Vandana Shiva, física, filósofa, ativista ecofeminista, nasceu no vale de Doon, no Himalaia. Seus pais faziam parte do movimento independentista da Índia. Apesar das dificuldades por ser mulher, estudou física e depois filosofia. Nos anos 1970, somou-se ao movimento Chipko, constituído por mulheres que se abraçaram às árvores de uma mata para evitar que fossem cortadas. Em fins dos anos 1980, criou o Movimento Navdanya, para defender as sementes nativas frente aos transgênicos. A partir daí, criou comunidades de sementes para cuidar da vida e evitar sua depredação. Formou a Universidade da Terra, que promove a ciência digna, a soberania alimentar e alerta contra o impacto das políticas das corporações na mudança climática. Recebeu o Prêmio Nobel Alternativo em 1993.
Punto Final teve a oportunidade de entrevistá-la quando visitou a Argentina, convidada para o Festival Internacional de Cinema Ambiental (FINCA). A conversa começou a partir da recordação de nossa irmã Berta Cáceres, líder do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), assassinada por cuidar do Rio Gualcarque, junto à comunidade lenca de Rio Branco, em Honduras.
“Quero render uma homenagem a minha irmã Berta, uma lutadora pela terra, que fez um sacrifício dando sua vida. Mas, sua vida não foi dada voluntariamente, foi arrancada mediante a violência. A terra, toda a comunidade ecológica, e Berta, merecem justiça. Deve haver uma comissão de investigação que seja independente, não só restrita aos crimes cometidos contra os ativistas ambientalistas em Honduras, mas por toda a violência perpetrada pelas corporações, tomando os governos e os convertendo em maquinarias de guerra contra seus próprios cidadãos. A vida de Berta é um chamado a despertar. Devemos despertar e exigir justiça para o planeta, e justiça para Berta”, disse Vandana Shiva.
A entrevista é de Claudia Korol, publicada pela revista Punto Final, edição n. 857, 05-08-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O assassinato de Berta foi um crime contra uma guardiã da vida, e faz parte da criminalização das mulheres defensoras da vida. Como analisa esta política?
O sistema político e econômico, que tem mais de duzentos anos de história, o capitalismo patriarcal, se baseia na guerra contra a Terra, guerra contra as mulheres, guerra contra a vida. Por isso, quando mulheres como Berta Cáceres se levantam em defesa da vida, em defesa da terra, em defesa dos direitos das pessoas, o sistema as criminaliza, porque é um sistema criminoso. Criminaliza quem luta em defesa da vida. Vemos como aumenta a violência contra as mulheres, porque o capitalismo patriarcal é a convergência da cobiça, da acumulação e do extrativismo, como também é o medo a tudo o que está vivo e livre. E Bertaestava em pé, pela liberdade e a vida. Por isso, gerou medo naqueles que destroem a Terra e destroem nossas sociedades a qualquer custo.
Sementes da vida
Aumentou a consciência mundial sobre o cuidado com as sementes, a terra, a vida e, por isso, cresce a luta dos povos, das mulheres, das comunidades, como também cresce a militarização em resposta a essas lutas. Como pensa que deve ser a resposta das comunidades, das mulheres, à estratégia de militarização?
Acredito que a primeira resposta frente à militarização deve ser entender suas raízes. O sistema se baseia na mentalidade de guerra patriarcal capitalista. É uma ordem de guerra contra a Terra, contra o corpo das mulheres, contra as economias locais e contra a democracia. Temos que entender as conexões destas formas de violência.
Tivemos Estados nacionais, alguns se converteram em ditaduras, outros em democracias, mas que não eram extensões do mundo global das corporações. A globalização converteu os governos em extensões de sua atividade corporativa e, por isso, se tornaram Estados corporativos. É muito evidente que quando esses Estados corporativos tomam a vida das pessoas, produzindo câncer e malformações congênitas em meninos e meninas, minando nossas terras ancestrais, destruindo nossos territórios, convertendo as pessoas em refugiados, as pessoas vão se levantar, as pessoas vão protestar, as pessoas vão fazer bloqueios.
Hoje, estamos olhando como testemunhas o último passo das corporações, convertendo os Estados nacionais, primeiro em Estados corporativos e, agora, em Estados militarizados corporativos, quando a violência militarizada é o único caminho que lhes resta para enfrentar as pessoas que estão procurando defender a terra e suas vidas de uma maneira não violenta. Primeiro, temos que expor esta continuidade de poder e violência.
Como respondemos a isso? Respondemos através da paz e da não violência do modo mais profundo. A primeira parte é, realmente, em nossas mentes e em nossas consciências, e em nossas vidas, viver em paz com a Terra. Essa é nossa maior força. A segunda é resistir a regra do medo. O modo mais efetivo de resistir o medo é não ter medo. E continuar tendo coragem, como teve Berta. Neste cultivo do não medo, cultivar nossa força comum, nossas solidariedades, para estarmos juntos. E, finalmente, reconhecer que o sistema econômico se tornou um sistema de guerra. Ao invés de cuidar e promover a vida, está eliminando a vida, e então está extinguindo a vida daqueles que estão em pé pela vida. Temos que construir o mais impressionante movimento planetário pela paz de nossos tempos, onde afluam o movimento ecologista, o movimento contra a militarização, o movimento feminista, o movimento pela justiça. Todos precisam se tornar um”.
