segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Falta de melatonina pode ser fator de obesidade e diabetes, aponta pesquisa

O médico José Cipolla Neto fala sobre as pesquisas de seu grupo, que mostram como o hormônio controla a síntese de insulina e a resposta do organismo à atividade física (imagens: arquivo pessoal e Wikipedia)

Estudos conduzidos no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) mostram que a melatonina pode ser uma importante aliada no combate a distúrbios metabólicos, entre eles diabetes, hipertensão e obesidade.

O grupo de pesquisa coordenado pelo médico José Cipolla Neto acaba de concluir o terceiro Projeto Temático FAPESP sobre o papel da melatonina no metabolismo energético.

Os resultados indicam que, muito além de regular o sono, a melatonina controla a ingestão alimentar, o gasto de energia – bem como seu acúmulo no tecido adiposo –, a síntese e a ação da insulina nas células.

Além disso, o hormônio é um importante agente anti-hipertensivo, regula a resposta do organismo à atividade física aeróbica e participa da formação de neurônios durante o desenvolvimento fetal e pós-natal.

Parte dos resultados do último Temático foi publicada em 2014 no Journal of Neuroendocrinology e no Journal of Pineal Research, meses de maio e agosto.

Em entrevista concedida à Agência FAPESP, Cipolla Neto comentou os principais experimentos realizados, os fatores que podem prejudicar a síntese de melatonina e como a suplementação pode ajudar no tratamento de doenças.

Agência FAPESP – Que conclusões o senhor destaca nos estudos de seu grupo sobre o papel da melatonina na regulação do metabolismo energético? 

José Cipolla Neto – Nossos dados fundamentaram na literatura científica a importância da melatonina no controle da ingestão alimentar, do dispêndio energético pelo organismo e do armazenamento de energia nos estoques, como o tecido adiposo e o fígado. O resultado final desse balanço energético é o peso corpóreo. Podemos afirmar que a melatonina tem papel fundamental na regulação do peso corpóreo. Essa é a grande conclusão desses anos de trabalho financiados pela FAPESP.

Agência FAPESP – De que maneira essa regulação ocorre?

Cipolla Neto – De várias maneiras. Acima de tudo, a melatonina é um poderoso regulador da secreção e da ação da insulina. Como hormônio pró-insulínico e antidiabetogênico, desempenha muitas funções no organismo. Uma das mais importantes é regular o desvio da energia ingerida para os estoques energéticos, bem como a retirada de energia desses estoques para uso nas atividades do dia a dia. Pode ser vista, portanto, como um possível coadjuvante no tratamento do diabetes do tipo 2, decorrente da resistência insulínica. Mesmo no diabetes do tipo 1, no qual há pouca produção de insulina, a melatonina poderia melhorar a ação desse hormônio pancreático. Também é um poderoso agente anti-hipertensivo. Outro aspecto fundamental, já bem conhecido na literatura, é que a melatonina é um importante cronobiótico, ou seja, regulador da ritmicidade do organismo. Há um período do dia em que acordamos, gastamos energia interagindo com o ambiente e adquirimos energia pela alimentação. Em outro período, não interagimos com o ambiente, ficamos em repouso e consumimos a energia dos estoques. Esse balanço diário do metabolismo energético é essencialmente regulado pela melatonina. Quando, em experimentos, a melatonina é retirada do animal, observamos redução na ação da insulina e desregulação no ciclo circadiano. Isso também ocorre com qualquer pessoa que, por algum motivo, passa a ter uma produção menor de melatonina. Isso leva a um distúrbio metabólico cujas consequências são obesidade, resistência insulínica e hipertensão.

Agência FAPESP – Que tipo de experimentos foram feitos para chegar a essas conclusões?

Cipolla Neto – O experimento básico era realizar a pinealectomia (retirada cirúrgica da glândula pineal, responsável pela produção de melatonina) em ratos e observar os efeitos da falta do hormônio nos tecidos metabolicamente importantes, como adiposo, muscular, fígado, sistema nervoso central e pâncreas. Dois ou três meses depois, sem nenhuma outra mudança na rotina ou na dieta, o animal já apresentava resistência insulínica, hipertensão e princípio de obesidade. Com a reposição de melatonina, o quadro era completamente revertido. Nos grupos em que a reposição começou no mesmo dia em que a glândula foi retirada, os animais nem sequer desenvolveram distúrbios metabólicos. Em paralelo, fizemos estudos com animais idosos, condição em que sabidamente há produção menor de melatonina. A reposição eliminava as alterações metabólicas tipicamente encontradas no idoso. Também demonstramos que a melatonina é essencial para que o organismo responda aos exercícios aeróbicos. Nos animais em que a glândula pineal havia sido retirada, as adaptações metabólicas benéficas que o exercício promove desaparecem. Em outro trabalho mostramos, de forma definitiva, que em ratos com diabetes tipo 1 experimental, assim como em pacientes com diabetes do tipo 1 que produzem pouca ou nenhuma insulina, há produção menor de melatonina. Esses indivíduos sofrem, portanto, todas as consequências metabólicas relacionadas com a deficiência desse hormônio. Mostramos ainda que o agente causador da queda da produção, nesse caso, é a hiperglicemia, que altera o funcionamento de algumas enzimas na glândula pineal que são responsáveis pela síntese de melatonina. Diabéticos do tipo 1 são, portanto, fortes candidatos à reposição.

