sexta-feira, 25 de maio de 2012

O Gênio da Garrafada

Texto do grande amigo Julino. Ele tem uma grande qualidade, entre várias outras, estuda e escreve sobre um tema que vivenciou na prática.

Crônicas da Farmacovigilância


por Julino Soares

Talvez esse não seja um assunto comum a você, mas se perguntar aos seus familiares mais velhos (especialmente se viveram na região norte ou nordeste) ou mesmo ir até uma feira de alimentos do seu bairro, certamente irá se de deparar com as famosas “garrafadas”.

As garrafadas são produtos comuns na nossa medicina popular, produzidas pela maceração de plantas medicinais, animais e/ou minerais em vinho branco ou cachaça. Estão presentes em diversas regiões do país e podem ser encontradas em feiras, casas de ervas, barracas de ambulantes, comercializadas por raizeiros e até produzidas por familiares, amigos e vizinhos. Eu mesmo já fiz algumas garrafadas usando vinho branco (moscatel) com algumas ervas, mas cada “raizeiro” possui suas peculiaridades e receitas.

Apesar da sua popularidade, esse assunto pode provocar muitos conflitos – uma “noite das garrafadas” – entre os raizeiros, consumidores e os profissionais da saúde. Um exemplo disso são as famosas garrafadas de avelós ou de babosa para tratamento do câncer e as garrafadas de Viagra,produtos estes que ainda não têm comprovação científica e podem causar intoxicações.
Os raizeiros, embasados no conhecimento empírico e tradicional (e no caso de alguns comerciantes também nos interesses financeiros) receitam as garrafadas para os mais diversos tratamentos; já pude observar garrafadas compostas por 14 ervas, com mais de 20 indicações terapêuticas. Praticamente, podemos encontrar verdadeiras panaceias, com indicações quase mágicas para todos os males.

Diversos problemas podem ser causados pelo uso das garrafadas, os quais devem ser considerados; como o uso de plantas sem a correta identificação e sujidades. Mas se focarmos apenas nas possíveis reações adversas provocadas pelas plantas já temos um grande problema, pois não sabemos o quanto negativos estes efeitos podem ser. Em fevereiro de 2010 foi noticiada a morte de uma mulher causada supostamente pela ingestão de uma garrafada.

Também temos que levar em consideração que o álcool possui influência sobre diversos órgãos do corpo, incluindo o fígado, modificando o perfil de eliminação de medicamentos e outras substâncias. Além das garrafadas, podemos encontrar bebidas alcoólicas comercializadas formalmente que também são usadas como “medicinal”, como o vinho de jurubeba (esse é das antigas!) e o uso de aperitivos alcoólicos feitos a base de ervas, como a Cynar® (aperitivo de alcachofra). Também é comum no Brasil o consumo de bebidas não alcoólicas que usam a quinina, como a água tônica.

O uso de “bebidas alcoólicas medicinais” não é exclusividade brasileira. Um bom barman sabe que ainda é utilizado em receitas de coquetéis a “angostura bitters”. Trata-se de um concentrado de ervas amargas e aromáticas em álcool, criado inicialmente pelo médico alemão Johann Gottlieb Benjamin Siegert, em 1824, para tratar soldados com problemas estomacais.

Fica evidente que apesar das implicações médicas e sanitárias relacionadas à comercialização e uso das garrafadas, esses produtos copõem o repertório de “medicamentos populares” e, portanto, são alvo de estudos etnofarmacológicos. Os profissionais da saúde e agentes sanitários devem buscar essa compreensão e construir um diálogo com os “legítimos” raizeiros nas ações de promoção da saúde. Esse é um desejo possível que este cientista-raizeiro gostaria de ver!

Julino Soares é biólogo, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo.

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