Veja a repercussão da morte de um dos maiores historiadores
do século XX.
O historiador britânico Eric Hobsbawm morreu de pneumonia
nesta segunda-feira (1º) aos 95 anos em Londres. O intelectual marxista é
considerado um dos maiores historiadores do século XX. Ele também era um
entusiasta e crítico do jazz, escrevendo resenhas para jornais sobre o gênero
musical e publicando o livro "História social do jazz".
Sua filha, Julia Hobsbawm, disse: "Ele morreu de
pneumonia nas primeiras horas da manhã em Londres. Ele fará falta não apenas
para sua esposa há 50 anos, Marlene, e seus três filhos, sete netos e um
bisneto, mas também por seus milhares de leitores e estudantes ao redor do
mundo". "Até o fim, ele estava se esforçando ao máximo, ele estava se
atualizando, havia uma pilha de jornais em sua cama", completou a filha.
Trajetória - Eric John Ernest Hobsbawm nasceu de uma
família judia em Alexandria, no Egito, em 9 de junho de 1917. Seu pai era
britânico, descendente de artesãos da Polônia e Rússia, e a família de sua mãe
era da classe média austríaca. Hobsbawn cresceu em Viena, capital da Áustria, e
em Berlim, capital da Alemanha.
Ele aderiu ao Partido Comunista aos 14 anos, após a morte
precoce de seus pais. Na ocasião, ele foi morar com seu tio. Na escola, ele
informou o diretor que ele era comunista e argumentou que o país precisava de
uma revolução.
"Ele me fez umas perguntas e disse: 'Você claramente
não faz ideia do que está falando. Faça o favor de ir à biblioteca e veja o que
consegue descobrir'", disse em uma entrevista à BBC em 2012. "E então
eu descobri o Manifesto Comunista [de Karl Marx] e foi isso", relatou,
indicando o começo de sua formação marxista.
Em 1933, quando Hitler começava a subir no poder na
Alemanha, Hobsbawm foi para Londres, na Inglaterra, onde obteve cidadania
britânica.
O historiador se filiou ao Partido Comunista da Inglaterra
em 1936 e continuou membro da legenda mesmo após o ataque das forças soviéticas
à Hungria em 1956 e as reformas liberais de Praga em 1968, embora tenha
criticado os dois eventos. O ex-líder do partido Neil Kinnock chegou a chamar
Hobsbawm de "meu marxista predileto".
Anos depois, ele disse que "nunca havia tentado
diminuir as coisas terríveis que haviam acontecido na Rússia", mas que
acreditava que, no início do projeto comunista, um novo mundo estava nascendo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Hobsbawm foi alocado a uma
unidade de engenharia em que foi apresentada a ele, pela primeira vez, a classe
proletária. "Eu não sabia muito sobre a classe proletária britânica,
apesar de ser comunista. Mas, vivendo e trabalhando com eles, pensei que eram
boas pessoas", disse à BBC em 1995.
O historiador aprovou neles a "solidariedade, e um
sentimento muito forte de classe, um sentimento de pertencer junto, de não
querer que ninguém os derrubasse". Hobsbawm afirmou que ele tinha vivido
"no século mais extraordinário e terrível da história humana".
Ele veio ao Brasil em 2003 participar da primeira edição da
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), evento do qual foi estrela.
Vida acadêmica - Hobsbawm estudou no King's College de
Cambridge e começou a dar aula na Universidade de Birkbeck em 1947, mais tarde
tornando-se reitor da instituição. Ele também passou temporadas como professor
convidado nos Estados Unidos e lecionou na Universidade de Stanford, no
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e na Universidade de Cornel.
Em 1998, ele recebeu o título de Companhia de Honra. O
prêmio, raramente concedido a historiadores, o colocou ao lado de ilustres como
Stephen Hawking, Doris Lessing e Sir Ian McKellan.
