terça-feira, 14 de abril de 2015

Manifesto da ABRASCO sobre o Projeto de Lei 4.961/2005 – que defende patente de seres vivos


‘Descobertas não geram patentes. O que pode gerá-las são invenções. Produtos naturais são descobertos e não inventados’

Está avançando na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.961/2005, que propõe a reforma da Lei de Patentes brasileira autorizando o patenteamento de substâncias ou matérias extraídas de seres vivos naturais o que é, hoje, vedado. Este Projeto de Lei foi proposto, em 29 de março de 2005, pelo Deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB/SP). Em resumo, o PL visa permitir que substâncias ou materiais extraídos de seres vivos naturais e materiais biológicos sejam patenteados.

Na opinião do médico sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades Reinaldo Guimarães ‘descobertas não geram patentes. O que pode gerá-las são invenções. Produtos naturais são descobertos e não inventados. Eles existem na natureza. Portanto, não devem ser patenteados. Mas note que se um produto natural é modificado para que haja uma utilização do mesmo em qualquer terreno, aí vale o depósito de patente. Mas esse tipo de produto natural modificado já está presente na nossa lei como passível de patenteamento’ explica Guimarães.

A Abrasco subscreve o Manifesto sobre o Projeto de Lei 4.961/2005: patentes são monopólios temporários concedidos em retribuição aos esforços dos inventores em inovar. Por isso estimulam a inovação. Entretanto, as patentes, quando em excesso, terminam por inibir a inovação haja vista desestimularem a competição. O que realmente estimula a inovação é a concorrência e não o monopólio. E, no caso, depositada uma patente de um produto natural no Brasil, a concorrência estará eliminada nos próximos 20 ou mais anos. A retribuição aos esforços de inventores não deve se sobrepor ao interesse público!

Manifestação sobre o Projeto de Lei 4.961, de 2005

O Projeto de Lei (PL) 4.961, de 29 de março de 2005, de autoria do Deputado Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB-SP), que ora tramita na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados, sob relatoria do Deputado Laercio Oliveira (SD-SE), trata de questões que podem afetar a saúde pública e a produção brasileira de biomedicamentos, fitoterápicos, vacinas e diagnósticos.

O direito de todo cidadão ao Sistema Único de Saúde (SUS) foi garantido na Constituição de 1988. Para executar esta política, o Estado deve continuamente se empenhar para fortalecer instituições, mecanismos de incentivos e estruturas regulatórias que facilitem o acesso às tecnologias e permitam a oferta de produtos e serviços a preços acessíveis, contribuindo para a redução das desigualdades e da pobreza. Nos últimos anos, observam-se contínuos investimentos na melhoria da disponibilidade para toda a sociedade de prevenção e tratamentos para diversas doenças. Constituem elementos-chave para a redução das vulnerabilidades do SUS a consolidação do Complexo Industrial da Saúde, a política de incorporação tecnológica do Ministério da Saúde, que enfatiza as análises de custo-efetividade, o incremento da inovação e produção locais, e a gestão dos preços, frequentemente vinculados a condições monopolísticas via proteção patentária.

Da adesão do Brasil ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo Trips, do inglês Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) derivou um conjunto de obrigações tais como, a sua agregação ao ordenamento jurídico nacional pelo Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994, a atualização da lei de patentes (Lei 9.279, de 1996), e um novo patamar de proteção para produtos e processos no campo da saúde. O Acordo prevê a proteção patentária em todos os setores tecnológicos.

No entanto, além dos deveres, os países chegaram a consensos importantes tais como, a possibilidade de exclusão de certas matérias da patenteabilidade. Na esfera biotecnológica, os países-membros deixaram espaço notável para a adoção de soluções mais adequadas a cada contexto. Assim, houve um acerto multilateral, que foi bom para países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Qualquer decisão que uma das nações venha a tomar além deste ponto não implica reciprocidade ou compensação. Constituirá ação unilateral e norma de natureza Trips-plus. Vale lembrar que não há incerteza quanto ao pleno uso das flexibilidades do Acordo Trips, tal como confirmado pela Declaração Ministerial de Doha sobre Trips e Saúde Pública, de 2001.

A internalização de Trips conferiu clareza ao que não é considerado patenteável no Brasil na área dos biológicos, preservando a distinção entre descoberta e invenção. O Artigo 10 da Lei 9.279 estabelece que não é contemplada como invenção “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.” Além disso, o Parágrafo Único do Artigo 18 determina que não são patenteáveis “o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial – previstos no art. 8º e que não sejam mera descoberta”. A resposta alcançada pelo legislador refletiu o direito soberano do Estado de decidir e trouxe equilíbrio ao separar corretamente o que é fruto do esforço inventivo humano e merece proteção do que é uma trivial extração das ofertas da natureza ao ser humano.

