“Olhe, papai, touros!”Foi assim que Maria, filha do arqueologista espanhol Marcelino Sanz de Sautuola, gritou para avisar o pai o que havia visto. A menina, então com oito anos, acabara de deparar-se com uma série de desenhos rupestres espalhados no teto da caverna onde brincava. Eles estavam em uma gruta localizada em Altamira, local próximo do atual município de Santilla del Mar, na Cantábria,no norte da Espanha. Don Marcelino Sautuola, que havia levado a menina até o local para passar o tempo, olhou para teto da gruta e viu, com assombro, bisões e veados pintados em camadas multicoloridas, dispostos em uma larga extensão. O ano era 1879 – somente vinte anos depois de Charles Darwin ter publicado o revolucionário Origem das espécies e, portanto, até então, a origem antepassada dos humanos ainda carecia de apoiadores.Nada parecido com aqueles traços havia sido registrado antes.
Esse foi o momento pelo qual Sautuola seria (ainda o é) lembrado na história da arqueologia. Passado o entusiasmo inicial, Sautuola apresentou o sítio por ele descoberto no Congresso de Antropologia e Pré-história em Arqueologia que aconteceu em Lisboa, Portugal, em 1880. A reação dos pares foi de total descrédito.
“Homens das cavernas não seriam capazes de produzir tal arte!”, disseram os pesquisadores no congresso. Por fim, todos concordaram que Sautuola era um mentiroso. O descrédito e a ofensa à honra foram a derrocada do espanhol, que morreria oito anos depois à míngua. A “farsa” de Altamira caiu por terra somente em 1902, quando os críticos visitaram a gruta e viram, por seus próprios olhos, que a arte rupestre realmente existia e Sautuola estava correto.
A história da ciência é repleta de alguns parcos momentos de glória e muitos de frustrações – como o caso de Altamira, descrito no livro Why the West rules, de Ian Morris. O fazer científico, dentro de um rigor, já tem em si mesmo uma dificuldade inerente. Quando tem que ser creditado e avaliado pela comunidade científica, ou seja, abalizado pelos pares do cientista, pode se tornar mais difícil ainda. No caso de Sautuola, não houve má-fé ou fraude por parte do arqueologista.Mas ele propunha ter visto algo que mudava a compreensão humana de então.
Bem diferente aconteceu com a famosa história do Homem de Piltdown – esta sim, uma fraude comprovada. Em 1912, Charles Dawson, colecionador de antiguidades, junto com o paleontólogo britânico Arthur Smith Woodward, desenterraram um crânio humano com mandíbula de macaco. O “elo perdido” causou furor nos homens da ciência de então – ofuscando, inclusive, outras descobertas verdadeiras feitas na mesma década. A farsa só foi desmontada em 1953, quando testes com carbono-14 dataram que o crânio tinha 10 mil anos e a mandíbula havia sido envelhecida quimicamente, ou seja, era bem mais nova. Nunca foi provado quem foi o autor da fraude, nem mesmo quais seriam as intenções tanto de Smith quanto de Dawson. Restou o aprendizado histórico.
Separar o que é fraude do erro e do engano e até mesmo a mera desqualificação por interesses escusos não é nada simples. “A ciência é uma atividade humana e, portanto, sujeita a todas as injunções que cercam seus agentes, como os de outras atividades, sejam injunções econômicas, políticas, culturais, de poder etc. Errar é parte do processo de aprendizagem, seja no nível individual, seja no coletivo.A história é pródiga de exemplos”, explica Francisco de Assis Queiroz, professor de história da ciência na Universidade de São Paulo (USP). “Mas o mesmo processo de aprendizagem e a história levam à correção dos mesmos erros. Isso não significa que não se cometam erros ou ‘enganos’ deliberados, configurando a fraude, que é o mesmo que iludir ou mentir. Tais precedentes existem também na atividade científica, cabendo à própria comunidade científica ou agentes externos a ela a crítica vigilante e permanente de suas atividades”, completa.
Para o pesquisador da USP, as primeiras suspeitas e críticas a novidades na ciência, em geral, vêm dos próprios pares dos cientistas, da própria comunidade. “Isso é normal. Uma teoria nova não se impõe automaticamente. Podem pesar aí razões intrínsecas à própria teoria, além de outras variáveis, como econômicas, políticas, religiosas, filosóficas, culturais etc. O heliocentrismo, por exemplo, foi proposto, entre outros, por Aristarco de Samos no séc. III a.C. Mas por várias razões, não se impôs como teoria, sendo (re)proposto dezoito séculos depois por Copérnico. A história está repleta de disputas de paternidade de teorias, inventos técnicos etc. Os casos mais recentes passam, por exemplo, por empresas como Apple e Facebook”, ilustra Queiroz.