Manipulação genética
Além do sistema de morte que o capitalismo patriarcal significa, a mercantilização está gerando vida sintética. O que pensa destas formas de manipulação da vida, aplicando conhecimentos científicos?
Eu chamaria a denominada manipulação da vida por meio da genética de manipulação da vida por meio da guerra. Qualquer um que faça uma biologia realmente independente, dirá que pegar um gene de um organismo e implantá-lo dentro de outro possui sérias consequências. Conhecer essas consequências é parte do fazer ciência. Estas empresas, que não são científicas, possuem três níveis. O primeiro é que não compreendem a vida. Porque a vida é uma complexidade auto-organizada e está sendo tratada como um jogo de tijolinhos. O segundo é que estão tramando suposições que não refletem como realmente funciona a vida. Estão baseados em um reducionismo genético que funciona como um determinismo genético, que é assumido como se existisse uma molécula mestra que dá ordens para todas as demais, e que tudo o que é necessário fazer é mudar essa molécula de lugar. Mas, não existe uma molécula mestra em um sistema vivo. O terceiro ponto é que não assumem a responsabilidade pelas consequências. Os primeiros cientistas que criaram as técnicas de recombinação de DNA colocaram fim nisto em 1972, assumindo em uma declaração que não podiam saber as consequências, e que os cientistas têm a responsabilidade de entender as consequências, antes de realizar ações. Qualquer entidade individual ou corporativa que mude a fabricação da vida, sem entender as consequências e sem tomar as responsabilidades disso, está atuando de maneira não científica. O que chamamos de ciência é um projeto patriarcal para um curto momento da história. É uma ciência reducionista, baseada na dominação da natureza. É o conhecimento gerado para a exploração.
Soberania alimentar
Nós, feministas comunitárias – indígenas, campesinas, populares – neste continente, pensamos que a defesa dos territórios faz parte de nosso projeto de vida, e que o corpo é nosso primeiro território a ser cuidado. Nesta perspectiva, propostas como a soberania alimentar se integram na lógica de luta contra o capitalismo patriarcal.
Concordo. Todas as estruturas artificiais de conhecimento se basearam no que chamei de ‘apartheid ecológico’, separando-nos da Terra em nossas mentes, já que não podemos realmente nos separar da Terra em nossas vidas, porque estaríamos mortos. Desta ideia de separação vem a ideia de que é possível substituir os processos de vida com materiais químicos e tóxicos. Então, nosso corpo não está vivo, não é da Terra, é só uma máquina, da qual você pode remover as partes e acrescentar moléculas sem que isso provoque algo em nossa saúde. Você pode produzir soja transgênica e imaginar que não provoca nada à vida, ainda que mate a todas as bactérias em nosso interior. Pode pretender substituir o açúcar natural por xarope de alta frutose, mas seu fígado vai se rebelar.
A soberania alimentar se baseia em superar o apartheid ecológico, sabendo que somos parte da Terra. Somos o solo, somos o ar, somos a semente, somos a água. E a comida que cultivamos na terra se converte em nosso corpo, nosso sangue, nossas células. A comida é a força da vida, é a rede da vida, e é a continuidade da vida, da Terra e de nós mesmos. É por isso que o território e o corpo correspondem quando produzimos comida da maneira correta e comemos a comida adequada. Mas, quando não correspondemos e deixamos de pensar conscientemente na comida, nos tornamos parte deste sistema de guerra. Ainda que sejamos um pequeno elo da cadeia, estamos ajudando a fazer com que permaneça. É necessário ser consciente disto. Caso se controle o mercado de armas, se controla as guerras. Caso você controle a comida, controla a sociedade. E se você controla as sementes, controla a vida na Terra”.
A maioria das mulheres foi separada da Terra. Este é um obstáculo para realizar esta cadeia de vida.
As mulheres e as comunidades indígenas foram separadas da Terra violentamente. É a maior crise que estamos enfrentando. Porque estar na Terra quer dizer ser guardiões e guardiãs da terra. Nosso desafio é, passo a passo, campo a campo, sítio a sítio, semente a semente, voltar à terra. Isso está acontecendo em todas as partes do mundo onde as pessoas produzem sua própria comida. É o que eu estou fazendo na Índia com o Movimento Navdany, porque ainda que a tendência seja retirar os camponeses e as camponesas de sua terra, nós trabalhamos para mantê-las em sua terra, criando economias através das quais possam ficar na terra.
Essas economias propõem estimular a biodiversidade…
Claro. Isto é muito necessário, e em especial na Argentina, que vive uma escravidão da soja, onde os cidadãos se fecham em si mesmos, assim como os camponeses. A monocultura prejudica a mente. Parte do problema que temos é que há muitas ‘soluções individuais e globalizadas’. Temos que permitir que cresçam soluções múltiplas. Para poder sair da escravidão e produzir a biodiversidade que a terra e as pessoas necessitam é preciso criar associações entre moradores do campo e das cidades. Por que os produtores se relacionam com a Monsanto e não com os moradores das cidades? Porque o sistema está trabalhando para aqueles que criaram este sistema totalitário, mas não está trabalhando para as pessoas que cultivam a terra. Este sistema rompeu os processos ecológicos da Terra, como também as relações entre os povos. Temos que reparar este sistema rompido. Cada pessoa criativa pode trabalhar para respeitar os direitos da Mãe Terra e os direitos da Humanidade.
(EcoDebate, 25/08/2016) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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