Maior ameaça ao Cerrado é considerar sua vegetação nativa um estorvo ao desenvolvimento. Entrevista especial com José Felipe Ribeiro
Alto Paraíso (GO) – Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, no município de Alto Paraíso (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
IHU
Apesar de o Cerrado não ter rios de grande vazão, o bioma “concentra nascentes que alimentam oito das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras” e nele nascem os “rios que originam seis das principais regiões de hidrográficas brasileiras: Parnaíba, Paraná, Paraguai, Tocantins-Araguaia, São Francisco e Amazônica”, informa o biólogo José Felipe Ribeiro à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Ribeiro explica que a preservação da vegetação nativa do Cerrado “é fundamental para a manutenção dos níveis de água em grande parte do país”, porque é no bioma que estão localizados três dos grandes aquíferos brasileiros, o Guarani, o Bambuí e o Urucuia.
O biólogo diz ainda que o mito de que o Cerrado é um bioma seco, por conta da sua terra árida, tem origem no “desconhecimento do clima” da região, que é fortemente sazonal. “Como o inverno seco pode durar quase seis meses, para muitos a secura deste período seria a situação predominante. Entretanto, os verões chuvosos, originalmente, podem trazer, em média, para a região cerca de 1.600 mm de chuva. Para efeitos comparativos, a média de pluviosidade na Mata Atlântica é de 2.000 mm”, compara. Ele diz ainda que a maior ameaça ao Cerrado é “achar que a vegetação nativa é um estorvo ao desenvolvimento. Neste sentido, entre as principais ameaças estão os grandes monocultivos e o extrativismo predatório. Os grandes monocultivos simplesmente eliminam qualquer diversidade regional pela completa eliminação da vegetação local”, adverte.
José Felipe Ribeiro | Foto Fabiano Bastos/Embrapa Cerrado
José Felipe Ribeiro é graduado em Biologia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília – UnB e doutor em Ecologia pela University of California. É pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária e, no momento, atua na Embrapa Cerrados. Também leciona no curso de Botânica da Universidade de Brasília.
Ribeiro estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 08-5-2017, ministrando a palestra O Cerrado Brasileiro: berço das águas e celeiro do mundo, às 19h30min. A conferência faz parte do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida. A programação completa está disponível aqui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Para além da paisagem clássica de savana e árvores tortas, o que é o Cerrado brasileiro?
José Felipe Ribeiro – O Cerrado brasileiro apresenta fisionomias que englobam formações florestais, savânicas e campestres. Em sentido fisionômico, a floresta representa áreas com predominância de espécies arbóreas, onde há formação de dossel, contínuo ou descontínuo, enquanto savana refere-se a áreas com árvores e arbustos espalhados sobre um estrato graminoso, sem a formação de dossel contínuo e campo, e designa áreas com predomínio de espécies herbáceas e algumas arbustivas, faltando árvores na paisagem.
A flora do Cerrado é característica e diferenciada dos biomas adjacentes, embora muitas fisionomias florestais compartilhem espécies com outros biomas. Além do clima, que é fortemente sazonal, com invernos secos e verões chuvosos, da química e física do solo, da disponibilidade de água e nutrientes, e da geomorfologia e topografia, a distribuição da flora é condicionada pela latitude, frequência de queimadas, profundidade do lençol freático, pastejo e inúmeros fatores antrópicos.
IHU On-Line – O Cerrado brasileiro pode ser considerado berço das águas do mundo? Por quê?
José Felipe Ribeiro – No Cerrado, nascem rios que originam seis das principais regiões de hidrográficas brasileiras: Parnaíba, Paraná, Paraguai, Tocantins-Araguaia, São Francisco e Amazônica. O bioma, que ocupa um quarto do território brasileiro, não tem rios de grande vazão, mas concentra nascentes que alimentam oito das 12 grandes regiões hidrográficas brasileiras. Já que nele estão localizados três grandes aquíferos – Guarani, Bambuí e Urucuia –, responsáveis pela formação e alimentação desses rios, a preservação da vegetação do Cerrado é fundamental para a manutenção dos níveis de água em grande parte do país. Esse potencial hídrico dá ao bioma o título de Berço das Águas.
IHU On-Line – Em que medida o mito de que o Cerrado é seco e é uma terra árida, compromete as ações de preservação desse bioma?