O PL 4.961 propõe alterar a Lei 9.279. A modificação para o Artigo 10 reduz o escopo do que não é declarado invenção no Brasil por meio da seguinte redação: “o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza ou dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural, exceto substâncias ou materiais deles extraídas, obtidas ou isoladas, as quais apresentem os requisitos previstos no art. 8o e que não sejam mera descoberta.” Ou seja, tenta enquadrar os elementos da natureza como invenções e não mais como descobertas, removendo conteúdo do domínio público e alocando-o no terreno privado.

O Artigo 18 também é objeto de modificação: “o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos e as substâncias e matérias previstas no inciso IX do art. 10, que atendam aos requisitos de patenteabilidade previstos no art. 8o e que não sejam mera descoberta.” A redação visa harmonizar a proposta de variação do Artigo 10, alargando o escopo de matéria patenteável no País.

Em síntese, o PL 4.961 objetiva dilatar a proteção patentária brasileira, sem qualquer contrapartida no plano multilateral e sem obrigação de investimentos locais em inovação e produção. Caso aprovado, haverá mais uma medida Trips-plus, limitando a concorrência e provocando danos à saúde pública.

A inconveniência do disposto no referido PL está estribada em vários argumentos. Sinteticamente:

1. Como já foi mencionado acima, ele fere um dos conceitos básicos da doutrina que governa o regime de patentes. Descobertas não geram patentes. O que pode gerá-las são invenções. Produtos naturais são descobertos e não inventados. Eles existem na natureza. Portanto, não devem ser patenteados. Mas se um produto natural é modificado para que haja uma utilização do mesmo em qualquer terreno, aí vale o depósito de patente. Mas esse tipo de produto natural modificado já está presente na nossa Lei 9.279 como passível de patenteamento.

2. No contexto dos países desenvolvidos, atualmente, o tópico é alvo de controvérsias, como ensina o caso Myriad. Em 2013, após longa disputa, a Suprema Corte dos Estados Unidos – país líder em pesquisa biotecnológica – chegou à decisão unânime no caso Association for Molecular Pathology v. Myriad Genetics. O tribunal invalidou as patentes dos genes BRCA1 e BRCA2 de titularidade da empresa declarando: “A naturally occurring DNA segment is a product of nature and not patent eligible merely because it has been isolated”. A decisão de vetar o patenteamento dos genes BRCA1 e BRCA2 decorreu da evidência de que esse patenteamento limitaria o acesso de milhões de mulheres pelo mundo afora aos testes que diagnosticariam um risco de câncer de mama muito aumentado. Muito embora não tenha sido mencionado na decisão daquela corte, vale notar que a limitação do acesso implica num grave dilema moral, fato que não deve ser ignorado pelo legislador brasileiro.

3. O PL não leva em conta um aspecto essencial da política industrial brasileira, qual seja a necessidade de defender a nossa indústria e a fabricação local de produtos derivados de suas respectivas biodiversidades. Países em etapas diferentes de desenvolvimento científico e industrial devem ter olhares distintos nessa questão. Os Estados Unidos, a União Europeia e o Japão, líderes mundiais em biotecnologia e desenvolvimento/produção de medicamentos biológicos lucrarão muito com o patenteamento de produtos naturais oriundos de biomas situados em outros países (como por ex. o Brasil). Desde o momento em que uma patente for aqui depositada, nenhum grupo de pesquisa ou indústria brasileiros poderão trabalhar com esse produto, pelo menos com vistas à produção industrial. Como as capacidades instaladas de pesquisa e de produção industrial daqueles países é hoje muito superior à nossa, eles serão mais rápidos na maior parte dos casos e chegarão na frente quase sempre. Nós perderemos. O regime de patentes deve ser uma retribuição ao inventor capaz de estimular a inovação. A excessiva extensão de possibilidades de patenteamento provoca o efeito oposto, pelo desestímulo à concorrência, esta sim a principal ferramenta para a inovação.

Em resumo, o PL 4.961 vai de encontro às correntes preocupações da saúde pública para ampliar o acesso e lidar com os preços crescentes dos novos lançamentos farmacêuticos. A simples justificativa de obtenção de lucros não pode embasar uma decisão desta monta. Além disso, no Brasil, nenhum investimento público em saúde deixou de ser feito em função da ausência de previsão de patentes para descobertas na lei.

A proteção da propriedade intelectual é instrumento de incentivo relevante para a economia brasileira. Contudo, sua evolução necessita considerar um amplo conjunto de políticas e assegurar a utilização das flexibilidades do Acordo Trips, fortalecendo o multilateralismo e preservando a dimensão do desenvolvimento e o equilíbrio do interesse público.

Publicado no Portal EcoDebate, 14/04/2015

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