Campinas, 11 de setembro de 2015 a 20 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 637
Projeto temático coordenado por pesquisadora do Nepam mostra como comunidades garantiram a ocupação produtiva das terras
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“Os quilombolas do Vale do Ribeira não estão mais isolados, isso é fato”, afirma a professora Celia Futemma, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp. “Há uma interação com instituições e pesquisadores externos e várias ações conjuntas visam dar visibilidade à luta das comunidades quilombolas para que atinjam seus objetivos. Ao mesmo tempo, eles estão extremamente conscientes politicamente e, hoje, têm maior acesso à informação para ganhar ainda mais conhecimento. Eles sabem de seus direitos.”
De 2007 a 2012, a bióloga e antropóloga Célia Futemma coordenou um projeto Fapesp sobre populações locais e conservação dos patrimônios natural e cultural, e continua atuando em comunidades da região tendo uma aluna de doutorado avaliando as atividades de turismo empreendidas por jovens quilombolas. “O trabalho da Unicamp se dá em colaboração com a professora Cristina Adams e sua equipe da USP, que lá chegaram em 2003 para um projeto avaliando os impactos do uso e ocupação do território por comunidades quilombolas em solos remanescentes da mata Atlântica.”
Segundo a pesquisadora do Nepam, os estudos no Vale do Ribeira, ao sul do Estado de São Paulo, têm mostrado como descendentes dos quilombolas se organizam para garantir a ocupação produtiva das terras reconhecidas na Constituição de 1988. “O reconhecimento dos territórios traz dois pontos importantes: primeiro, que o título é coletivo, concedido à associação da comunidade e não ao indivíduo, sem direito a alienação (a propriedade não pode ser arrendada, alugada ou vendida); outro aspecto é a diferença de jurisprudência em relação aos indígenas, que embora tenham direito ao uso e ocupação da terra por tempo indeterminado, ela continua pertencendo ao Estado.”
Célia Futemma explica que seu projeto Fapesp tratou mais especificamente da análise institucional, pesquisando o histórico de luta das comunidades quilombolas pelo território e também as regras que estão por trás dos sistemas agrícolas. “No Vale do Ribeira vivem mais de 60 comunidades autodenominadas descendentes de ex-escravos afro-brasileiros, em áreas variando de 2 mil a 6 mil hectares, muitas ainda não reconhecidas ou em fase de regulamentação. Dentro de quase toda comunidade existem áreas particulares, cujos proprietários convivem bem ou com dificuldades com os quilombolas, cabendo ao Itesp [Instituto de Terras do Estado de São Paulo] mediar os conflitos.”
Desde a Abolição, recorda a antropóloga, escravos fugidos, libertos ou abandonados por seus donos ocuparam aquelas terras e viveram praticamente isolados de agentes externos. A partir da década de 1950, a abertura da BR-116 (que liga São Paulo ao Paraná) e suas ramificações permitiu a entrada de fazendeiros com gado e de extrativistas cobiçosos do palmito-juçara. “A presença de grileiros trouxe tensões na luta pela terra, paralelamente ao movimento contra a construção de barragens como de Tijuco Alto, provocando a resposta de agentes sociais dando suporte às comunidades quilombolas: vieram a Igreja Católica com as Irmãs Pastorinhas, o Itesp, o ISA (Instituto Socioambiental) e os pesquisadores, todos muito atuantes até hoje.”
Os agricultores quilombolas, conforme a pesquisadora, dividem a terra entre o cultivo de subsistência e culturas de maior apelo comercial, como a banana e a pupunha. “A população local procura o equilíbrio entre as suas tradições de uso da terra e as restrições impostas pela legislação ambiental, como por exemplo, às queimadas para abrir o roçado e à caça. Pesquisadores atuantes no Ribeira estudam outras formas de uso do território, que passam pelo resgate e preservação de tipos de sementes de cultivares locais e o inventário cultural dos quilombos.”
Em sua análise institucional, Celia Futemma verificou que as regras de usufruto pelos comunitários foram se tornando mais complexas no decorrer do tempo. “Antigamente, a distribuição da terra entre as famílias era informal: se alguém queria abrir um roçado ou construir sua casa, escolhia uma área, respeitando-se o espaço das demais famílias. Posteriormente, o governo estadual dividiu o território em lotes retangulares e deu um título de propriedade a cada família. Com a Constituição de 88 determinando que a terra seja coletiva, muitas daquelas famílias abriram mão dos seus títulos em prol da associação da comunidade.”
A docente da Unicamp observa, porém, que esta transição não foi tão fácil, pois sendo os títulos individuais, várias famílias quilombolas venderam suas áreas a preços irrisórios. “Não investiguei a fundo essa questão, mas talvez explique a existência de propriedades particulares que são motivos de conflitos. Teria que montar toda a cadeia dominial para confirmar se uma propriedade pertence realmente a tal pessoa. O fato é que os comunitários, incluindo-se os líderes, preferem o título coletivo, em que toda ação envolvendo a gestão do território é submetida à comunidade, em reuniões frequentes.”
