidade das formas culturais (na linha da geografia da diferença, que mencionamos acima). Estamos falando de um outro desenvolvimento, talvez um ecodesenvolviemento, como propunha I. Sachs , orientado para as necessidades reais das comunidades (em lugar de governado pelo mercado), em harmonia com a natureza e aberto às mudanças das estruturas sociais injustas.
Desenvolvimento sustentável no plural
Os efeitos nocivos da criação de camarão no litoral nordestino têm mostrado que esse não é um caminho de desenvolvimento ideal para essa região, da mesma forma como erradicar a floresta e substituir por campos para atividade pecuária não é o melhor uso do solo para a Amazônia. O que está em jogo é o respeito tanto à diversidade biológica dos ecossistemas quanto à pluralidade de culturas, constituindo a base de um “desenvolvimento sustentável” pensado no plural. Em vez de um modelo único, devemos priorizar formas verdadeiramente sustentáveis de apropriação dos espaços. A busca, portanto, de um desenvolvimento sustentável deve ter com base a sustentabilidade dos lugares e das pessoas. É este o sentido de desenvolvimento que vamos encontrar na Carta da Terra: “Que o nosso tempo seja lembrado por um compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela luta pela justiça e pela paz e pela celebração da vida”.
(Ecodebate, 18/06/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]-
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