Fonte: Jornal do Brasil - Pamela Mascarenhas - Terça-feira, 12 de Maio de 2015
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Cenário econômico favorece incentivo a produtos como a mandioca e o inhame
O Brasil avançou muito nos últimos anos em matéria de alimentação. Saiu do mapa da fome, mas ganhou outros desafios, como lidar com o crescente problema da obesidade, da degradação dos solos e a necessidade de maior valorização de seus produtos, como a mandioca, alimento de grande valor nutricional ainda pouco presente no cardápio dos brasileiros, ao contrário do movimento seguido pelos ultraprocessados, como os biscoitos, por exemplo. O cenário econômico atual, todavia, pode ser uma motivação para mudanças, destacou o representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) no Brasil, Alan Bojanic, em entrevista por telefone ao JB.
A alta do dólar e a inflação já pressionada têm potencial para provocar mudanças nas escolhas alimentares dos brasileiros e também nos insumos usados por fabricantes do setor. O trigo, que o país ainda precisa importar e é usado em grande parte dos alimentos, é um exemplo. O Brasil importa bastante farinha de trigo dos Estados Unidos para fabricar pães e biscoitos. Especialistas da área já vinham alertando para a necessidade de alterar hábitos para lidar com a ascensão dos preços e ainda garantir refeições mais saudáveis.
O biscoito, que tem os brasileiros entre seus maiores consumidores, poderia ser trocado pelo consumidor por algo com valor nutricional, como a tapioca. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados, no ano passado, o país ficou em terceiro lugar na venda de biscoitos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
"Mesmo que não seja pelo preço do dólar, eu acho fundamental a valorização dos produtos tradicionais, com valor nutricional. Então, estamos diante de uma boa oportunidade para induzir uma maior produção desses produtos. Você tem uma boa oportunidade para valorização dos produtos tradicionais, da mandioca até produtos menos conhecidos, como o inhame", destaca Bojanic.
Confira a entrevista na íntegra:
JB - O Brasil conseguiu superar a questão da fome. Caiu a taxa de mortalidade infantil, por exemplo, mas o país ganhou outros problemas, seguindo o mesmo caminho de grandes países, como a obesidade. Como o Brasil está inserido no sistema de alimentação global hoje e como isso se reflete na alimentação dos brasileiros?
Alan Bojanic - A primeira questão é que o Brasil de um importador de alimentos passou a ser um grande exportador de alimentos. Então, ele tem uma função chave, é o primeiro ou segundo exportador de muitos produtos que são básicos, não só a soja, mas também açúcar, grãos, frango, carne. O país tem uma inserção no sistema alimentar global muito importante, é um dos principais fornecedores. Temos boas terras, temos conhecimento, resultados bons de pesquisa agropecuária. Temos uma grande oportunidade para ainda crescermos nesse âmbito como país fornecedor de alimentos.
Do outro lado, o país ainda importa um pouquinho de trigo, importa alguns derivados lácteos, mas é um exportador de alimentos. E, além disso, muitos dos alimentos que são consumidos no Brasil são alimentos de transnacionais, como os biscoitos, muitos desses alimentos que na verdade não são o melhor para saúde, em termos de qualidade nutricional, porque têm muito sal ou porque simplesmente o valor nutricional é baixo. Então, essa é uma questão que temos que voltar a pensar.
Além da crise hídrica, a alta valorização do dólar frente ao real e a inflação já pressionada impõem desafios às famílias para lidar com a alimentação. Qual poderia ser a saída?
Isso dá uma boa oportunidade para valorização dos produtos tradicionais, desde a mandioca até outros produtos menos conhecidos, como inhame. Temos possibilidade de fazer farinha de muitas outras coisas [que não apenas do trigo]. Aqui no Cerrado, no Distrito Federal, temos já plantações interessantes de quinoa, que é a melhor proteína do mundo, a melhor proteína vegetal em termos de qualidade das contribuições para a nutrição, então podemos estender fronteiras como a cultura da quinoa. Isso é um exemplo, tem muitas outras possibilidades.
Com certeza, [o padrão atual de alimentação] está ficando muito caro. Com o valor do dólar, está ficando mais caro. Quando cheguei, há dois anos, o dólar estava a R$ 1,70, R$ 1,80, agora chegou a R$ 3,20. Essa é uma grande diferença em termos do valor dos produtos importados, no caso, dos grãos importados como o trigo. Então, há essa possibilidade de valorizar melhor os produtos tradicionais que são ativos do Brasil. Eu acho uma excelente oportunidade.
Essa mudança de uma dependência do trigo, por exemplo, já poderia estar no horizonte do país?
