terça-feira, 26 de junho de 2018

Cannabis sativa, patrimônio vegetal da humanidade? - outraspalavras.net/outrasmidias

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30 DE MAIO DE 2018
Dezenas de milhares participam da Marcha da Maconha de 2018, em São Paulo. Preconceito começa a ceder e setores cada vez mais amplos da sociedade defendem legalização

Seminário internacional debate, no Rio, uso medicinal na planta. E ouve relatos de quem já se prepara para produção — orgânica e em cooperativas — quando, enfim, vier a legalização

Por Gustavo Carvalho, na Agência Fiocruz de Notícias

A discussão sobre a regulamentação do uso medicinal da cannabis marcou o seminário internacional Cannabis Medicinal – Um Olhar para o Futuro desde a abertura, com o anúncio do diretor da Anvisa, Jarbas Barbosa, de que isso acontecerá ainda nesse semestre, para fins de pesquisa e produção. Mas na mesa específica sobre o tema, na tarde do primeiro dia (18/5), o advogado Emílio Figueiredo apontou caminhos que vão além dos tramites oficiais. Para ele, a planta deve ser considerada “patrimônio vegetal da humanidade, e não podemos falar de regulamentação sem ouvir as comunidades, quem trouxe a cannabis para cá foram os negros escravizados da África, eles têm que ser ouvidos”. O evento é fruto da parceria entre a Fiocruz, Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) e o Museu do Amanhã.

Como advogado de movimentos sociais e de associações de pessoas que fazem uso terapêutico da cannabis, Emílio fez questão de apresentar propostas pragmáticas. Ele enfatizou a necessidade de reinterpretação dos tratados internacionais, “a Jipe [Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, da ONU] vem aqui fiscalizar e diz que não tem objetivo de desrespeitar os direitos humanos, só que a política de drogas baseada em suas determinações no Brasil desrespeita esses direitos”.

Ele defendeu que essa revisão deve envolver o Estado, empresas e o terceiro setor. O primeiro teria o papel regulamentar, fiscalizar e tributar, as empresas têm capacidade de dar escala à produção atender um grande número de pessoas de forma rápida, mas são feitas para lucrar. “As associações podem realizar qualquer atividade, podem fazer tudo que as empresas fazem, menos distribuir lucro para seus associados e diretores, todo superávit operacional, deve ser reinvestido em suas atividades”, disse.

Emílio afirmou que as “empresas da cannabis” não devem repetir os erros de outros setores, como a exploração dos trabalhadores, o desrespeito aos consumidores, a sonegação de impostos e os danos ao meio ambiente. Para ele, são necessários padrões de fiscalização diferenciados para a produção empresarial e a colaborativa e individual. “A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] não pode entrar na casa da pessoa e dizer ‘você tem que plantar maconha dessa forma para a sua saúde’, ela não pode te impedir de comer um bife gorduroso, não pode impedir de guardar maionese estragada na geladeira”, brincou o advogado, ponderando que os órgãos públicos podem publicar boas práticas para o cultivo.

Segundo ele, é necessário um modelo regulatório que contemple os pequenos produtores rurais, “não pode ser um latifúndio de cannabis, o latifúndio já causou problemas demais nesse país”. Para Emílio, a produção da cannabis é uma questão de soberania e segurança nacional, “estamos falando da saúde dos brasileiros, ela não pode se transformar numa commodity do mercado internacional”. Ele afirmou ainda, que o Brasil está criando uma regulamentação agora, depois de conhecer a experiência de diversos países, “não pode errar, não adianta copiar é preciso criar um modelo que leve em conta a realidade geográfica e social”.

A mesa-redonda contou ainda com a participação do jornalista Tarso Araujo, que apresentou um panorama das experiências de regulamentação da cannabis em diversos países. Tarso destacou as diferenças em relação à autorização para produção, distribuição, padrões de controle de qualidade, indicações para o uso medicinal. Ele afirmou que existe uma relação entre qualidade de vida e restrições ao acesso, que em países, como Israel e Holanda, onde a regulamentação é bastante abrangente, mas também flexível, os resultados são mais proveitosos para a sociedade.

A gerente de Produtos Controlados da Anvisa, Renata Souza, descreveu as diversas fases do processo de regulamentação da cannabis no Brasil. Renata lembrou que, desde a primeira demanda (2014) das famílias de pacientes para a importação do canabidiol (CBD), alguns passos foram dados, como a permissão da importação da cannabis para fins de ensino e pesquisa. Mas afirmou que ainda há um longo caminho até a regulamentação prometida pelo diretor da Agência, passando diversas audiências, reuniões setoriais e pela participação social através de consultas públicas.

