domingo, 22 de dezembro de 2013

Ao tomar a atitude de produzir uma horta caseira deixamos de lado cegos hábitos de consumo e pensamentos imediatistas

Por João Previattelli

Entrevista elaborada em construção coletiva por:
Igor Nogueira Jacob, Pedro Mello Bourroul e Tomás Maurício Almeida Carvalho (Membros do Nheengatu - Núcleo de Agroecologia Esalq/USP)

Vaidapé (VDP): Quais são os benefícios das hortas orgânicas em centros urbanos?

A produção de alimentos sempre esteve presente nos locais onde haviam concentrações humanas. Com o aumento da população urbana, se tornou necessário produzir alimentos também nas cidades. Pode parecer estranho já que há uma distância entre esses ambientes que nos impede de visualizar a possibilidade de uma horta urbana, mas esta prática tem crescido muito em países da Europa e América do Norte e já pode ser vista até mesmo em São Paulo.

A adaptação do ambiente urbano à produção de alimentos é positiva de diversas formas. Em primeiro lugar, está o caráter da qualidade ambiental gerada. É claro que ao produzir perto do seu consumidor, diminui a necessidade de transporte, o uso excessivo de petróleo e as emissões de gases de efeito estufa. Porém, há a criação de um outro ambiente que por vezes é mais difícil de ser notado. Um microambiente, com vantagens econômicas, sociais, biológicas e educativas.

Ao reduzir a distância física entre produtor e consumidor, é também gerada a proximidade social. Assim, é possível diminuir o número de atravessadores, aumentar o faturamento do produtor sem prejudicar o preço do consumo. Aumenta também o diálogo entre esses dois atores. Assim, é possível controlar a qualidade dos produtos, conhecer as demandas dos clientes e trocar informações sobre produção, alimentação ou mesmo receitas.

Do ponto de vista econômico, o dinheiro circula dentro da comunidade, fortalecendo os laços e melhorando o padrão de vida local. Assim, se contrói ainda um espaço de vínculos imateriais. Um importante centro aberto de educação, onde é possível aprender sobre os tempos da natureza e trocar conhecimentos entre diferentes gerações.

Por último, este processo gera pressão por aumento da qualidade dos produtos. O menor uso de químicos possibilita aumento da biodiversidade local e da disponibilidade de nutrientes para a saúde humana.

VDP: Quais são os benefícios para quem tem/constrói essas hortas em suas casas? É comprovado que esses alimentos são mais benéficos (mais nutrientes, menos calorias por exemplo) para a saúde de quem consome?

Ao tomar a atitude de produzir uma horta caseira deixamos de lado cegos hábitos de consumo e pensamentos imediatistas. O fato de iniciarmos uma horta exige paciência e cuidado, pois o tempo vegetal difere drasticamente do tempo de nossa sociedade. É na observação e no contato com pessoas interessadas que adquirimos o conhecimento da sazonalidade, de que não é possível a produção de alguns alimentos o ano inteiro, como o tomate.

É nessa perspectiva que nossa relação com o alimento e o corpo começa a se transformar. O cuidado é uma condição necessária para a produção, assim como, nosso corpo e nosso lar carecem de atenção e carinho. O reconhecimento do cuidado nos instiga a saber a origem e o modo como foram produzidos os alimentos comercializados nos varejões, nas feiras e supermercados.

O contato maior com os vegetais nos faz perceber melhor os ciclos naturais, como observar a condição climática do dia e da época do ano e como se relaciona com a fauna e flora, isso nos permite transgredir o significado da palavra “lixo”.

Lixo é uma invenção da sociedade de consumo, na natureza nada é lixo, lembrando o químico francês Lavoisier “nada se cria nada se perde, tudo se transforma”. Desta maneira, os restos de alimentos devem ser vistos como fonte de nutrientes. O processo controlado de acelerar a decomposição desses alimentos e utilizá-los, posteriormente, como adubo é chamado de compostagem.

A questão econômica assusta pessoas leigas no assunto. No entanto, a produção caseira de alimentos (hortaliças e medicinais, no caso) é mais barata do que consumir de outros fornecedores, em que muitas vezes tem dois ou mais atravessadores encarecendo o alimento.