Agência FAPESP – Além da hiperglicemia, o que mais pode prejudicar a produção de melatonina?

Cipolla Neto – A principal causa de queda na produção noturna de melatonina é a fotoestimulação. A maioria das pessoas começa a produzir esse hormônio por volta de 20 horas. Quando o indivíduo se expõe à luz durante a noite, seja vendo TV ou mexendo no smartphone ou no computador, a síntese de melatonina que deveria estar ocorrendo nesse período é bloqueada. Esse pode ser um dos fatores por trás da epidemia de obesidade da sociedade contemporânea. Também há fatores relacionados com intervenções médicas. Várias drogas usadas na clínica alteram a produção de melatonina, como os betabloqueadores, os bloqueadores de canal de cálcio e os inibidores da enzima conversora de angiotensina (as três drogas são usadas contra hipertensão). Indiscutivelmente, os mais poderosos são a poluição luminosa noturna e o trabalho no turno da noite.

Agência FAPESP – O horário em que tem início a síntese de melatonina varia entre pessoas com ritmos matutinos e vespertinos?

Cipolla Neto – Em cerca de 75% da população o início se dá por volta de 20h. Nos indivíduos vespertinos, a produção de melatonina começa mais tarde. Nos matutinos, mais cedo. Existe uma variação de acordo com o cronotipo que também define o horário em que os níveis de melatonina no sangue ficam baixos o suficiente para o indivíduo acordar.

Agência FAPESP – Mas hoje muitas pessoas são acordadas pelo despertador.

Cipolla Neto – Esse é um fator que também pode ser prejudicial. Os indivíduos vespertinos, por terem um perfil de produção de melatonina estendido pela manhã, ficam mais privados desse hormônio quando precisam acordar muito cedo e expor-se à luz do dia.

Agência FAPESP – Como tornar a rotina menos danosa para quem não tem a possibilidade de dormir cedo ou acordar tarde?

Cipolla Neto – Uma das coisas que têm sido sugeridas é eliminar o comprimento de onda da luz azul, de 480 nanômetros, que controla a ritmicidade circadiana e a produção de melatonina. As empresas de iluminação já estão trabalhando nesse tema. Estudos mostraram que, se o ambiente noturno estiver com baixas intensidade de luz azul, o indivíduo pode permanecer trabalhando sem ter a ritmicidade circadiana e a produção de melatonina afetadas significativamente. Mas esse é justamente o comprimento de onda emitido pelo LED de luz azul presente em computadores, televisores e smartphones. Há empresas que vendem películas para colocar na tela e filtrar a luz azul. É uma forma de lidar com o problema.

Agência FAPESP – No caso das crianças, qual seria a recomendação?

Cipolla Neto – O perfil da produção de melatonina e a ritmicidade circadiana de crianças é completamente diferente dos adultos, mas os efeitos da iluminação noturna são os mesmos e ainda mais graves. Crianças com menos melatonina e com distúrbios de sono são fortes candidatos a distúrbios metabólicos na vida adulta. Já tem sido observado em adolescentes o crescimento brutal da resistência insulínica. Até a puberdade, o ritmo circadiano está sendo estruturado e qualquer fator que prejudique a síntese de melatonina vai afetar uma série de funções no organismo, inclusive o desenvolvimento puberal.

Agência FAPESP – Em quais casos seria indicada a suplementação de melatonina?

Cipolla Neto – Já há respaldo internacional de várias sociedades médicas para o tratamento de alguns tipos de insônia e também do jet lag (descompensação do ritmo circadiano causada por viagens). Também há evidências poderosas de que ela pode ser um agente terapêutico importante contra o câncer, hipertensão e um regulador do metabolismo energético. Mas para essas três condições ainda está sendo estudada a forma mais adequada de tratamento.

