Fonte: Marcelo Torres - Consea - Segunda-feira, 29 de Agosto de 2016
Fonte: http://goo.gl/SWiWXD
“A fome dizima as populações do terceiro mundo”, dizia Josué de Castro, em 1946, no livro Geografia da Fome. “A fome é escamoteada, é escondida, não se fala neste assunto, que é vergonhoso, a fome é um tabu”, afirmava ele. Josué de Castro [Recife – 1908, Paris – 1973] foi um humanista brasileiro, médico, nutrólogo, cientista social, geógrafo, escritor e ativista - indicado três vezes ao Prêmio Nobel da Paz.
Foi ele um dos precursores de estudos e pesquisas sobre a fome no Brasil e no mundo. “Não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome”, disse ele. “A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do rio Capiberibe, nos bairros miseráveis do Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite”. Esta foi a sua Sorbonne: “A lama dos mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo”.
Menos de uma década depois (1955), outro pernambucano, o poeta João Cabral de Melo Neto, publicava um dos mais famosos poemas da língua portuguesa - “Morte e Vida Severina”. No texto, o poeta denunciava a miséria reinante no país, ao dizer que “somos todos Severinos [...], condenados à morte de velhice antes dos 30, de emboscada antes dos 20, de fome um pouco por dia”.
Três décadas mais tarde, em 1984, ano da campanha pelas eleições diretas para a Presidência da República, o cantor e compositor baiano Caetano Veloso lamentava na letra de uma de suas canções: “Enquanto os homens exercem seus podres poderes, morrer de fome, de raiva e de sede são tantas vezes gestos naturais”. Ou seja, até pouco tempo atrás, a fome era um assunto tabu e dizimava populações, segundo estudos de Josué de Castro; a fome matava diariamente milhares, talvez milhões de brasileiros, diziam os versos de João Cabral; por causa dos podres poderes, morrer de fome era algo natural, cantava Caetano.
No início dos anos 90, cerca de 32 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da pobreza, segundo o “Mapa da Fome”, estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Apli cada (Ipea), em 1993, no governo Itamar Franco. No ano seguinte era criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e realizada a 1ª Conferência Nacional.
O tempo passou e, em 2014, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) informou ao mundo que o Brasil – com menos de 5% da população em insegurança alimentar grave - saiu do Mapa da Fome Mundial, uma grande conquista para um país onde, segundo João Cabral, “morria-se de fome um pouco por dia”.
A conquista brasileira, dizem especialistas, foi fruto de um somatório de fatores, como as políticas públicas e os programas sociais - que promoveram inclusão social e transferência de renda -, a atuação da sociedade civil e a luta de brasileiros como Josué de Castro e Herbert de Souza, o Betinho. Contudo, se hoje em dia mais brasileiros passaram a comer - e comer mais -, é fato também que outros problemas surgiram, com as mudanças sociais e econômicas dos últimos tempos – que provocaram mudanças nos hábitos alimentares da população.
Segundo pesquisas do Ministério da Saúde, mais de 50% da população adulta está com sobrepeso, sendo que a obesidade já beira os 20%. Já a pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), aplicada em 2014 e divulgada em 2015 pelo Ministério da Saúde revela: 52,5% dos brasileiros adultos estão com sobrepeso e, destes, 17,9% já estão obesos. A pesquisa foi feita por telefone, ouvindo 41 mil pessoas nas 27 capitais brasileiras.
Na sequência histórica da mesma pesquisa, os dados mostram tendência crescente nos índices. O sobrepeso em 2006 era 42,6%, subiu para 50,8% em 2013 e chegou a 52,5% em 2014. Já a obesidade era de 11,8% em 2006, subiu para 17,5% em 2013 e passou a ser 17,9% no ano passado. Só para se ter uma ideia do problema, números oficias indicam que o Sistema Único de Saúde, o SUS, gasta quase meio bilhão de reais por ano no tratamento de doenças relacionadas à obesidade, as doenças crônicas não transmissíveis. Isso tudo sem contar outros impactos na economia, como por exemplo, as ausências ao trabalho.
Neste contexto o Brasil realizou, em novembro do ano passado, a 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com um lema bastante oportuno: “Comida de Verdade no Campo e na Cidade, por direitos e soberania alimentar” – levando os participantes a discutirem o que estamos e não estamos comendo.
Além do peso
Em 2004 esteve em cartaz nos cinemas de todo o mundo o documentário “Super Size Me – a dieta do palhaço”, de Morgan Spurlock, que era o ator e o diretor. Ele passou um mês se alimentando três vezes por dia numa famosa rede de fast-food, a fim de mostrar os efeitos que tal escolha exerce sobre uma pessoa. Ao final da experiência, o ator-diretor engordou 11 quilogramas, ficou com uma fisionomia de doente e apresentou mudanças de humor, disfunção sexual e impacto sobre o fígado, precisando de mais de um ano para perder o peso adquirido.
No Brasil, a Maria Farinha Produções e o Instituto Alana produziram o filme “Muito Além do Peso”, um contundente documentário sobre a obesidade infantil, que mostra hábitos alimentares de crianças e traz a opinião de especialistas no assunto.
Apesar de muita gente achar que segurança alimentar e nutricional é tão somente “combate à fome”, o conceito é muito mais amplo do que se imagina. Não é só comer, não é só “matar” a fome. Estamos falando de alimentação adequada e saudável, livre de agrotóxicos e transgênicos, que não prejudique sua saúde nem o meio ambiente. O conceito de segurança alimentar e nutricional também prevê o respeito e a preservação dos hábitos alimentares (cultura alimentar) de um povo, de uma região, de uma comunidade, como, por exemplo, as tradições alimentares dos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais, entre outros.
A fome ainda não está de todo vencida, pois há ainda 3,8% de brasileiros privados do acesso diário ao alimento – e a situação é mais séria entre grupos vulneráveis (os mais pobres, os negros, os quilombolas, os indígenas, os povos e comunidades tradicionais, ente outros). O que se espera é que fique no passado – e não volte nunca mais – o tempo em que se morria de fome um pouco por dia, como no poema de João Cabral; o tempo em que morrer de fome era coisa natural, como na música de Caetano; o tempo em que a fome era um assunto tabu, como no livro de Josué de Castro.
Link:
Nenhum comentário:
Postar um comentário