Os alimentos orgânicos apresentam melhor índice de nutrientes, não necessariamente mais nutrientes, ou seja, é a qualidade o cerne da questão. Certamente é mais saudável ingerir alimentos que não receberam agrotóxicos em seu desenvolvimento. Estudos franceses com ratos, provam a grande chance desvios hormonais e até morte, assim como, diversos casos e relatos de pessoas que estiveram perto ou em contato direto com agrotóxicos atestam os malefícios destes produtos químicos.

VDP: Basicamente, por que seria recomendado para alguém fazer uma horta?

A elaboração de horta é uma terapia muito positiva para a mente e corpo humanos. Ao longo do último século se inventou o distanciamento entre alimento e remédio mas isso é algo muito estranho. O cuidado com seu corpo começa pelo cuidado com a alimentação e a produção do seu próprio alimento é o melhor jeito de ter certeza do que está ingerido.

Porém, a saúde humana depende também da tranquilidade de mente e, no ambiente urbano tão corrido, é muito importante ter uma terapia. A horta traz a possibilidade de conexão com a natureza, de compreender os tempos e de ver crescer a vida. O contato com a terra tem grande poder terapêutico, comprovado em estudos com diversos públicos.

Por último, a horta traz o resgate de um conhecimento ancestral, escondido nos ambientes urbanos mas que está presente dentro de cada um. Quando se está em contato com a horta é possível perceber logo o conhecimento instintivo que o ser humano guarda. Tente e irá ver como você tem muitas das respostas simplesmente ao observar a horta.

VDP: Como poderíamos garantir a saúde dessa cultura em um ambiente com diferentes fontes difusas de contaminação como São Paulo?

Esse é mesmo um grande problema. Qualquer metrópole apresenta índices altíssimos de poluição e estes são ainda mais elevados em São Paulo. Quanto à poluição de solos, o ideal é sempre fazer um teste antes de qualquer plantio. É possível também plantar em hortas suspensas, elevadas do chão, onde se controla a qualidade do substrato que é utilizado.

Quanto à qualidade da água, não existe grande problema se for utilizada aquela fornecida pelo serviço de abastecimento público. Apesar da grande quantidade de químicos aplicados em seu tratamento, essa água é inofensiva quanto a poluentes. O ideal é deixá-la parada por algum tempo para evaporar excessos e decantar qualquer resíduo mas esse sistema é praticamente inviável no cotidiano dos produtores. Para o uso da água de chuva é preciso mais cuidado já que acumula muitos resíduos químicos de partículas no ar, muitas vezes sendo bastante ácida, prejudicial às plantas. (Mesmo quando há incidência de chuvas ácidas, é possível evitar qualquer dano à plantação com um sistema de irrigação, que lava as folhas e retira os resíduos tóxicos).

As partículas tóxicas que chegam à plantação pela chuva então podem ser controladas mas, as inúmeras que poluem o ambiente atmosférico, não. Assim, o que resta é estimular a variedade e rotação de culturas produzidas. Com árvores junto com a produção de hortaliças é possível filtrar muito melhor o ar. É bem possível realizar uma cerca viva, com espécies distintas ao redor da horta. Mas novamente, esta é uma prática pouco utilizada por utilizar espaço precioso das, em geral, muito pequenas hortas urbanas.

São muitas as hortas dentro de São Paulo que conseguem se manter apesar das adversidades de poluentes e apresentam, há bastante tempo, alta qualidade de produtos.

VDP: Existem proteções acessíveis pra garantir a qualidade dos alimentos?

Bom, para a produção em pequena escala o ideal é encontrar soluções locais para qualquer problema. Por isso, elas costumam mesmo ser baratas e é difícil colocar uma receita já que os contextos podem ser muito diferentes, mas princípios básicos podem ser indicados.

Para a qualidade dos alimentos, a boa fertilidade do solo é essencial. Assim, a principal saída é a elaboração do próprio adubo orgânico por meio da compostagem, que nada mais é do que a decomposição de elementos orgânicos de forma controlada, visando fornecer a maior qualidade de nutrientes possível. Para se tornar efetiva, ela exige grande fornecimento de matéria orgânica, mas esta pode ser conseguida pela vizinhança, em restaurantes ou mesmo nas residências. É praticamente gratuito e envolve a comunidade. Assim, o problema passa a ser a semente de uma solução.