Seu colega historiador A.J.P. Taylor, morto em 1990, disse
que o trabalho de Hobsbawm se destacava pelas explicações precisas dos
acontecimentos pelo interesse em pessoas comuns. "A maior parte dos
historiadores, por uma espécie de mal da profissão, se interessa somente pelas
classes mais altas e pressupõe que eles mesmos fariam parte destes
privilegiados se tivessem vivido um século ou dois atrás - uma possibilidade
muito remota", escreveu Taylor. "A lealdade do Sr. Hobsbawm está
firmemente do outro lado das barricadas", disse.
Obras - O primeiro livro de Hobsbawm, "Rebeldes
primitivos", publicado em 1959, é um estudo dos que ele chamava de
"agitadores sociais pré-políticos", incluindo ligas de camponeses
sicilianos e gangues e bandidos metropolitanos, um exemplo de seu interesse
pela história das organizações da classe trabalhadora.
No mesmo ano, ele escreveu uma obra sobre jazz e começou a
colaborar como crítico para a revista "New Statesman" usando o
pseudônimo Francis Newton, em homenagem ao trompetista comunista que
acompanhava a cantora americana de jazz Billie Holiday.
Em 1962, ele publicou "Era da revolução", primeiro
de três volumes sobre o que chamou de "o longo século XIX", cobrindo
o período entre 1789, ano da Revolução Francesa, e 1914, começo da I Guerra
Mundial. Os seguintes foram "Era do capital" (1975) e "Era dos
impérios" (1987).
O quarto livro da sequência, "Era dos extremos"
(1994), retratou a história até 1991, com o fim da União Soviética. Ele foi
traduzido para quase 40 línguas e recebeu muitos prêmios internacionais.
Suas memórias, publicadas quando tinha 85 anos, elencaram os
momentos cruciais na história europeia moderna nos quais ele viveu, e também
foram um best-seller. Seu último livro é "Como mudar o mundo", de
2011, e é um compilado de textos escritos, desde a década de 1960, sobre Karl
Marx e o marxismo. De acordo com o jornal britânico "The Guardian",
ele tem um livro em revisão a ser publicado em 2013.
O século de Hobsbawm
Artigo de Vladimir Safatle, professor livre-docente do
Departamento de filosofia da Universidade de São Paulo.
Morreu ontem Eric Hobsbawm, um dos mais influentes
historiadores do século 20. Sua influência veio não apenas de um trabalho
seguro e rigoroso de pesquisa historiográfica que privilegiava movimentos
sociais dos séculos 19 e 20. Na verdade, em uma época como a nossa, que parece
abraçar de maneira entusiasmada a crítica das chamadas
"metanarrativas" com suas visões de processos globais e movimentos
teleológicos, Hobsbawm destoava por ser um dos poucos que não se contentavam em
afundar-se na micro-história.
Sem medo de procurar processos nos quais rupturas
socioeconômicas e produção de novas ideias de cunho universalista se
entrelaçam, Hobsbawm soube, como poucos, mostrar como a história da modernidade
ocidental sempre foi a história das revoluções.
Fiel à filosofia da história de cunho hegeliano herdada pela
tradição marxista, ele escreveu quatro livros clássicos ("A Era das
Revoluções", "A Era do Capital", "A Era dos Impérios"
e "Era dos Extremos") a fim de mostrar como as exigências
igualitárias de liberdade enunciadas pelos setores populares da Revolução
Francesa moldarão o curso da história como uma voz que sempre volta. Tal voz da
igualdade será o fator de inquietude de uma história que será, cada vez mais,
realmente mundial.
Adorno dizia que a fixação positivista nos "fatos"
escondia, muitas vezes, a simples incapacidade de enxergar estruturas. Pensar é
saber estabelecer relações e, se é inegável que certas construções da
historiografia marxista demonstram-se infrutíferas e demasiado genéricas, há de
se reconhecer que a rejeição em bloco dessa tradição teve forte impacto
negativo na nossa capacidade de pensar a história.
Mas isso nunca impediu Hobsbawm de imergir nos detalhes e
encontrar, por exemplo, na voz de Billie Holiday as marcas do sofrimento social
dos esquecidos do sonho americano (conforme o livro "História Social do
Jazz") ou nas desventuras do bandido Jesse James algo de fundamental a
respeito dos descaminhos de nosso ideal de liberdade e das debilidades do poder
(conforme o livro "Bandidos"). Hobsbawm sabia ler tais "fatos
isolados" como sintomas sociais.