Com certeza, uma substituição paulatina, [mas] não é possível substituir tudo. Vamos ser realistas. Porque o trigo, somos muito acostumados a comer pão de trigo, muitos pratos têm farinha de trigo, como os espaguetes, que todos gostamos. Também podemos fazer espaguetes de outros produtos, mas o sabor é diferente. Nós temos o costume de comer muitos pratos que têm a ver com o trigo, então não podemos substituir tudo, mas podemos enxergar uma meta de 20% daqui a três anos, que seja realista e que esteja de acordo com as possibilidades de produção de outros produtos, porque também não é muito fácil, estamos falando de grandes quantidades de trigo que são importadas.
Isso vai dar um incentivo também para a produção nacional do mesmo trigo, com o preço mais alto. Mas, para mim, o mais importante é [o incentivo] para produtos nativos do Brasil que podem se expandir e beneficiar a agricultura familiar. Eu acho que é uma boa forma também de relacionar isso com uma agricultura familiar, porque muitas dessas culturas tradicionais são da agricultura familiar.
E como esse caminho poderia ser estimulado, por meio de políticas públicas, por exemplo?
Políticas públicas, nesse plano, com programas de comunicação, de apresentar boas receitas, de apresentar novos pratos, para que as pessoas conheçam o que podem fazer com esses produtos nativos, quais são, onde estão, criar um mercado. O mercado pode ser desenvolvido com programas de comunicação. Então é importante ter essa lista de produtos, quais que poderiam ser, uma lista que ainda tem que ser trabalhada.
Mesmo que não seja pelo preço do dólar, eu acho fundamental a valorização dos produtos tradicionais de valor nutricional, com valor de poder ser incorporado na dieta, ao sabor. Então, estamos diante de uma boa oportunidade para induzir uma maior produção desses produtos. Você tem uma boa oportunidade para valorização dos produtos tradicionais. Vamos dizer, desde a mandioca até produtos menos conhecidos como o inhame. [Podemos fazer] farinha de muitas outras coisas.
Bojanic, no começo de fevereiro, a Nestlé demonstrou preocupação com a mudança nos hábitos de alimentação de norte-americanos, que estariam preferindo alimentos mais saudáveis, e disse ainda que aumentaria, por isso, o portfólio de alimentos mais frescos e bio. Como o senhor enxerga essa dinâmica, o que ela representa?
Mesmo aqui no Brasil, temos uma mudança também. Estamos reduzindo a quantidade do que chamamos de comida de baixo valor por pratos de valor nutricional. O problema da obesidade é um problema crescente, problema mesmo das crianças, então, a educação nas escolas [é fundamental], [falar] sobre como podemos ter melhores dietas, como podemos evitar a comida ‘rápida’, que muitas vezes têm ingredientes trans, outros tipos de gorduras que não as boas.
Então, é fundamental estimular educação, programas de fomento à agricultura familiar para esses produtos, de compras da agricultura familiar, compras públicas da agricultura familiar, dar incentivo em termos de preço. Existe um leque instrumentos de política que podem estimular esses produtos e substituir ainda a comida rápida, a comida que dá problemas.
Para o senhor, qual o grande desafio da alimentação no Brasil, hoje?
O Brasil saiu do mapa da fome. O relatório da FAO do ano passado justamente mostrou isso. Quero dizer que menos de 5% da população está em situação de insegurança alimentar. Mas ainda temos muitos vulneráveis que estão nessa situação que nós chamados de undernutrition, o consumo de calorias abaixo do esperado. A maior prioridade é justamente trabalhar com esses grupos para não ter ninguém nessa situação.
O segundo é o tema da obesidade. Tema muito sério que também está na pauta e que deve estar na pauta.
Tem a questão da água, a água potável, água de qualidade, porque não adiante você ter uma boa dieta se você não está consumindo uma água de qualidade, [porque] vai trazer doenças, vai trazer problemas, transmitidas pelos alimentos, então a questão da água de qualidade para todos também deve estar na pauta.
Temos ainda problemas mais específicos, a logística, o transporte para produtos agrícolas, e outras questões. E também desenvolver o potencial agrícola para que o Brasil ainda continue a fornecer alimentos para o mundo do futuro, trabalhar nessa direção.
Este é o ano internacional do solo, que tem muito a ver com alimentos. Temos que cuidar dos solos, manejar os solos, proteger os solos, porque dos solos vêm os alimentos. Temos muita terra degradada aqui no Brasil, no mundo inteiro, se fala que um terço das terras do mundo estão degradadas, então é um bom ano para refletir sobre como podemos ter melhores práticas e aplicar melhores práticas agrícolas para cuidar dos solos e manter a produtividade dos solos.
A questão do agrotóxico é um empecilho para este movimento?
É um dos fatores que afetam a qualidade dos solos, em algumas regiões, a qualidade da água, e tem que estar também na pauta com uma visão integral, de que os solos precisam ser conservados com boas práticas, como a prática do plantio direto, e também com a redução, uma substituição de agrotóxicos muito tóxicos por agrotóxicos menos tóxicos. Muitas vezes não é possível tirar, mas pelo menos fazendo uma substituição paulatina, dos produtos mais perigosos.
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