José Felipe Ribeiro – Esse mito é resultado do desconhecimento do clima, que é fortemente sazonal. Como o inverno seco pode durar quase seis meses, para muitos a secura deste período seria a situação predominante. Entretanto, os verões chuvosos, originalmente, podem trazer, em média, para a região cerca de 1.600 mm de chuva. Para efeitos comparativos, a média de pluviosidade na Mata Atlântica é de 2.000 mm. Qualquer ação de preservação precisa entender e levar em conta as espécies que estão adaptadas a esta sazonalidade do bioma.
IHU On-Line – É possível aliar a produção agrícola com a preservação do Cerrado? Como?
José Felipe Ribeiro – Sim, com certeza. Hoje temos conhecimento suficiente sobre a época de produção de sementes, produção de mudas e manejo de espécies, que, plantadas em consórcio em Sistemas Agroflorestais, são capazes não apenas de manter a biodiversidade como também de gerar lucro ao produtor. Devido à importância dessa flora em termos de diversidade e uso popular, bem como o risco de extinção que essas plantas correm, a Embrapa Cerrados, juntamente com instituições parceiras, as Universidades e Institutos de Pesquisa, vem investindo em pesquisa sobre caracterização biológica, avaliação do potencial econômico, desenvolvimento de técnicas de produção e transferência de tecnologia para gerar e divulgar informações sobre as plantas nativas do Cerrado.
Qualquer ação de preservação precisa entender e levar em conta as espécies que estão adaptadas a esta sazonalidade do bioma
As atividades desenvolvidas pela Embrapa Cerrados são realizadas, principalmente, junto aos agricultores familiares, buscando articular uso e conservação da biodiversidade do Cerrado, e à melhoria da qualidade de vida da população. Aliar a produção agrícola com a conservação da vegetação e da água no Cerrado seria possível com plantios agrícolas bem manejados nas áreas de Uso Alternativo do Solo, e com a conservação com os plantios e/ou manejo das Áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente, conforme previsto na legislação de proteção da vegetação nativa brasileira.
IHU On-Line – Qual a maior ameaça ao Cerrado hoje e como enfrentá-la?
José Felipe Ribeiro – Achar que a vegetação nativa é um estorvo ao desenvolvimento. Neste sentido, entre as principais ameaças estão os grandes monocultivos e o extrativismo predatório. Os grandes monocultivos simplesmente eliminam qualquer diversidade regional pela completa eliminação da vegetação local.
Na coleta extrativa, se a velocidade da extração for maior que a produção natural e ocorre apenas com os melhores exemplares das espécies, há risco de prejudicar a riqueza biológica do ecossistema. Devemos lembrar que a quantidade de frutos e sementes produzidos é aquela necessária para a reprodução da própria espécie ou mesmo como parte da cadeia alimentar de animais nativos, como pássaros e mamíferos.
IHU On-Line – De que forma o desequilíbrio ambiental no Cerrado pode impactar outros biomas e até mesmo a produção agrícola em outras regiões do país?
José Felipe Ribeiro – Primeiro são as mudanças climáticas que estão cada vez mais diminuindo a média de chuva na região. Depois, com atividades antrópicas que impeçam que a água que cai no Cerrado seja incorporada ao sistema, com mau manejo do solo, por exemplo. A chuva, ao invés de ficar no Cerrado pela infiltração, é levada mais rapidamente para regiões mais baixas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
São as mudanças climáticas que estão cada vez mais diminuindo a média de chuva na região
José Felipe Ribeiro – As atividades humanas podem, sim, evitar o conflito da conservação e da produção agrícola. Esta produção, em sinergia com o ambiente natural, pode ser produtora de bens para a humanidade, incluindo aí os serviços prestados pelos ambientes naturais. Afinal, se a nossa espécie escolheu não voltar a morar em cavernas, subir em árvores ou caçar todos os dias para obter seu alimento, temos que entender que, para manter a população humana que aumenta a cada dia, precisamos produzir mais alimento. Entretanto, esta equação deve levar em conta que devemos atingir esses valores com aumento da produtividade em áreas já abertas pela agricultura, com a sustentabilidade nos ambientes naturais e até com o controle populacional da nossa espécie. O nosso planeta está próximo de atingir a sua capacidade de suporte.
(EcoDebate, 04/04/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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