O [Mais que Ideias] de hoje traz textos escritos por Raul Lody, antropólogo, escritor e especialista em antropologia da alimentação com projetos de pesquisas no Brasil e no exterior a partir de 1972. Raul é criador do Grupo de Antropologia da Alimentação (Fundação Gilberto Freyre). O antropólogo escreve para o Site Brasil Bom de Boca, que é um site de uma coluna da Revista Nova Raiz. O site é dedicado ao livre pensar sobre a comida e a alimentação. Para inaugurar a coluna, Raul escreve sobre um dos pioneiros da compreensão cultural da comida, Gilberto Freyre.
Segue os textos:
Em Gilberto Freyre cada comida é um sentimento
Certamente é no cotidiano, nas festas, e nas celebrações religiosas que a comida e a bebida expõem a história, o meio ambiente e as matrizes étnicas. E assim, ingredientes, receitas, alimentação, e ecologia, misturam-se; e tudo isto possibilita uma compreensão inovadora, contemporânea, atual para época, e para os dias de hoje. A comida foi uma escolha de Gilberto para interpretar o brasileiro. As muitas questões e revelações de Gilberto Freyre sobre a comida na sua dimensão sociocultural é, ainda, um tema tratado por poucos estudiosos.
A verdadeira “civilização da comida” dá uma importância especial à obra de Gilberto, especialmente nos contextos de multiculturalidade e de uma busca cada vez maior no mundo contemporâneo pela soberania alimentar.
E como dizia Gilberto:
“Uma cozinha em crise é uma sociedade em crise…”
Sarapatel bom é o de feira!
Gilberto Freyre afirma que o “sarapatel bom é o de feira”; e com este sentimento diz ainda que certas comidas têm um sabor diferente quando estão nos seus espaços de consagração, atribuindo-lhes um valor contextual, um sentido de território.
Na construção deste olhar, Gilberto aponta para uma leitura contemporânea de lugares patrimoniais onde se vivem e se exercem rituais sociais singulares, únicos, por serem autorais e manifestarem as identidades de pessoas, de grupos, de segmentos profissionais; neste caso, os cozinheiros e as cozinheiras. Sem dúvida, a escolha do local para comer é sentimental, e a feira, com o seu cozinheiro ou cozinheira [já que ainda não se vivia a glamourização do chef], ser cozinheiro, à época, ocupava lugar de merecida honra.
Os saberes da cozinha são familiares, experimentais, vocacionais, pois o ofício da cozinha exige conhecimento, trabalho e invenção; mesmo em receitas que são repetidas há séculos.
Para Gilberto [creio], o sarapatel traz a marca e o significado telúrico, sendo o mesmo que comer a feira, o mercado, e Pernambuco. Ele dá à comida um valor de representação da memória e do pertencimento a uma história, a um lugar. E é a feira, para ele, um lugar privilegiado para se viver as relações sociais, pois é um lugar se encontros, de comunicação, de representação do que é possível ser consumido.
A feira é um registro social e econômico, e assim o sarapatel da feira está temperado com temperos reais e simbólicos, ambos com profundo sabor. [Nesse momento, eu gostaria de “abrir” este banquete com uma “purinha”, “água que passarinho não bebe”, a boa cachaça, e então com o paladar aberto, pronto para receber a comida, encontrar-me com o idealizado e aguardado sarapatel].
Tão doce, tão muçulmano, tão brasileiro. O arroz doce.
“O português com seu gênio de assimilação trouxera para sua mesa alimentos, temperos, doces, aromas, cores, adornos de pratos, costume e ritos de alimentação das mais requintadas civilizações do Oriente e do Norte da África. Esses valores e esses ritos se juntaram a combinações já antigas de pratos cristãos com mouros e israelitas (…)”. (Gilberto Freyre in Manifesto Regionalista, 1926.)
Um dominante conceito de mundialização está em Gilberto Freyre, especialmente quando se trata das comidas, dos seus processos culinários e dos rituais de servir e de comensalidade; pois ele escolheu a comida, e seus complexos processos e símbolos, como um dos seus mais estimados métodos para interpretar o brasileiro. Gilberto sempre notabilizou o homem muçulmano (mouro) na formação brasileira, e na construção da civilização Ibérica, principalmente nas bases culturais e sociais de Portugal. Desta maneira, o nosso colono oficial português já trazia uma formação afro-islâmica que estava presente na comida, na estética, no idioma, na música, na arquitetura; e em tantos outros temas que marcantes que determinaram as nossas características de povo.
