14/10/2013
No norte da Amazônia, uma tribo de índios domina uma riqueza genética. São os baniwas, mestres na domesticação e no cultivo de dezenas de variedades de pimenta, a maioria nativa.
O som da flauta baniwa é um presente que o seu Mário ganhou do pai, que aprendeu com o avô, que, por sua vez, recebeu dos ancestrais dele. Agora, com o amigo Mário, Seu Luiz tenta manter viva essa música, junto com os utensílios tradicionais e a maloca que ele construiu com as próprias mãos. Na língua baniwa, ele explica que preservar uma música é um passo para preservar uma cultura inteira. O povo dele sempre fez isso.
A equipe de reportagem viajou até a Cabeça do Cachorro, região no extremo norte do Amazonas, para entender como os hábitos dos indígenas ajudaram a preservar uma jóia da culinária brasileira: a pimenta. A primeira parada foi em São Gabriel da Cachoeira, uma bela cidade de 38 mil habitantes às margens do rio Negro. Exceto pelo avião, o transporte pelos rios é a única forma de chegar e sair do local.
Depois de um dia de preparação, que terminou com um pôr do sol espetacular, a equipe do Globo Rural partiu cedo, rumo mais para o norte, em um potente barco do Exército a caminho do rio Içana, um afluente do rio Negro, perto das fronteiras com a Colômbia e a Venezuela.
O destino da equipe foi o Tunuí Cachoeira, que fica no rio Içana, terra do povo baniwa. A viagem até lá tem a duração de seis horas. Ao longo do percurso, a equipe passou pelo rio Negro e cruzou a linha imaginária do Equador, no limite do Hemisfério Sul para o Hemisfério Norte. Tudo isso dentro da imensidão que é a Amazônia.
O Exército Brasileiro mantém no trecho pelotões de fronteira, para proteger a Amazônia. Na região, quase todos os soldados são indígenas que nascerem nas comunidades que podem ser avistadas nas margens, ao longo da viagem. Eles conhecem muito bem o labirinto de rios no meio da selva.
A viagem chegou a demorar um pouco mais, pois o barco estava bastante carregado com o material de produção da equipe de reportagem. Ao todo, a viagem durou praticamente nove horas. Tunuí Cachoeira é uma aldeia com pouco mais de 300 pessoas. A entrada da comunidade fica em um remanso muito bonito que as crianças aproveitam para brincam e espantar o calor. Os pequenos e os jovens passam o dia na escola, do campo de futebol. Os adultos têm muito trabalho, na roça, e a equipe de reportagem seguiu com os indígenas.
Novamente pelo rio Negro e, depois, pelos igapós, as estreitas trilhas que surgem no meio das árvores parcialmente submersas quando o rio alaga. Essa região é conhecida como Caatinga da Amazônia porque o terreno, extremamente arenoso, limita o tamanho da vegetação. Quando a equipe chegou à roça, o repórter César Menezes chegou a ter uma surpresa. Com um cultivo bem caótico, houve uma derrubada de árvores, que é um trabalho dos homens, além da queimada. A roça de mandioca é no meio dos troncos e o jardim de pimenta também é no meio da roça de mandioca. Então, chegar até lá às vezes é meio complicado, ainda mais para quem conhece o local.
A equipe atravessou o terreno no meio dos troncos caídos e meio queimados. Pelo caminho, passou por pés de jerimum, de abacaxi e de outras frutas, que sempre são cultivadas no meio das mandiocas. Essa prática ajuda a alimentar a família. Enfim, a equipe chegou às pimenteiras, do outro lado da roça. Apenas algumas pimentas são retiras de cada pé e cuidadosamente colocadas em um envelope feito de folhas de ambaúma. "Então, ela protege as pimentas. Para não pegar umidade, ela está preservada e pode durar três, quatro dias", conta o índio baniwa Ronaldo da Silva Apolinário.
Cada espécie é um orgulho para a dona da roça. A índia apresenta o nome das pimentas, "ati itaperri" e "zacuite". "Elas têm sabores diferentes e cheiro diferente", explica Ronaldo Apolinário. No espaço, a maioria das espécies é nativa, mas também tem pimentas trazidas de outras regiões. Após o repórter César Menezes experimentar a pimenta, o índio Ronaldo Apolinário explica que ela também é "anti-Curupira". No fim, o repórter não chegou a fazer o teste para encontrar o menino que, segundo a lenda, é o protetor das matas e tem os pés invertidos com o calcanhar para frente. Mas veio a sensação de proteção porque a pimenta tem 20 vezes mais vitamina C do que a laranja. Não é à toa que as tribos consomem tanto, e há tanto tempo.
Andar em uma clareira, com a moradora Vera Lúcia, é como fazer uma viagem no tempo. O povo baniwa habita a região há, pelo menos três mil anos. É o que existe de registro arqueológico. Talvez exista antes disso. E, como a pimenta é o principal dos ingredientes, é o principal deles, é provável que, desde essa época, eles tenham domesticado as várias espécies de pimenta que podem ser encontradas ali.
A mitologia baniwa conta que no início, havia apenas seres primordiais, que ainda não eram gente nem bicho nem planta. Até que um dia, um grupo descobriu a fonte do poder sobre as outras espécies. "Antigamente, existia uma grande árvore que, em baniwa, é chamada 'cari catadapa'. E que, nesta árvore, existia diversos tipos de fruta, uma delas é a pimenta. Então existiam seres chamados 'wacawene' em baniwa. Dentre eles, existia um ser primordial também, que é chamado "inhapculiqueu", que é um dos principais conquistadores de todos os bens da cultura baniwa. Ele usou a pimenta como um instrumento de proteção do próprio corpo e pra cozinhar também os alimentos", conta o índio baniwa Juvêncio Cardoso.