O plantio diversificado é também uma prática barata e positiva, que evita e pode combater o surgimento de pragas. Para o plantio, é importante respeitar os ciclos de cada espécie, seu momento de cultivo e as necessidades de água e adubação. Hortas são muito exigentes em nutrientes e, para manter a produção por bastante tempo, é necessário sempre acrescentar nutrientes ao sistema.

VDP: Ter uma horta orgânica é algo que exige tempo e dinheiro. Existe alguma pesquisa que trate do índice de sucesso/aceitação para as pessoas que tentam esse tipo de prática? 

A eficiência da produção orgânica é provada em diversos estudos. Atualmente, o termo orgânico é muito confundido como a salvação dos problemas atuais porém, a forma como se produz o orgânico reproduz a mesma lógica da monocultura e exaustão dos recursos naturais. Em geral, apenas é uma troca de insumos, o químico pelo orgânico, justamente como uma forma de agregar mais valor. Os produtos orgânicos têm sim maior valor de mercado e são totalmente viáveis, são a solução da produção em pequena escala, muitas vezes.

Porém, para a produção de hortas orgânicas em centros urbanos é necessário estudar caso a caso. Como a produção em geral é em pequena escala e a venda é direta, depende muito das escolhas do produtor e do mercado onde está inserido para ser bem sucedido. Por exemplo, em Piracicaba, onde vivemos, há cerca de 80 hortas urbanas e algumas iniciativas de compras coletivas para estimular a produção orgânica e a participação do consumidor. O sucesso dessas hortas, como o hortão da Casa Verde em São Paulo, é a prova viva de que elas são sim viáveis economicamente. 

VDP: Pensando em maiores dimensões, a agricultura orgânica consegue atingir níveis de produção suficientes para abastecer uma região/cidade?

Isso depende. Ela certamente é capaz de suprir as necessidades básicas de alimento de qualquer centro urbano. O problema é que vivemos em uma cultura desconectada dos ciclos naturais e as pessoas esperam se alimentar com a mesma dieta ao longo de todo o ano. Para fornecer vegetais fora de época é preciso intervir de forma muito grave em seu ciclo natural, o que fere o princípio ecológico da agricultura.

Portanto, o que impede que a agricultura orgânica supra a cidade é a necessidade de consumo. Ela tem também esse papel, de retomar à população os conceitos de dieta adaptada ao local onde estão e à época do ano. O consumidor tem papel fundamental para a realização desta transição pois a tecnologia produtiva existe, inclusive ela vem sendo desenvolvida há milênios.

VDP: Nesse sentido, como as pesquisas realizadas sobre o assunto levam em consideração experiências de culturas tradicionais? Existe um resgate das técnicas de cultivo?

Atualmente há sim um grande movimento mundial de resgate de conhecimentos tradicionais, sobretudo na agricultura. Como reflexo da globalização, foi criado o modelo de agricultura industrial e padronizado que vemos hoje. É extremamente produtivo, mas altamente degradante ao ambiente, dependente de insumos externos e não considera o aspecto humano ou biológico em toda a sua lógica de produção. Este modelo tem se mostrado insustentável e provocado erros irreversíveis em diversos locais do mundo. Como resposta a este modelo surgiram diversos movimentos ao longo do século passado, como a Agricultura Natural, a Biodinâmica, a Agricultura Ecológica ou a Permacultura.

Porém, a linha atual de discussão que busca desenvolver o sistema produtivo ecológico considerando aspectos sociais da presença humana é a Agroecologia. É uma linha muito ampla de estudo mas que tem por princípio o resgate de conhecimentos tradicionais para repensar a agricultura. No Brasil, a agricultura indígena foi pouco compreendida pelos portugueses desde o começo. Na carta de Caminha à corte, ele afirma que os índios têm muito o que comer sem praticar agricultura. O fato é que a agricultura indíegna era tão sofisticada que ainda não há explicação precisa de como eles elaboraram as ‘terras pretas’ da Amazônia.