Alguns, como o historiador britânico Tony Judt, insistiam
que Hobsbawm não teria capacidade de compreender as ilusões que moldaram o
século 20, em especial o comunismo. Talvez seja o caso de dizer que a
compreensão da história como simples crítica das ilusões corre o risco de
perder de vista o essencial: de onde vem a força que faz com que indivíduos
consigam ir além de seus próprios interesses imediatos? O que talvez explique porque
quis o destino que o último livro de Hobsbawm se chamasse exatamente "Como
Mudar o Mundo".
Hobsbawm expandiu limites do pensamento marxista
Artigo de Jorge Grespan, professor do Departamento de
História da Universidade de São Paulo.
Eric Hobsbawm conquistou justo prestígio entre o grande
público apreciador da história e também entre seus colegas de ofício, o que já
é em si algo digno de nota. Claro e elegante, abordou temas aparentemente tão
distintos como o mundo do trabalho e o jazz, sempre preocupando-se em
relacionar as várias esferas da vida social e fugir de explicações unilaterais,
pintando quadros históricos largos, mas precisos.
Incluindo-se na geração de historiadores do pós-Guerra que
chamava de "modernizadores", dedicou-se inicialmente à história do
século 19, e o sucesso alcançado por seu "A Era das Revoluções"
levou-o a escrever "A Era do Capital" e "A Era dos
Impérios".
Não os escreveu para os colegas, mas tornou-se referência
também para eles, carentes de obras que rompessem limites entre temas
particulares e situações nacionais.
Teve nesse ponto importância decisiva, ao criticar a
historiografia acadêmica tanto por sua especialização excessiva quanto pelos
preconceitos que a impedem de se dirigir a um público leigo.
Hobsbawm chegava a se apresentar como
"vulgarizador". Mas não nos enganemos: atingir um público amplo
significava não satisfazer a curiosidade acrítica do mercado editorial, e sim
participar de um esforço formador.
Em grau e forma própria, compartilhava com colegas como
Christopher Hill e E. P. Thompson de uma atitude crítica em relação ao que se
consideraria próprio a um historiador marxista e, por isso, inovou nos temas e
métodos, como ao escrever sobre uma de suas paixões, o jazz.
Aqui, como na obra sobre "A Invenção das
Tradições", o interesse é iconoclasta. Trata-se de solapar entidades caras
ao neoconservadorismo militante a partir dos anos 1970, descobrindo o lado
mistificador de certos apelos ao passado legitimador.
Mais do que expressão do inconformismo racial nos EUA, o
jazz é entendido no contexto da história da indústria, em especial a cultural.
E tradições importantes da monarquia inglesa são examinadas e diferenciadas dos
"costumes" em que se baseia o direito consuetudinário típico da ilha,
para evidenciar que nelas o passado aparece como algo justificador da
resistência a mudanças perigosas para os poderes constituídos.
Mostra assim aos críticos que o marxismo não precisa ser
economicista. Mas o mostra também aos marxistas. Esses são seus grandes
legados.
Como seria inevitável, há quem discorde de teses expostas na
sua vasta obra. Mas não quem negue que ele foi um dos maiores historiadores
marxistas de nossa era, cujos "extremos" parece que só começaram
depois de 1991.
DEPOIMENTOS
"Um dos mais lúcidos, brilhantes e corajosos
intelectuais do século 20 (...) Quatro meses atrás, Hobsbawm enviou-me uma
carinhosa mensagem: 'Diga ao Lula para seguir lutando pelo Brasil, mas não se
esquecer jamais da sofrida África.'"
Luiz Inácio Lula de Silva, ex-presidente da República
"Morre um dos maiores historiadores de nossa época.
Homem de posições políticas claras, nunca perdeu o amor pela objetividade.