Nos rituais de passagem para a idade adulta, os jovens aprendem que a pimenta é bactericida, ajuda a evitar a contaminação de alimentos consumidos frescos. Na representação, um pássaro é alimentado com peixe e morre. Mas, depois de acrescentar a pimenta, o grupo pode comer com segurança. Da planta mitológica aos dias de hoje, a pimenta manteve a importância e aumentou a presença nas aldeias. Essa é a constatação deuma pesquisa do Programa Jovem Cientista da Amazônia, mantido pela ONG ISA (Instituto Sócio Ambiental). "A gente pesquisou só na bacia do Içana, de Nazaré até Tucumã, e a gente achou 57 variedades", conta a professora baniwa Silvia Garcia da Silva.
Pelas regras dos banewas, a mulher não pode se casar com umhomem da mesma comunidade. Essa medida evita problemas de união entre parentes e ajuda a ter acesso a recursos de outras regiões, como a pimenta, além de facilitar a circulação das sementes e a preservação de espécies. "As mulheres, à medida que se casam, elas se mudam para outra comunidade, para a comunidade do marido, levando sementes, manivas, que é o patrimônio.
É com isso que elas podem começar e fundar uma nova família", explica o ecólogo do Instituto Sócio Ambiental (ISA) Adeilson Lopes da Silva.
Em toda a Amazônia já foram catalogadas mais de 150 tipos de pimenta. e, como elas são plantadas juntas, os cruzamentos dão origem a novas variedades. "Existem várias espécies novas, vamos dizer assim, que os baniwa não conseguem dar o nome, porque os pássaros consomem muito a pimenta. Então, eles comem, levam para outro canto e vão plantando junto com as pessoas", diz o índio André Baniwa.
Algumas aldeias têm até encantadoras de pimentas. É sempre uma anciã que herdou os segredos de ancentrais e passou por muitos rituais de preparação ao longo da vida. Ábomi, que significa "avó", em baniwa, canta para fazer as pimentas brilharem. Ela nos concedeu uma grande honra: visitar o seu jardim particular. A Ábomi conta que tem 75 anos ou mais, não sabe exatamente a idade, mas, apesar disso, ela não parece ter todos esses anos no rosto. Além disso, tem uma boa saúde. A explicação que ela tem para isso é porque ela mora aqui do lado, vive entro do jardim de pimenta que ela cultivou e com todo o significado que a pimenta tem para a culinária, saúde, religião e o espírito indígena. Isso mostra como a pimenta é completamente misturada com a cultura baniwa, tempera a cultura baniwa.
E agora os baniwa querem temperar o resto to país. Construíram, no canto da aldeia, a "aattipana dzoroo". Esse nome tem que ser explicado: "aatti" é "pimenta" e "pana" quer dizer "casa". E "dzoroo" é um besouro da região que constrói uma casinha feia por fora, mas muito lisa por dentro. A casa de pimenta baniwa é simples e pequena, mas o trabalho feito ali segue padrões de qualidade e limpeza definidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
A "aattipana dzorro" tem dezenas de espécies de pimenta conservadas in natura e secas. É um local de estudo e de produção.
Ronaldo e Osinete fabricam na casa de pimenta baniwa a "jiquitaia", que significa "pimenta com sal". O processo é artesanal: as pimentas, de todos os tipos, são trazidas pelas mulheres da aldeia, que recebem pelo que vendem. Elas são selecionadas, muito bem lavadas e colocadas em um forno para secar. Ronaldo é o responsável por transformá-las em pó. Ele fica horas assim e nem pode se sentar. "Se você sentar, o nariz vai ficar perto da boca do pilão e inspirar o pó direito. Aí, não aguenta muito tempo", ele conta.
Do pilão para a peneira, a pimenta precisa ficar bem fina e homogênea. Depois, com ajuda de uma balança, é feita uma mistura: exatos 90% de pimenta para 10% de sal. A produção é pequena é o objetivo é mantê-la assim, para não mudar a rotina da aldeia. Por isso, a pimenta jiquitaia é uma iguaria difícil de ser encontrada. Ela é vendida apenas em algumas casas de São Paulo, por exemplo.
O repórter César Menezes experimentou lá mesmo, na casa da Cida, que preparou um almoço tradicional, delicioso e apimentado. "No dia a dia da gente, às vezes tem peixe muquiado, peixe assado e também peixe cozido. Muquear é assar, em cima do fogo, sem tirar a casca. Ele é defumado", explica Cida. Ela ainda ensinou uma receita de peixe ensopado que é a quinhapira. A melhor forma de comer a quinhapira é com biju, uma massa seca feita de farinha de mandioca. "Muito gostoso. Tudo bem apimentado, temperado, mas muito saboroso, uma delícia", confessa o repórter.
Com tanta comida boa e gente agradável, o almoço foi longe e quente, como a vida na selva amazônica, que preserva mitos, tradições e essa preciosidade da culinária brasileira. A nossa, ou seria melhor dizer, as nossas pimentas. Em 2010, o sistema agrícola dos baniwas e de outros povos indígenas dessa região do rio Negro passou a ser considerado patrimônio cultural do Brasil.
Fonte: http://g1.globo.com
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