Campinas, 25 de maio de 2015 a 07 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 626
Pesquisadores da Unicamp e da Universidade Hebraica de Jerusalém descrevem adaptação de espécie
Texto: Carlos Orsi
Fotos: Antoninho Perri
Edição de Imagens: Fábio Reis
O periódico científico Plant Biology reservou a capa de sua edição de maio para um artigo de autoria de pesquisadores da Unicamp e da Universidade Hebraica de Jerusalém, sobre a adaptação da flor de uma espécie de maracujá, Passiflora mucronata L., à polinização por morcegos. O artigo compõe a primeira parte da tese de doutorado de Diego Rocha, defendida na Unicamp em março.
Flores evoluem de modo a seduzir polinizadores: apresentando atrativos e oferecendo recompensas que levem animais a visitá-las e a carregar seu pólen para outras flores, garantindo assim a preservação da espécie. As estratégias de sedução variam de acordo com o público-alvo, e podem envolver características muito específicas, como a composição do néctar e o formato de estruturas internas da flor. Insetos e pássaros são os preferidos, mas há oito espécies conhecidas, das mais de 600 dentro do gênero passiflora – que inclui o maracujá comum – que são especializadas em atrair morcegos.
A primeira passiflora polinizada por morcegos foi descrita na década de 70 pela pesquisadora da Unicamp Marlies Sazima. Atualmente, um grupo do Instituto de Biologia (IB), encabeçado por Marcelo Dornelas, orientador do doutorado de Rocha e um dos autores do artigo na Plant Biology, busca entender a causa dessa variedade: por que as passifloras não se “satisfazem” em ser polinizadas por insetos e beija-flores?
“O maracujá comum, comercial, é polinizado por mamangava”, disse ele. “E a gente acredita que tanto o maracujá que é polinizado por morcego quanto o que é polinizado por beija-flor têm um ancestral comum que era polinizado por um inseto, próximo do maracujá comum que a gente está acostumada a ver”.
“Os insetos apareceram, na evolução, antes de morcegos e beija-flores. O beija-flor apareceu com a elevação dos Andes: quando os Andes apareceram, os beija-flores apareceram mais ou menos na mesma época, e os morcegos que bebem néctar de flor apareceram um pouquinho antes disso. Mas inseto, sempre teve”, explicou Dornelas. “Todas as espécies que são parentes próximas do maracujá são polinizadas por insetos. Então, o que a gente quer entender, a longo prazo, é como são os passos evolutivos para sair de uma flor polinizada por insetos para dar esses formatos, essas cores e aromas e néctares diferentes”.
EQUILÍBRIO DELICADO
A tese de Diego investigou ainda variedades híbridas entre passifloras polinizadas por beija-flor – cujas flores têm cor forte, néctar rico em açúcares e se abrem durante o dia – e por morcegos, com flores brancas, néctar com conteúdo importante de aminoácidos e que se abrem à noite. Esses híbridos foram produzidos pela Embrapa, que buscava uma forma de transferir características genéticas desejáveis do maracujá silvestre para a variedade comercial.
“Fiquei sabendo desses híbridos justamente porque um pesquisador da Embrapa me disse: nós fizemos uns híbridos, você não quer dar uma olhada? Porque, aparentemente, está tudo bem, mas não dá fruto. Dê uma olhada nessas flores para ver se elas não têm algum defeito. Eu lembro que vi que não tinha nada de errado com as flores. Perguntei: que espécie você cruzou? Ah, eu cruzei uma espécie, essa que é polinizada por beija-flor, e uma polinizada por morcego, e o hibrido a gente põe no campo e não dá fruto”, contou Dornelas. “E respondi: claro, porque não tem um bicho que seja o cruzamento de morcego com beija-flor! As flores do híbrido abrem de dia, mas têm características de odor, de cor, etc., que o beija-flor não gosta. Quando chega de noite, a flor já fechou. Então ela não é visitada nem por morcego, nem beija-flor. Se você for lá e polinizar com a mão, artificialmente, ela produz fruto”.
Os híbridos da Embrapa demonstraram que algumas das características que tornam certas espécies de passiflora atraentes para morcegos são recessivas – isto é, atenuam-se ou mesmo desaparecem na miscigenação. “A curvatura do androginóforo nunca é herdada, se você cruzar essa flor com uma flor polinizada por beija-flor, que não é curva, o híbrido perde a curvatura”, exemplificou Dornelas. “Essa estrutura curva fica reta no híbrido. Isso talvez explique porque há tão poucas espécies de passiflora polinizadas por morcegos: porque todas as características são recessivas. O fato de ser branca a flor é recessivo. O fato de o androginóforo ser curvo é recessivo. Então isso tudo se perde muito fácil, o que traz a pergunta de como essas caraterísticas são mantidas, afinal”.
