“… por aqui passava a antiga estrada catingueira”.
Por Carlos Alberto Dayrell*, em Na imensidão dos Geraes
No dia 09 de novembro de 2013, a Comunidade Geraizeira do Moreiras deu continuidade na demarcação do território tradicional seguindo a margem da antiga estrada catingueira, exatamente a partir do mourão onde, em 1983, o geraizeiro João Domingos Cantuária cravou um poste. Quando o fez, foi a forma que encontrou para dizer para a firma Embaúba Florestal que, dali para frente, ela não podia avançar. Mas a frente de desmatamento já tinha circulado as nascentes de São Camilo, Mata Cantinho, Jambreiro, Vereda da Onça, Moreiras e Brejo do Meio, locais onde viviam centenas de famílias. O desmatamento, realizado com enormes correntões, destruiu os cerrados tradicionalmente utilizado pelos geraizeiros para solta dos animais, coleta de frutas nativas, lenha e plantas medicinais. Destruiu os caminhos que ligavam as comunidades entre si e, pior, cortou a antiga estrada por eles denominada de Catingueira ou Baiana, estrada que, durante quase três séculos, era o caminho que ligava as regiões de gerais com a caatinga, intensamente utilizada pelos moradores, com suas tropas de burro. Por estas estradas os produtos dos gerais e da caatinga circulavam, levando café, feijão, arroz, farinha, goma, rapadura, cachaça, óleo de piqui, frutos nativos, ou trazendo tecidos de algodão, carne de sol, requeijão, sal e querosene.
São dez horas da manhã do dia 09 de novembro de 2013. José Antonio, filho mais velho de João Domingos, orienta então onde o primeiro marco do processo de retomada do território deve ser cravado: bem ao lado do moirão, onde o seu pai, em 1983, enfrentou então, sozinho, a poderosa Embaúba Florestal. Pede para o jovem Tiago cravar o piquete, ajudado pelo pequeno Tailon, seu irmão com apenas 10 anos de idade. Neste dia, ao contrário da resistência isolada de João Domingos Cantuária, é quase uma centena de pessoas que, após reunirem na igrejinha da comunidade, subiram até a chapada para dar início à autodemarcação. Jovens, idosos, crianças, mulheres, adultos, todos participam da autodemarcação. Vão dar continuidade também à ação que fizeram, no dia 11 de setembro, dia do cerrado. Neste dia a comunidade em peso subiu até a chapada para impedir a tentativa de cercamento de uma porção desta área por uma empresária de Montes Claros. Impediram a cerca e mandaram um recado à empresa de reflorestamento da GERDAU que também plantou a monocultura de eucalipto no Território do Moreiras: esta área agora vai ser recuperada, protegida pela comunidade, não deixarão mais gente de fora mexer na área. E tem muitos motivos.
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980 o governo do estado de Minas Gerais arrendou ou alienou, de forma arbitrária, quase um milhão de hectares de terras na região Norte de Minas Gerais e no Vale do Jequitinhonha. Ignorou que nestas regiões viviam milhares de famílias camponesas e, através do Programa Pólos Florestais, com incentivos financeiros e fiscais do FISET e da SUDENE, estimulou o plantio em larga escala da monocultura do eucalipto. No caso das chapadas do Moreiras, a empresa beneficiada foi a Embaúba Florestal S.A. Os correntões deitaram os cerrados, as terras foram gradeadas, o eucalipto plantado, os carreadores, sempre limpos, entupiram as nascentes que formam o Córrego Moreiras, afluente do rio São Gonçalo, cabeceiras do Rio Pardo. Das 17 nascentes em torno das chapadas, apenas duas continuavam mantendo a força de suas águas, sendo que nove foram consideradas mortas, segundo estudos realizados na comunidade em 2011. As chácaras de café e o plantio de cana e de feijão foram afetadas pelo secamento, o cultivo do arroz foi abandonado. Em muitos locais, subsiste apenas o plantio de mandioca, cultura mais resistente à seca. A Embaúba Florestal repassou a terra para a Empresa Gerdau que repetiu o plantio, mas, segundo os geraizeiros, a comunidade vai permitir apenas que a Gerdau corte o eucalipto. E não querem mais que ela mexa no lugar.
A retomada continuou com a autodemarcação da chapada, seguindo a antiga estrada catingueira. Embora as plantações da monocultura em 30 anos tenham apagado os rastros da antiga estrada, os geraizeiros apontavam em meio aos eucaliptos, onde a estrada passava com ssuas curvas, como que gravados na memória de tantas idas e vindas em direção aos municípios de Mato Verde e Porteirinha. Foi assim que os pontos seguintes foram cravados, revezando entre os seus membros, passando por José Antonio, Ronildo, pelas jovens Ana Flavia e Flavia, esta última representante da Terra Indígena Xakriabá, e continuou com o Sr. Antonio, um dos anciões da comunidade, com o Veraldino finalizando então com o mais jovem, o Tailon. Os seguranças da Gerdau tentaram impedir, mas a comunidade os ignorou, da mesma maneira que as firmas ignoraram os geraizeiros na década de 1980.
A comunidade do Moreiras não estava sozinha, contou com a presença de jovens rurais oriundos de comunidades quilombolas, vazanteiras, geraizeiras, catingueiras e indígenas de municípios do Norte de Minas e do Sudoeste da Bahia, além de outras organizações como o STR de Rio Pardo de Minas, Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, MPA, MST, CEAS, Movimento Geraizeiro, entre outras.
Ao final, de braços dados, o território autodemarcado foi abençoado pelas referências espirituais da comunidade do Moreiras.
Rio Pardo de Minas, ao doze de novembro de 2013
Fotos de Eliseu Oliveira
*Carlos Alberto Dayrell é pesquisador do CAANM
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