Biotransformação aumenta concentração de compostos fenólicos livres e melhora atividade funcional de antioxidantes
Texto: Carmo Gallo Netto
Devido principalmente às suas comprovadas atividades antioxidantes, os polifenóis, ou compostos fenólicos, estão relacionados à prevenção do câncer e de doenças cardiovasculares. Sua reconhecida capacidade de combater radicais livres, comprovadamente responsáveis por processos de oxidação que conduzem a uma série de doenças degenerativas, determina o seu uso como substâncias bioativas, componentes dos chamados alimentos funcionais. A sua presença em amplas variedades de fontes vegetais, incluindo frutas, legumes e cereais, assim como em chás e sucos de frutas, fazem com que esses produtos sejam incluídos na composição de uma dieta sadia.
Entretanto, os polifenóis naturais ocorrem frequentemente ligados quimicamente a moléculas de açúcares ou a outros conjugados que podem comprometer a sua biodisponibilidade e limitar os seus efeitos benéficos no organismo. Processos biotecnológicos que rompam essas ligações químicas, de forma a isolar a molécula do polifenol das que lhe estão associadas, podem ser chamados de biotransformação. A biotransformação das fontes vegetais dos polifenóis, ou dos produtos delas advindos, leva ao aumento da concentração de compostos fenólicos livres e melhora a atividade funcional desses antioxidantes.
Os compostos antioxidantes assumiram particular importância quando se descobriu que as doenças crônico-degenerativas, diabetes, problemas coronários, cânceres, entre outros males que acompanham o envelhecimento, são antecedidos por processos oxidativos que ocorrem no organismo em níveis acima dos normais. Em decorrência da associação entre o consumo de alimentos e bebidas ricos nessas substâncias e a preservação de doenças, o interesse por polifenóis passou a ser crescente. Mas era necessário vencer as limitações impostas pelas estruturas desses compostos que afetam suas propriedades biológicas como biodisponibilidade, atividades antioxidantes e interações específicas com receptores celulares e enzimas.
Uma das alternativas para se chegar a eles é a biotransformação de fontes vegetais e seus produtos, utilizando a fermentação ou a hidrólise enzimática. Esses recursos permitem aumentar a atividade funcional desses antioxidantes por meio do aumento da concentração de compostos fenólicos livres de glicosídeos ou conjugados. Na biotransformação através da hidrólise, várias enzimas podem ser utilizadas, entre elas a tanase, ainda pouco conhecida e estudada.
Com o objetivo de estudar a ação enzimática do extrato semipurificado de tanase de Paecilomyces variotti frente a diferentes polifenóis purificados, e avaliar a atuação do extrato de tanase na matriz alimentar suco de laranja, a pesquisadora Lívia Rosas Ferreira desenvolveu pesquisas junto ao Departamento de Ciências de Alimentos da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp. O trabalho teve a orientação da professora Gabriela Alves Macedo e coorientação da professora Juliana Alves Macedo.
A escolha do alimento se justifica pelo fato de o Brasil ser o maior produtor mundial de concentrado de suco de laranja, além de estudos mostrarem que essa bebida possui grande capacidade antioxidante, em parte relacionada à presença de polifenóis. A fim de lhes aumentar a atividade funcional, o extrato semipurificado de tanase obtido do microrganismo Paecilomyces variotti foi avaliado quanto à sua capacidade de biotransformar os polifenóis hesperidina e naningina predominantes no suco de laranja de padrões comerciais.
Os resultados mostraram que o extrato semipurificado de tanase levou a um aumento de cerca de 17% do teor fenólico total e foi capaz de modificar o perfil polifenólico, convertendo os padrões hesperidina e naningina nas suas formas agliconas, que possuem maior atividade antioxidante do que as formas glicosiladas.
Dependendo do método empregado, a atividade antioxidante do suco de laranja aumentou de 50% a 70%. Para a pesquisadora, os estudos da biotransformação enzimática de polifenóis em matrizes alimentares, que revelaram o aumento da atividade antioxidante, abrem caminho para a produção de alimentos de consumo corrente com maiores atividades funcionais.
Pelo que tem conhecimento a autora, o trabalho mostrou pela primeira vez a capacidade do extrato semipurificado de tanase em atuar na hidrólise das flavanonas hesperidina e naringina, modificando o perfil polifenólico do suco de laranja de maneira a levar a um aumento da atividade antioxidante in vitro dessa matriz alimentar.
Caminhos
Juliana lembra que se busca com o uso de alimentos funcionais antes de tudo o seu caráter antioxidativo, ou seja, o retardamento das ações de oxidação no corpo. Existem vários mecanismos de ação dos antioxidantes, entre os quais o de sequestro de radicais livres, resultantes do próprio metabolismo do organismo.
Partindo do conhecimento de que a enzima tanase podia quebrar moléculas maiores de polifenóis transformando-as em moléculas menores, mais facilmente absorvidas pelas células em que permanecem por mais tempo e por isso mais ativas, Gabriela orientou primeiramente uma pesquisa de doutorado estudando a produção e ação da tanase sobre os polifenóis presentes no chá verde e no chá mate, que ganhou o Prêmio Capes de teses, em 2009.