Agência FAPESP – O senhor acha que em breve os médicos, ao tratarem obesidade, hipertensão e diabetes, vão prescrever também a melatonina ?

Cipolla Neto – Não tenho a menor dúvida. O tratamento com betabloqueador, por exemplo, retira do paciente um componente fisiológico importante para o combate à hipertensão. Nada mais justo que nesses indivíduos se faça reposição terapêutica de melatonina. É algo que os cardiologistas estão discutindo atualmente.

Agência FAPESP – O consumo contínuo de suplemento pode causar diminuição da produção endógena? 

Cipolla Neto – Não. A melatonina exógena que o indivíduo toma é um poderoso sincronizador dos ritmos circadianos e, portanto, ajuda a regularizar a produção endógena. Mas é crucial observar que, em qualquer circunstância, o consumo de melatonina deve ocorrer somente à noite, cerca de uma hora ou 30 minutos antes de dormir.

Agência FAPESP – Se tomado corretamente o suplemento não teria efeitos colaterais? 

Cipolla Neto – Segundo a literatura, a melatonina é um agente sem qualquer efeito tóxico. O único possível problema é a alteração da ritmicidade circadiana caso o indivíduo tome no horário ou na dose inadequada. Em crianças, os cuidados precisam ser maiores. Dependendo do uso, da quantidade, pode provocar um retardo pubertário. Mas a substância é prescrita para tratar várias doenças infantis com distúrbio de sono associado, como síndrome das pernas inquietas, síndrome de Smith-Magenis e até autismo. Ao consolidar o sono, a melatonina faz com que a vigília seja mais eficiente e atua como um agente neuroprotetor.

Agência FAPESP – A dose é calculada de acordo com o peso? 

Cipolla Neto – Não. A melatonina é um hormônio caprichoso. Cada indivíduo tem uma produção diferente. O ideal seria fazer uma avaliação prévia dos níveis produzidos, mas nem sempre isso é possível. O que se aconselha é fazer uma espécie de trial clínico. Administrar na menor dose possível e acompanhar a evolução do quadro, aumentando, se necessário. Deve-se parar quando chegar no ponto em que o indivíduo se sente bem e os sinais e sintomas tiverem sido eliminados.

Agência FAPESP – Se a melatonina não oferece riscos, por que foi proibida no Brasil?

Cipolla Neto – A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] proibiu há cerca de 20 anos porque estava sendo feito uso inadequado. Na época, havia propagandas na televisão com pessoas famosas dizendo “já tomei minha melatonina hoje”. Isso só traz danos. Melatonina é um hormônio e tem de haver normas de administração muito bem controladas. A literatura mundial hoje conta com evidências suficientes para liberar a venda no Brasil, mas para uso sob prescrição médica.

Agência FAPESP – O senhor pretende continuar estudando a ação da melatonina?

Cipolla Neto – Submetemos um novo projeto para avaliação no qual pretendemos estudar as consequências de tudo que descobrimos até o momento. Do ponto de vista experimental, vamos investigar como a melatonina regula o dispêndio energético promovido pelo tecido adiposo marrom – algo que ficou muito evidente nos trabalhos anteriores. Observamos que o animal que não produz melatonina gasta menos energia. Também demonstramos que a melatonina durante a gestação regula a programação metabólica do feto. Filhotes de mães privadas de melatonina durante a gestação desenvolvem um quadro metabólico com resistência insulínica e deficiência na secreção de insulina. Queremos descobrir como exatamente a melatonina interfere nessa programação. Existe uma quantidade enorme de trabalhos mostrando que a melatonina é importante na neurogênese do sistema nervoso central. Pretendemos avaliar como estão os circuitos hipotalâmicos que regulam fome, saciedade, dispêndio energético e em que fase do desenvolvimento fetal e pós-natal a melatonina é mais importante para a neurogênese. A segunda grande parte do projeto abrange os estudos clínicos. Pretendemos iniciar um grande estudo multicêntrico – envolvendo pesquisadores da USP, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Hospital Albert Einstein – sobre o papel da melatonina na regulação do metabolismo energético humano. Em uma terceira parte do trabalho, pretendemos estudar a repercussão social de se mexer com a produção de melatonina. Para isso, vamos estudar o perfil metabólico de filhos de mulheres que trabalharam à noite durante a gestação. Nesse novo Projeto Temático proposto temos como supervisor externo o professor Russel J. Reiter, da Universidade do Texas (Estados Unidos), que acabou de ser incluído na Thomson Reuters list of The World’s Most Influential Scientific Minds.

Por Karina Toledo, da Agência FAPESP

Publicado no Portal EcoDebate, 23/01/2015

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