Também participou da discussão o empresário Caio Santos, que fundou a Entourage Phytolab em 2015. A empresa atua na produção de cannabis medicinal em sociedade com a Bedrocan, companhia de origem holandesa que uma das maiores do mundo no setor. Para o empresário “empreender em cannabis no Brasil é uma luta, sem vontade política, não teremos a regulamentação”.

Cultivo e Produção

A manhã do segundo dia do Seminário (19/5) foi dedicada a experiências de produção e cultivo da cannabis. Sarah Balboa expôs o processo de produção em escala industrial da Revivid, empresa fundada em 2011 no Colorado (EUA). A Revivid é hoje uma das maiores empresas produtoras do Canabidiol (CBD) no mundo, trabalha com plantas orgânicas e alta tecnologia industrial, como o uso de CO2 para extrair óleos de maneira não tóxica e segura.

A empresa afirma ter controle total sobre o processo de produção, da planta ao produto final, com alto investimento em equipamentos para fabricação e controle de qualidade. Segundo a diretora da Revivid, a empresa conta com pesquisadores em seus laboratórios e técnicos treinados em procedimentos seguros de manuseio, resultando em um produto de alta qualidade farmacêutica. Trabalhando com o desenvolvimento genético, a empresa garante ter plantas com menos impurezas e concentrações mais adequadas de CBD.

Um nível intermediário de cultivo foi ilustrado pela experiência da Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace). Formado em antropologia e autor do livro Cannabis medicinal introdução ao cultivo, Sérgio Vidal é o cultivador responsável pela produção de Cannabis da Associação na Paraíba. A Abrace é uma organização sem fins lucrativos que distribui extratos como o CBD (puro ou na forma de óleos, sprays e pomadas) para pelo menos 600 pacientes com problemas neurológicos em todo o país. Desde novembro do ano passado tem autorização da Justiça Federal para cultivar e manipular a Cannabis sativa exclusivamente para fins medicinais.

O cultivo mantido pela Abrace é orgânico e sustentável, utilizando energia solar para suplementação das necessidades de iluminação que a cannabis exige. Utilizam defensivos agrícolas naturais, e cultivam sete subespécies da planta, com sementes de origem controlada, doadas por bancos de semente internacionais. A expectativa é que, a partir de setembro desse ano, possam colher de suas estufas em João Pessoa (PB) de 15 a 20 Kg de Cannabis em três meses.

A Associação, que tem como parceiros universidades e institutos nacionais e internacionais, espera concluir 2019 um processo de restruturação do cultivo e processamento. Será inaugurado um novo cultivo em Campina Grande (PB), com instalações hidropônicas, inclusive utilizando água de piscicultura, além de iniciar a produção própria de sementes. Para Vidal, “o cultivo associativo é a forma mais igualitária de permitir o uso medicinal”.

A experiência de cultivo pelos próprios pacientes e familiares foi relatada por Marcos Lins da Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi). Marcos é cofundador e diretor da Apepi e foi o primeiro Pai a ter o direito de plantar cannabis legalmente para sua filha, e faz oficinas de plantio e manufatura de óleo com as famílias. Ele conta que o grupo usava inicialmente óleos importados, mas as dificuldades para sua obtenção conduziram à utilização de um produto artesanal. O resultado foi até melhor em alguns casos, então decidiram plantar a Cannabis em suas casas e frequentemente trocam experiências sobre dificuldades e soluções no cultivo e produção do óleo.

A Apepi mantém há algum tempo uma parceria com a UFRJ, que ajuda com questões de higiene e outros cuidados na produção. Essa parceria gerou a iniciativa de angariar fundos coletivamente para compra de equipamentos para analisar e melhorar a qualidade do óleo que produzem, revelando um grau de concentração de CDB em alguns casos até mais adequado ao uso medicinal do que determinados produtos industrializados.

Uma pesquisa informal realizada pela Apepi revelou que, apesar da proibição e dos riscos, 76% dos associados não tem medo de plantar. Citando Martin Luther King, que afirmava que “temos o dever moral de obedecer a leis injustas”, Marcos incentiva o auto cultivo e desafia “alguém teria coragem de prender um pai ou mãe que planta para seu filho especial? ”.

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