O monge e botânico Gregor Mendel viveu na pele tais questionamentos: suas experiências com cruzamento de espécies, como ervilhas e feijões – pioneiras para ajudá-lo a deduzir a existência dos genes – foram colocadas sob suspeita pelos pares. Os números eram tão impressionantes que instigavam interrogações dos críticos mendelianos. Os dados de Mendel, analisados décadas depois pelo geneticista e estatístico Ronald Fisher, eram “muito bons para serem verdadeiros”, escreveu Fisher. No caso, a falta de precisão acusada por Fisher versus a falta de claridade em algumas passagens da obra de Mendel alimentam ainda hoje a querela – com larga vantagem para os defensores do monge agostiniano.
Projeto Manhattan
Na história da ciência, o momento mais destacável da união entre ciência, ideário político e financiamento aconteceu com o Projeto Manhattan, programa oficial dos Estados Unidos para construir armas de destruição em massa, cujo resultado foi a bomba atômica. Grandes cientistas à época participaram do projeto, bancado pelos governos norte-americano, inglês e canadense. Após isso, os mecenas da ciência logo deixaram de ser homens ricos e deram lugar a governos – altamente interessados em ingressar nesse jogo com vantagens (algo que as descobertas científicas proporcionam também) dentro da lógica da competitividade mercadológica. Foi um pequeno passo para a produção científica passar a ser impulsionada por meio dos incentivos financeiros – e não mais a ciência pela ciência, tal qual a que movia Mendel e muitos outros.
O exemplo mais cabal e comprovado do interesse financeiro aliado à ciência ocorreu em 2004, quando o sul coreano Hwang Woo-suk anunciou que havia produzido os primeiros embriões humanos clonados, em pesquisas feitas na Universidade Nacional de Seul. Uma das vantagens da descoberta seria a possibilidade de extração de células-troncos. Com artigo na renomada revista Science e apoio governamental, Hwang virou celebridade instantânea. Só que sua carreira meteórica desmoronou um ano depois, quando um colaborador do sul-coreano, Geral Schatten, denunciou desvios éticos. Hwang comprou óvulos de 16 mulheres, além de ter coagido cientistas do próprio laboratório a também doarem óvulos. As investigações revelaram, inclusive, montagem fotográfica dos dados publicados. No fim, Hwang foi investigado por mau uso do dinheiro público (algo em torno de US$ 65 milhões, segundo a imprensa internacional) e, pior, perdeu o direito de sair do seu país.
“A fraude pode ocorrer em graus diferentes, desde o mais imperceptível até o mais sério. Um laboratorista que resolve omitir um dado discrepante, que pode ter surgido por um mau funcionamento momentâneo do equipamento, já está violando uma das normas da ciência experimental. Mais sério é um cientista que ‘força’ seus dados a se encaixarem em uma expectativa teórica, podendo, assim, ser considerado um pioneiro de uma área. Essas são as ‘pequenas fraudes’, bem conhecidas no dia a dia dos cientistas, assim como os ‘pequenos plágios’, em que trechos de outros autores acabam sendo incorporados sem citação explícita. Tais ocorrências, quando detectadas, são geralmente resolvidas internamente pela comunidade em questão”, reflete Osvaldo Pessoa Jr., filósofo da ciência do Departamento de Filosofia da USP.
“A pressão por prestígio e por verbas, porém, tem levado cientistas a arriscarem mais alto e, quando são descobertos, temos uma fraude pública. Uma ‘fraude’, é claro, é uma falsificação intencional de dados, diferente de uma situação de ‘ciência patológica’, em que os dados são manipulados de maneira mais inconsciente. Faz parte da psicologia humana ‘forçar’ os dados a se encaixarem nas expectativas teóricas, e boa parte do método científico visa neutralizar esse efeito. Outra tendência psicológica humana é julgar que uma ideia que apareceu em uma discussão foi criação sua”, continua o filósofo da USP. Segundo ele, há de se ressaltar que na chamada “grande fraude”, como no caso do sul-coreano Hwang, o cientistas tem a clara consciência de que falsificou dados ou roubou ideias. “E o fato é que as grandes fraudes sempre acompanharam a ciência, sendo às vezes descoberta, às vezes não”, acrescenta.