Tinha especial interesse pelo Brasil, onde era amplamente relacionado. Mantive
com ele relação de admiração e amizade."
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República
"Foi um gigante da história política, alguém que
influenciou toda uma geração de líderes e acadêmicos. E era um agitador
incansável por um mundo melhor."
Tony Blair, ex-primeiro ministro britânico
"Ele se ocupava do passado em função do presente. Seus
livros seguem atualíssimos."
Evaldo Cabral de Melo, historiador e diplomata
"Mais do que um dos principais historiadores, foi um
dos principais críticos do século 20. Teve coragem de romper com a cronologia
estabelecida pelos historiadores."
Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga e historiadora
"Excelente historiador social e um historiador político
capaz de fazer grandes panoramas, além de lutar por transformações que levassem
a uma sociedade mais justa e igualitária."
José Murilo de Carvalho, historiador e cientista político
"Embora ele tivesse suas convicções, nítidas e
assumidas, nunca lhe faltou generosidade com as ideias e posições alheias. O
debate cultural vai ficar desfigurado sem sua reflexão histórica."
Nicolau Sevcenko, historiador e escritor
"Por muito tempo, era o único historiador que a gente
conseguia ler com prazer. Seus livros eram um balão de oxigênio para quem
gostava de história."
Luciano Figueiredo, historiador
"Odiava qualquer tipo de nacionalismo. Era comunista
porque sempre pensou no comunismo como um movimento internacional."
Donald Sassoon, professor da Universidade de Londres
"Era um historiador extremamente talentoso,
lúcido, que nunca se furtou de lidar com as questões mais difíceis. Eu o
conheci em Cuba, no final de 1967, e me lembro de uma figura independente e
extremamente instrutiva. Mesmo que não concordasse sempre com ele, reconheço
que foi um dos gigantes."
Todd Gitlin, sociólogo, professor da Columbia University
"Podemos dividir Hobsbawm em dois: um que fala do período
que não viveu, que é também o período que não está marcado pela ideologia que
ele assumiu, e outro que fala do período que viveu. Concordando-se ou não com a
linha histórica que ele representa, ele é um grande historiador quando trata do
período que não viveu e um historiador menor ou, pior, um ideólogo da História
ao tratar do século 20. Ele permaneceu fiel à União Soviética apesar de suas
críticas. Com sua morte, encerra-se um ciclo de escrita da História. Nunca mais
teremos um historiador importante, no sentido de qualidade e ser bastante lido,
que faça o mesmo caminho de Hobsbawm."
Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana
pela USP
"Depois dos anos 50, a teoria marxista rapidamente
degenerou numa escolástica principalmente porque procurava manter a unidade de
um sistema cujas fundações começavam a ser abaladas. Em vez de retornar ao
exame das primeiras noções, como aquela da forma de valor, ela procurou
sustentar a todo o custo a unidade do sistema. Os historiadores foram a gloriosa
exceção dessa mania. Eric Hobsbawm foi o maior deles, acompanhando as novas
formas das crises revolucionárias até mostrar como o ciclo das revoluções
chegava a seu fim. Exemplo de intelectual engajado que não se aferra à unidade
abstrata do sistema."
José Arthur Giannotti, professor emérito de filosofia da USP
"Foi um grande historiador e um escritor de primeira
qualidade, capaz de fazer sínteses muito ricas e escrever obras deliciosas.
Viveu 95 anos, pode realizar muitas coisas. A única questão que não foi bem
resolvida foi o balanço de suas relações como Partido Comunista, mas esse é um
ponto pequeno no conjunto de sua obra."
Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia
política da USP
"Ninguém que tenha participado da primeira Flip, em
2003, vai se esquecer da visão de Eric Hobsbawn sendo perseguido por fãs pelas
ruas de Paraty e depois dizendo que aquela tinha sido a primeira vez em que
fora tratado como um popstar e que tinha gostado. E nem vai se esquecer dele
pulando de um barco de pescador para a praia... com seus 80 anos."
Liz Calder, editora inglesa e idealizadora da Festa
Literária Internacional de Paraty
Data: 02.10.2012
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