Atualmente é entendido que cerca de 20% da amazônia foi, de fato, plantada pelas comunidades pré colombianas, o que ilustra o poder de benefício ambiental que os humanos podem ter. Quando escapavam da escravidão, os africanos se organizavam em quilombos, onde eram forçados a desenvolver técnicas de subsistência somente com produtos locais. Esta alta adaptação também ocorreu com populações caiçaras e ribeirinhas que, isoladas do contato com o desenvolvimento das cidades, mantiveram sua cultura.

Ao estudar como fizeram para manter a biodiversidade por tantos anos, é possível restabelecer os paradigmas propostos pela agricultura convencional. A agroecologia propõe este diálogo. É claro que o conhecimento científico é positivo para justificarmos os acontecimentos de forma simples, mas ele não pode servir como base para o extermínio de culturas e conhecimentos. Temos que trabalhar junto e estabelecer soluções locais para cada contexto.

No caso do Brasil, que era recoberto por florestas, não faz o menor sentido repetir o modelo de monocultura dos países de clima temperado. Isso se dá meramente por motivos econômicos, mas ao pensar o sistema produtivo, o modelo das populações tradicionais é muito mais lógico. Ao reproduzir as dinâmicas da natureza e aliar com o conhecimento científico, uma solução que tem ganhado muita força é a produção em Sistemas Agro Florestais, conhecidos como SAFs. Se tratam do plantio consorciado de espécies arbóreas junto com outras culturas, em geral vegetais mas, dependendo do caso, diferentes animais.

VDP: A permacultura é pouco conhecida no vocabulário do brasileiro. Qual é o impacto ambiental e social (produção e para a saúde das pessoas) que a o método pode trazer em grandes (áreas rurais) e pequenas (espaços urbanos) áreas?

A permacultura é uma união de técnicas que tradicionalmente já eram desenvolvidas em diversas partes do mundo mas que foram compiladas e tratadas com o devido estudo científico para justificá-las. Se trata da elaboração de sistemas que utilizem a energia da melhor forma possível. Assim, é uma técnica que une diversas técnicas e está sempre em construção.

O termo é derivado da junção das palavras ‘Permanente’ e ‘Cultura’, o que propõe a elaboração de uma cultura que exista em harmonia com tudo o mais que exista. Busca trabalhar com alguns elementos principais, como a construção, a geração de energia, o tratamento de resíduos e a agricultura. A Permacultura tem sua ética baseada em três princípios: o cuidado com a terra; cuidado com as pessoas; divisão de excedentes. Pode parecer simples, mas é algo muito profundo que contrapõe a forma como a sociedade se relaciona.

Desta forma, a técnica pode ser aplicada em qualquer contexto, desde uma pequena casa urbana a toda uma cidade. É um método que permite discussões técnicas de produção mas também de comercialização e educação, sempre focado na economia de energia. Assim, o foco passa a ser sempre o desenvolvimento local.

Em termos de produção, defende o não uso de químicos, o plantio estudado de espécies que se beneficiam se plantadas juntas, diferentes técnicas de compostagem e o respeito às necessidades de cada ser vivo. Ao estudar profundamente cada elemento e sua interação com todos os outros, desenvolve um modelo integrado de desenho, em que cada elemento exerça ao menos duas funções para o sistema.

Em termos sociais, a Permacultura apresenta novas possibilidades de organização comunitária. Para que ela ocorra com integridade, é necessário que toda uma comunidade siga seus princípios e, assim, produza de forma responsável, tome decisões de maneira justa, compre com consciência, eduque e seja educado em cada conversa. Portanto, o método é auxiliar na articulação comunitária.

Possíveis Links interessantes

Relatório mais recente da ONU sobre América Latina

Blog bastante completo de permacultura

Versão da Rede Globo

Sistemas Agroflorestais por Ernst Gotsch

Revista Agriculturas

Via Campesina

Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica, em Ubatuba

Rede Guandu – Rede de consumidores em Piracicaba


Data: 13.11.2013
Link:

Nenhum comentário:

Postar um comentário