O pesquisador acrescenta que o fato de só haver oito espécies de passiflora conhecidas polinizadas por morcegos – ante uma centena de espécies que usam beija-flores, e várias centenas polinizadas por insetos – indica que deve haver poucos modos de se “construir” essa flor, agradável para os mamíferos voadores.
“Só tem oito, que a gente saiba, e todas chegaram à mesma solução: mesmo formato, mesma cor, são muito parecidas. Todas são brancas”. O fato de a flor ser branca é econômico para a planta, que deixa de produzir uma série de enzimas envolvidas na coloração.
OS SIMPSONS
O artigo publicado em Plant Biology explica a curvatura do androginóforo – uma coluna que suporta as partes masculina e feminina da flor – da planta polinizada por morcegos como resultante de uma dupla de fatores: a distribuição diferenciada de um hormônio que estimula o crescimento das células e o fato de o androginóforo crescer mais depressa que o botão que o envolve, o que o força a dobrar-se.
“O crescimento faz com que ele se dobre, e o hormônio fixa essa curvatura, uma vez que o botão se abre”, disse Dornelas. Sobre a importância da curvatura do androginóforo na atração de morcegos, o pesquisador explicou que ainda não existe um papel comprovadamente ligado à característica, mas que há algumas hipóteses. “Normalmente, os morcegos localizam as flores por ecolocalização, pelo reflexo do som”, relatou. “Uma solução de porque o androginóforo é curvo pode ser essa: vibra mais, então auxilia na ecolocalização. Mas isso é tema para outra tese”.
Dornelas conta que a ideia de que o androginóforo poderia estar sendo forçado a curvar-se por conta da falta de espaço no interior do botão surgiu da lembrança de um episódio da série animada de televisão “Os Simpsons”.
“Tem um episódio em que um personagem chamado Nelson, que está sempre caçoando dos outros, resolve caçoar de um cara que está dentro de um fusquinha, todo apertado. Ele aponta, rindo, para o sujeito. Então o carro abre a porta, e na hora que o motorista sai, é um sujeito enorme, que estava todo enrolado porque o carro era muito pequeno, e ele era bem alto”, disse.
“Então, falei para o Diego: acho que o que faz o androginóforo encurvar é como o cara dentro do carrinho: ele é grandão, mas se encurva dentro carrinho para caber. Então, se isso é verdade, se a gente abrir como se fosse um teto solar no botão da flor, cortando a parte de cima do botão, ele vai crescer reto. Esse foi o primeiro experimento que o Diego fez, uma coisa inspirada pelos Simpsons e que funcionou: realmente, o androginóforo só se curva porque está preso dentro do botão floral. Quando se abre a parte de cima do botão floral, ele cresce reto”.
Já os colaboradores da Universidade Hebraica de Jerusalém ajudaram no teste com o hormônio que fixa a curvatura. “Se fosse só a questão do tamanho do botão, na hora que a flor abre, o androginóforo desentortaria”, disse o pesquisador. “Mas não acontece. Existe alguma coisa, no nível celular, que faz com que isso se fixe de algum jeito”.
Essa fixação ocorre por conta do crescimento diferencial das células, controlado por hormônios. A técnica de aplicação do hormônio usado no teste, por meio de injeção, foi sugerida pelos parceiros de Israel. “Tanto o maracujá comercial quanto este têm uma camada de cera, para evitar que a planta resseque no calor”, o que tornava a técnica de pulverização pouco eficaz. “Eles também são coautores porque sugeriram para a gente essa maneira de testar o hormônio em si, nesse sistema”.
ABELHAS
As passifloras, assim como as espécies que as polinizam – as variedades específicas de mamangava, de beija-flor e de morcego – são nativos da América do Sul. “Inclusive, a espécie comercial que a gente usa no Brasil é nativa daqui”, disse Dornelas. “Hoje, planta-se no mundo inteiro. Em Israel, eles têm plantações comerciais de maracujá, mas adaptaram o cultivo. Estive lá e vi o maracujá sendo cultivado na areia do deserto, irrigado, e quem poliniza o maracujá comercial deles – lá não tem mamangava – é a Apis melífera, aquela abelha pequena de mel”.
No Brasil, diz o pesquisador, as abelhas até visitam as flores de maracujá, mas não fazem o trabalho de polinizadoras. “Aqui, a abelha que faz mel só rouba néctar e pólen, mas não poliniza o maracujá. Então, esses estudos acabam ajudando a entender como adaptar melhor uma cultura a um polinizador”.
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