Produção científica
Exigir produção científica é parte do pressuposto das avaliações científicas atualmente. As agências de fomento e os governos analisam o status quo dos cientistas pelo número de pesquisas que ele promove e estas, geralmente, são reconhecidas pelos seus pares em publicações (os famosos papers). Um dos riscos disso, segundo Pessoa Jr., é a busca pela maximização de indicadores – uma ênfase exagerada no número de publicações, em detrimento da qualidade delas. “Uma das consequências do uso intenso dos indicadores quantitativos é que o trabalho científico e acadêmico pode voltar os seus fins não apenas para a produção de boa qualidade, mas para a maximização dos indicadores. Assim, podemos dividir o trabalho em pequenos artigos, convidar um coautor em troca de ser convidado para uma publicação dele, citar sistematicamente nossos próprios artigos e os dos amigos etc. Outra consequência da ampliação do sistema científico mundial é a possibilidade de grupos fortes roubarem ideias de grupos menores ou mais periféricos. Mas o que nos interessa aqui é uma consequência mais radical dessa pressão por publicações: a fraude”, analisa.
No entanto, alerta o historiador da ciência Francisco de Assis Queiroz, a fraude não deve ser diretamente relacionada com o incentivo ao produtivismo – algo que é deveras simples de ser dito, mas difícil de ser correlacionado. “O ambiente de competição e exigência de maior produtividade, seja para obtenção de mais verbas, poder, ascendência sobre os pares, autoridade etc, pode ser um estímulo a mais para a fraude; mas a fraude não precisa, necessariamente, do ambiente de competição, podendo acontecer em qualquer ambiente. A fraude não é um fenômeno novo, fruto da competição apenas. Ela é humana. Existiu fraude na Antiguidade, como existiu no mundo medieval e existe nos dias atuais”, afirma Queiroz.
“Dilemas e preocupações relacionadas a aspectos éticos não são novidade na história do conhecimento e das atividades científicas. Pensar a ética é de suma importância e gravidade em qualquer atividade, incluindo a ciência, pois, em última instância, pode implicar em questões de vida ou morte. Talvez o caso pioneiro e emblemático na história ocidental a esse respeito seja o do julgamento de Sócrates, do séc. IV a. C. que, por sua atividade de pensar e ensinar a pensar sobre o homem e suas relações em sociedade, foi acusado por seus detratores de corromper a juventude ateniense e condenado a tomar um veneno (cicuta) que o levaria à morte”, aponta Queiroz.
Obviamente, com a regulação por parte dos governos e a criação de institutos e universidades, as fraudes passaram a ser mais controladas. Restrições e mecanismos que inibem erros foram estabelecidos. Uma reação das agências de fomento e dos governos é, além da punição dos envolvidos em casos de fraudes e até retratação de erros, criar manuais de comportamento para os cientistas. “Mais recentemente, foram elaborados manuais que explicitam de forma mais enfática e ampla os procedimentos que devem ser constitutivos do ethos do pesquisador. É uma espécie de nova ‘Constituição Cidadã’ do pesquisador”, diz Queiroz. “Diversos casos de ilícitos, como plágio ou outro tipo de fraude, têm inclusive repercutido na mídia em anos recentes. Sabe-se que foram apurados e foram atribuídas as devidas responsabilidades e sanções, incluindo perda de títulos, verbas e cargos. Isso aconteceu, por exemplo, no Brasil, na Coreia do Sul, nos Estados Unidos, na Europa. Certo corporativismo existe em qualquer grupo, o que não impede que o grupo exerça algum tipo de controle e regulação das atividades de seus membros. É uma questão também de autopreservação”.
Apesar de chamativos, fraudes e erros históricos são pequenas exceções ao rigor no fazer ciência. A maioria da ciência é feita dentro de um alto nível – quando nem sempre os financiamentos são baseados em produção de resultados ou lucros: ainda existe um limiar no qual se busca o conhecimento, em detrimento de interesses diversos. “A ciência é feita por seres humanos, que têm interesses e atuam em determinado meio ou contexto. Certamente a fraude é uma parte menor na história da ciência. Na maior parte da história, os homens e mulheres ligados à ciência têm dedicado o melhor de seus esforços à grande e fascinante aventura do conhecimento e à busca de respostas para alguns dos problemas que seu tempo apresenta”, finaliza Queiroz. Essa é a mesma curiosidade que moveu a pequena Maria a ver os touros em Altamira.Talvez, hoje, o pai dela tivesse uma vida longa e próspera pela sua descoberta.
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