Dessas tradições luso-muçulmanas, chegam elaboradas técnicas culinárias, ingredientes, receitas; e a valorização estética das comidas e dos utensílios da mesa, havendo uma grande importância nos rituais da comensalidade. Tudo isso passa a marcar os nossos hábitos e preferências alimentares, e consequentemente na formação de nosso paladar.
É o caso do tão querido e popular “roz bil halibi”, o nosso arroz doce. Sobremesa do cotidiano, comum, que pode ser enriquecida com leite de coco, raspas de limão, gemas de ovos; e, muita, muita canela para enfeitar o prato, para dar gosto e cheiro. O arroz, ainda quente, na travessa ou prato, é pulverizado com a canela, que exala o perfume do Oriente. Canela vinda do Ceilão, da Índia. E o açúcar, sim, muito açúcar, pois, tradicionalmente a nossa doçaria é muito doce, nossos preparos são dulcíssimos, o que afirma uma civilização dominante da cana sacarina no Brasil. Assim, o nosso arroz doce, cujas receitas nacionais nascem da tradição do norte da África, aproxima-se também de outros processos culinários como misturar o leite, o arroz e o açúcar, na milenar e tradicional cozinha indiana; com o pongal ou makar-sankranti e o kheer, pratos oferecidos no festival Jyaishtha Ashthami.
A canela possibilita criar no arroz doce elementos visuais, desenhos, numa estética para ser saboreada. Ainda, pode-se realizar desenhos impressos com o uso da técnica do ferro quente colocado sobre camadas generosas de canela [o que faz exalar o aroma dominante que anuncia o doce, o prazer da comida doce]. Lembrança do deliciosocrème brulee; também alvo de uma camada crocante feita pelo emprego deste ferro, que é um utensílio culinário especial, ou se pode usar o contemporâneo maçarico culinário. Gilberto Freyre também é um apreciador declarado do arroz doce feito com leite, baunilha, açúcar, e muita canela.
Bolos de Pernambuco, interpretações em Gilberto Freyre
Que o brasileiro se identifica com o doce é um fato real, simbólico, e também civilizador por meio do açúcar processado da cana sacarina. E assim muitas receitas mostram como o entendimento do que é doce funciona em cenários da nossa história multicultural, que reúne receitas em abundância conforme os conceitos dos povos do Ocidente e do Oriente. Com certeza, o brasileiro se identifica à mesa com as comidas doces. Possibilidades de encontros ancestrais e fundamentais com a nossa própria formação cultural, que se dá nas experiências com os muitos preparos feitos a partir do açúcar; açúcar da cana de açúcar.
Gilberto reúne no seu livro Açúcar, a partir de seu olhar etnográfico para um acervo de receitas, a grande ocorrência de tipos e de vocações autorais dos bolos que marcam um trajeto e um retrato social e regional de Pernambuco, do Nordeste e do Brasil.
Para Gilberto, cada bolo é muito mais do que uma receita. Ele, o bolo, traz uma variedade de temas, de personagens, de localidades, de santos de devoção, entre tantos outros motivos. Cada bolo tem a sua individualidade, e marca, e assim constrói seus territórios de afetividade, de celebração, de religiosidade, de homenagem. Cada bolo é certamente uma realização gastronômica de estética e de sabor, e na sua maioria traz ingredientes nativos, “da terra”, mais uma maneira de atestar identidade.
Assim, bolo São Bartolomeu, bolo Divino, bolo São João, bolo Souza Leão; bolo Souza Leão à moda da Noruega, bolo Souza Leão-Pontual, bolo de milho D. Sinhá; bolo de milho Pau-d’alho, bolo Guararapes, bolo Paraibano, bolos fritos do Piauí; bolo de bacia à moda de Pernambuco, bolo de rolo pernambucano, entre tantos.
O bolo traz uma intenção, uma assinatura, uma receita; uma intenção pessoal ou coletiva, regional. Ele marca o terroir do doce em Pernambuco.
Também o significado de um bolo é repleto de valores familiares, de festas, de ritos de passagem; dos prazeres de se viver o milho, a mandioca, o chocolate, as frutas, os cremes; as coberturas de açúcar e frutas cítricas com a técnica do “glacê mármore”, branco e compacto, uma verdadeira delicia de cobertura, e se o bolo for o de frutas secas mergulhadas no vinho do Porto ou Moscatel, com a estimada receita de “bolo de noiva”, uma releitura do bolo de frutas inglês, um bolo do tipo “bolo-presente” para festas e celebração.
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