Como a literatura dizia que a tanase atuava em galatos taninos, encontrados principalmente no chá verde, ela resolveu comprovar isso em células e também em outros fenólicos. Coorientada por Juliana, Lívia testou, então, a ação dessa enzima em várias classes dos polifenóis prevalecentes na uva, no vinho, no café, na soja, no chá verde, no chá preto, na laranja. Os testes biológicos revelaram um fato totalmente desconhecido: a biotransformação dos dois polifenóis preponderantes na laranja, a hesperidina e a naningerina, típicos dos cítricos.
Esse efeito não era mencionado na literatura, embora constasse a informação de que a eliminação dos açúcares tornassem as moléculas mais biodisponíveis. A hidrólise da hesperidina provocada pela tanase que leva à formação da hesperitina, a forma fenólica mais ativa, e a liberação da rutinose, um açúcar.
As professoras lembram que os trabalhos mais recentes, não incluídos na tese citada, dão conta de que a hesperitina tem efeito antiproliferativo de células cancerígenas extraordinário, o que as levou a solicitar patente de processo para sua obtenção. Para referendar este fato, com o apoio da divisão de Farmacologia e Toxicologia do CPQBA, Juliana partiu de um painel de diferentes células tumorais humanas, constituído de nove linhagens de tumores como os de intestino, rim, ovário, pulmão, fígado, etc, submetendo-as separadamente a um anticancerígeno farmacológico padrão, à hesperidina e à hesperitina, de modo a poder comparar os efeitos sobre a morte das células doentes.
Os resultados mostraram que com a hesperitina a inibição do crescimento celular se aproximou à do fármaco, o que pode ser considerado altamente positivo por ser difícil achar um composto natural com essa atividade. Os resultados estão sendo publicados em revista de impacto da área de alimentos.
As pesquisas se estenderam também sobre a ação da hesperitina sobre radicais livres, revelando uma ação muito maior que os compostos de partida. O desenvolvimento dos estudos gerou uma série de pesquisas. Gabriela ressalta que uma das próximas etapas, já em andamento, é o de passar da escala laboratorial, em que as quantidades utilizadas são reduzidas, para testes com volumes maiores, o que permitirá o desenvolvimento de pesquisas in vivo, com animais. Outra ideia é a de imobilizar a enzima em uma base gel que, disposta em uma coluna, permitirá que o suco circulante saia dela bioprocessado. Estaria viabilizada assim a produção de um alimento funcional, corriqueiramente consumido pela população brasileira.
Mas, talvez, o projeto mais interessante seja a obtenção da tanase a partir do fungo Paecilomyces variotti, que cresce bem no bagaço de laranja dando origem à enzima tanase. Esta converte toda a hesperidina do bagaço – que a possui em muito maior concentração do que a presente no próprio suco – em hesperitina, processo que poderá vir a ser uma fonte comercial de produção de hesperitina, ainda não existente. Economicamente viabilizada sua produção, ela poderá vir a ser, por exemplo, disponibilizada para consumo em cápsulas de suplemento alimentar, com poder antioxidante enorme, ou mesmo acrescentada no próprio suco ou em outros alimentos de forma a transformá-los em funcionais. Atualmente esse polifenol é isolado de fontes em que aparece em concentrações muito pequenas, o que encarece sua separação e, por isso, restringe sobremaneira seu emprego.
Contribuições
A fala entusiasmada dessas duas pesquisadoras irmãs, docentes da FEA – Gabriela, há 10 anos no Departamento de Ciência de Alimentos, e Juliana, recentemente admitida no Departamento de Alimentos e Nutrição – sugere a pergunta: como se sentem desenvolvendo pesquisas que podem trazer significativas contribuições para o ser humano? “Estudamos bastante e por muitos anos com financiamento do governo do Estado de São Paulo para chegarmos onde estamos. Hoje, funcionárias desse mesmo Estado, independentemente do reconhecimento acadêmico ou financeiro que possamos receber, temos que retornar para a sociedade o que estiver ao nosso alcance, porque para isso nos formamos”, afirma Juliana.
Gabriela completa: “Os resultados a que podemos chegar é que nos movem vir aqui todos os dias, embora nem sempre consigamos sensibilizar, durante as atividades docentes, o número de alunos que desejaríamos para o alcance do trabalho realizado em nossa Faculdade”.
Além de procurarem aumentar a escala de produção da hesperitina para viabilizar testes in vivo, elas trabalham para produzir a substância por processo fermentativo a partir do bagaço de laranja e realizar ensaios para descobrir quais são realmente os benefícios que o produto possa trazer para o organismo. Juliana pretende montar na FEA um laboratório de células humanas para em futuro próximo estudar a influência da tanase sobre obesidade, diabetes, etc. As pesquisadores têm pensado também em seu uso em cosméticos, para proteção da pele. Em relação aos polifenóis estão entrando ainda na área de óleos especiais e inclusive no estudo do azeite de oliva que começa a ser produzido no Brasil.
Publicação
Tese: “Estudo da especificidade da tanase de Paecilomyces variotii e sua aplicação na biotransformação dos polifenóis do suco de laranja”
Autora: Lívia Rosas Ferreira
Orientadora: Gabriela Alves Macedo
Coorientadora: Juliana Alves Macedo
Unidade: Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA)
Link:
http://www.unicamp.br/unicamp/ju/546/enzima-potencializa-propriedades-anticancerigenas-do-suco-de-laranja
Jornal da UNICAMP
Campinas, 12 de novembro de 2012 a 25 de novembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 546
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