COMPLEXIDADES PÓS-88
De acordo com Célia Futemma, as leis ambientais vêm trazendo restrições para os quilombolas em relação ao tradicional rodízio de culturas e ao licenciamento do próprio roçado. “A licença precisava ser solicitada à Cetesb a cada um ou dois anos, frequência que dificultava o plantio de determinadas culturas. Muitas famílias deixaram de plantar e os jovens se sentiram desestimulados para o trabalho na roça, que já é árduo. Com a proibição da queimada e a necessidade de licenças para a roça, houve protestos em 2009 e um pedido de ajuda à ISA e universidades para intermediar um acordo com a Cetesb: a partir de 2011, o licenciamento passou a valer por períodos de cinco a dez anos.”
A pesquisadora do Nepam conta que a garantia da terra incentivou quilombolas a investirem na pupunha, uma cultura perene, diferente das anuais de mandioca, feijão ou milho, que são cultivares itinerantes. “Eles mantêm o plantio de subsistência, com vários tipos de cará e de banana, além de outras frutas, mas também compram produtos no mercado. Pesquisa da equipe da professora Cristina Adams mostra uma mudança de dieta nos últimos anos, com consumo maior de calorias processadas – farinha branca, pão, biscoito.”
As comunidades também vêm apostando em outras atividades econômicas, diz a professora, lembrando que na comunidade Ivaporunduva o turismo apresenta-se mais consolidado, com uma pousada e visitas quase diárias de escolas de classe média de São Paulo e de outros Estados. “As crianças visitam áreas agrícolas e conhecem a história dos quilombolas, contada por velhas lideranças, ao passo que jovens da comunidade atuam como agentes ambientais, levando os visitantes até atrações como a Caverna do Diabo e as inúmeras cachoeiras.”
É verdade, observa Célia Futemma, que muitos jovens e também adultos saíram para São Paulo, Curitiba e cidades maiores das redondezas. Entretanto, com a conquista da terra, há pessoas que voltaram para a comunidade 20 ou 30 anos depois, já com suas famílias. “Jovens também voltaram e outros desistiram de sair para continuar na luta e zelar pelo território. Um terceiro movimento é o intercâmbio entre os quilombolas que ficaram e os que estão nas cidades, graças aos recursos de comunicação, havendo ainda a interação com os agentes externos, que resulta em ações conjuntas para angariar recursos e dar mais visibilidade à luta quilombola.”
Na opinião da pesquisadora, os quilombolas do Vale do Ribeira estão conscientes politicamente. “Vemos a desenvoltura na fala, a clareza de raciocínio e o acesso à informação facilitada. Eles conhecem seus direitos. Os líderes acima dos 60 anos também se expressam muito bem e inclusive dão palestras em eventos sobre o histórico do seu povo e os patrimônios cultural e natural. Com esse propósito, o Nepam da Unicamp sediará em setembro um seminário sobre esse tema, com espaço para que as ‘vozes comunitárias’ apresentem suas experiências.”
A professora da Unicamp ressalta como outro fruto da interação o Inventário cultural de quilombos do Vale do Ribeira, livro publicado pelo ISA que traz ricas informações histórico-culturais de todas as comunidades da região: tanto sobre o patrimônio material (equipamentos para produção de farinha de mandioca, pilões e a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, de 1791), como imaterial (cantorias, danças e festejos). “Juntamente com o ISA, eles organizam eventos comunitários, como a Feira de Sementes em agosto e participam de encontros político-sociais reunindo quilombolas de todo o país. O Circuito Quilombola, iniciativa voltada ao turismo também apoiada pelo ISA, conta com a participação de mais de dez comunidades.”
POLÍTICA CONSOLIDADA
Célia Futemma considera a conquista do território como fundamental para a luta dos quilombolas, mas adverte que no Estado de São Paulo apenas 32 comunidades foram reconhecidas e seis tituladas. “A conquista é importante para que possa haver toda essa mudança, com garantia de direito à moradia e aos sistemas produtivos, bem como às atividades de turismo. Mais do que a posse, eu colocaria a garantia da terra como ponto chave para que as famílias possam investir em suas atividades e seus modos de vida. Outro dado importante diz respeito à cobertura vegetal: cada comunidade tem mais de 80% da mata Atlântica preservados. A presença dos quilombolas foi decisiva para que a floresta ficasse em pé.”
A pesquisadora do Nepam não vê riscos de retrocesso em relação à titulação da terra, processo que é conduzido pelo Itesp, com o Incra atuando apenas em casos muito específicos envolvendo terras de particulares ou da União. “Para nós pesquisadores, o mais importante é a autonomia demonstrada por eles para o bom gerenciamento dos territórios, em que pesem problemas como na educação básica, que precisa melhorar. De qualquer maneira, os filhos dos quilombolas estão estudando mais que os pais, que estudaram mais que os avós. Temos então uma população mais educada formalmente, o que significa a valorização das comunidades e o sentimento de pertencimento.”
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