Por Karina Toledo, da Agência FAPESP
Artigo publicado no Journal of Psychiatric Research mostrou que portadores de transtorno bipolar com níveis baixos de adiponectina apresentam quadro psiquiátrico e metabólico mais grave (Saudades, José Ferraz de Almeida Júnior (1899)/Wikimedia Commons)
Estudos recentes têm mostrado que doenças psiquiátricas – entre elas o transtorno bipolar e a depressão – estão frequentemente associadas a distúrbios metabólicos como diabetes do tipo 2, dislipidemia e obesidade. As evidências científicas sugerem ainda que tanto a condição psiquiátrica pode influenciar na evolução do quadro metabólico como o contrário também comumente acontece.
Essa correlação foi observada por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em um trabalho recentemente publicado no Journal of Psychiatric Research.
Os dados do estudo feito com 59 portadores de transtorno bipolar apontaram que os pacientes com níveis considerados baixos de adiponectina – hormônio produzido pelo tecido adiposo que ajuda a regular o metabolismo de glicose e de lipídeos – apresentavam um quadro psiquiátrico mais grave do que aqueles com níveis mais altos dessa proteína.
“No histórico desses pacientes com baixa adiponectina, observamos maior frequência de episódios de humor alterado, maior número de internações psiquiátricas, persistência de sintomas depressivos e pior funcionamento psicossocial. Eles também tinham mais distúrbios metabólicos, como intolerância à glicose, diabetes e dislipidemias”, contou a professora da Escola Paulista de Medicina Elisa Brietzke, coordenadora do projeto apoiado pela FAPESP.
Se os achados forem confirmados por estudos futuros, avaliou Brietzke, a dosagem de adiponectina no sangue de pacientes com transtorno bipolar poderá funcionar como um biomarcador auxiliar no prognóstico e no tratamento – sendo que níveis baixos desse hormônio seriam um indicativo de uma doença mais grave tanto do ponto de vista psiquiátrico quanto metabólico.
Além disso, segundo a pesquisadora, os resultados abrem caminho para novos estudos voltados a testar intervenções que modulem os níveis de adiponectina nos pacientes bipolares.
A pesquisa foi realizada na Unifesp durante o doutorado de Rodrigo Mansur, atualmente fellow da Universidade de Toronto, no Canadá. O objetivo inicial foi comparar em voluntários sadios e em portadores de transtorno bipolar os níveis sanguíneos de adiponectina e de leptina – outro hormônio secretado pelo tecido adiposo com importante papel na regulação metabólica e no controle do apetite.
“Esses hormônios agem tanto de forma local como sistêmica. Receptores dessas moléculas são expressos em múltiplas regiões cerebrais e a ativação deles produz efeitos fisiológicos relevantes. Ambos parecem fazer parte do controle da resposta inflamatória. Alterações na produção desses hormônios têm sido descritas em doenças metabólicas, como obesidade e diabetes tipo 2. Nossa linha de pesquisa foca na interface entre transtornos mentais e doenças metabólicas, portanto, temos interesse particular em mediadores, mecanismos e sistemas que conectam o cérebro e a periferia”, explicou Mansur.
De maneira geral, não foram observadas na pesquisa diferenças significativas nos níveis desses dois hormônios quando comparados os pacientes bipolares e os voluntários sadios – exceto quando se observou apenas as mulheres. As portadoras de transtorno bipolar tinham níveis mais baixos de adiponectina que as mulheres sem a doença.
Na avaliação de Brietzke, porém, o resultado mais interessante foi visto quando comparados apenas os níveis hormonais dos portadores da doença. “Foi clara a divisão em dois subgrupos: um com adiponectina mais baixa e doença mais grave, e outro com o nível hormonal mais elevado e quadro mais leve”, comentou a pesquisadora.
Mansur acrescentou que as diferenças foram observadas independentemente de fatores de confusão, como idade, tabagismo e uso de medicações psicotrópicas.
“A principal interpretação é a de que existe uma associação direta entre multimorbidade metabólica e curso mais grave e complicado do transtorno bipolar. Dessa maneira, a adiponectina pode ser entendida como um indicador de disfunção metabólica. Mas também é possível que, dado a importância da sinalização cerebral de adiponectina, esta molécula também tenha um efeito direto na estrutura e funcionamento cerebral e, consequentemente, na clínica do transtorno bipolar”, comentou.
Em relação à leptina não foram observadas diferenças significativas em nenhum dos grupos.
Centro versus periferia
Os estudos realizados pelo grupo da Unifesp se baseiam na hipótese de que o metabolismo periférico e o central são integrados e, portanto, a presença de uma comorbidade metabólica – como diabetes do tipo 2 – no transtorno bipolar poderia ser resultado – e/ou resultar – em funcionamento cerebral alterado.
“Evidências de múltiplas linhas de pesquisa indicam que doenças metabólicas, mesmo quando não acompanhadas de transtornos psiquiátricos, envolvem anormalidades cerebrais, como disfunção dos circuitos que regulam o processamento emocional e cognitivo. As doenças mentais, incluindo a depressão e a esquizofrenia, são diferencialmente afetadas por condições metabólicas, mesmo após controle para fatores de risco tradicionais, como sedentarismo, dieta, tabagismo e uso de medicações”, contou Mansur.
De acordo com os pesquisadores, portanto, o chamado modelo monoaminérgico – focado apenas em neurotransmissores e em terapias com antidepressivos e antipsicóticos – tem se mostrado altamente insuficiente.
“Essas terapias são capazes de ajudar uma parcela significativa da população acometida por doenças mentais, mas falham com frequência. Estudos mostram, por exemplo, taxas de resposta insatisfatória no transtorno bipolar de até 50%. Existe uma necessidade urgente de desenvolver modelos teóricos mais abrangentes para compreender a fisiopatologia dos transtornos psiquiátricos e substanciar o desenvolvimento de terapias genuinamente inovadoras e transformadoras”, afirmou Mansur.
Atualmente, no Canadá, o pesquisador participa de um estudo voltado a testar a droga liraglutida – originalmente desenvolvida contra diabetes tipo 2 – no tratamento de déficits cognitivos em indivíduos com transtornos de humor.
A liraglutida é um agonista do receptor do GLP-1, hormônio indutor de saciedade produzido no intestino delgado, cuja secreção é estimulada pela ingestão de alimentos. O GLP-1 também facilita o uso de glicose em múltiplos tecidos, inclusive no sistema nervoso.
De acordo com Mansur, estudos pré-clínicos mostraram que a liraglutida também tem efeitos neuroprotetores e neuroproliferativos, protegendo neurônios de insultos e estimulando o crescimento de dendritos e conexões sinápticas. Esses dados sugerem um possível efeito pró-cognitivo.
“Nossos dados preliminares têm mostrado uma melhora cognitiva global, envolvendo testes que medem função executiva, memória e velocidade de processamento. Nós também observamos um efeito no cérebro, um aumento em um marcador de integridade neuronal, que se correlaciona bem com essa melhora cognitiva. Um aspecto interessante é que a melhora tem sido mais intensa nos pacientes com resistência à insulina, sugerindo que essa população com problemas metabólicos seja mais responsiva a uma intervenção cujo alvo é uma via metabólica”, disse Mansur.
Mansur ressalta, no entanto, que se trata ainda de um estudo-piloto, com um pequeno número de pacientes e sem um grupo placebo. “Apesar de promissores, os resultados são preliminares e ainda estão em desenvolvimento”, acrescentou.
in EcoDebate, 03/02/2016
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