Jornal da UNICAMP
Campinas, 09 de junho de 2014 a 22 de junho de 2014 – ANO 2014 – Nº 600
Descoberta feita por pesquisadores brasileiros pode resultar no desenvolvimento de fármacos
Texto: CARLOS ORSI
Fotos: Reprodução
Edição de Imagens: Diana Melo
Uma equipe de pesquisadores ligados a instituições brasileiras, incluindo o Laboratório de Química de Proteínas (Laquip) do Departamento de Bioquímica do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, conseguiu isolar e caracterizar duas toxinas presentes no veneno da serpente Bothrops brazili, um tipo de jararaca que vive na América do Sul, já tendo sido encontrada no Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Guiana Francesa. Artigos descrevendo as moléculas e seu modo de ação no corpo humano já foram publicados em periódicos internacionais, como Biochimica et Biophysica Acta, Toxicon e Acta Crystallographica. Essas descobertas poderão vir a ajudar não só no tratamento das vítimas de picada, mas também no desenvolvimento de novas drogas para outros problemas de saúde – uma molécula encontrada no veneno de outra espécie de jararaca, Bothrops jararaca, já serviu de base para a criação de um remédio para hipertensão.
As serpentes do gênero Bothrops – as jararacas – aparecem em cerca de 90% dos casos de envenenamento por picada de cobra no Brasil, mas não existe um soro antiofídico capaz de ser útil para qualquer tipo de picada, mesmo quando a espécie exata do animal é conhecida. “Há diferenças na composição do veneno dependendo da distribuição geográfica, a alimentação e até a idade da serpente”, explicou ao Jornal da Unicamp o pesquisador peruano Salomón Huancahuire-Vega, que iniciou seus estudos com o veneno da B. brazili durante o mestrado, realizado no Laquip e é autor das publicações sobre as duas moléculas caracterizadas. Suas pesquisas continuaram no doutorado e prosseguem agora no pós-doutorado, também realizados na Unicamp sob a orientação do professor Sergio Marangoni.
“Toda essa variabilidade não permite ter um soro antiofídico que possa ser útil para qualquer acidente ofídico, pois o soro será efetivo para aquelas toxinas que estavam presentes no veneno com o qual se preparou o soro, e se o acidente ocorre com uma serpente que expressa alguma toxina diferente, a eficiência do soro diminui, e é exatamente isso o que acontece na realidade”, disse ele. “Sempre que um acidente ocorre com alguma serpente botrópica, apesar do uso do soro antiofídico, alguns danos são irreversíveis”.
No caso específico da B. brazili, a serpente produz uma quantidade excepcional de veneno em suas glândulas, o que a torna ainda mais perigosa. “No envenenamento causado por B. brazili, ocorrem consequências sérias, devido aos componentes tóxicos presentes no veneno, assim como ao grande volume inoculado”, disse Huancahuire-Vega.
Saúde pública
Somada à baixa eficácia dos soros antiofídicos disponíveis, há a dificuldade logística de fazer o antiveneno chegar às regiões amazônicas, mais afetadas por acidentes envolvendo esse tipo de serpente. Como diz o artigo publicado por Huancahuire-Vega e colegas no periódico Biochimica et Biophysica Acta, “o acesso a essas áreas remotas é muito limitada, por causa de barreiras geográficas, vasto território e falta de infraestrutura rodoviária”.
Os autores do artigo citam ainda um estudo publicado em 2008 no periódico PLoS Medicine, que afirma que “o envenenamento resultante da picada de cobra é um problema importante de saúde pública em vários países tropicais e subtropicais”. O trabalho da PLoS, de autoria de pesquisadores da Europa e do Sri Lanka, estima que o total anual de mortes por picada de cobra, no mundo, pode ser de mais de 90 mil. Outro artigo, publicado na revista médica Lancet em 2010, fala em mais de milhões de picadas anuais e até 125 mil mortes.
O artigo na Lancet se refere à picada de cobra como uma “doença tropical negligenciada”, que já mata mais, em escala global, que patologias como dengue e cólera. “A dengue causa um número estimado de 50 mil novas infecções a cada ano, incluindo 73 mil casos graves, 19 mil dos quais são fatais, enquanto que a picada de cobra (...) pode matar até seis vezes mais pessoas”, diz o trabalho da Lancet.
Proteínas-toxinas
“Nós temos que entender que o veneno é utilizado pela serpente como uma arma de defesa e alimentação. Para garantir a sobrevivência da espécie, estes animais precisam sintetizar uma combinação de substâncias químicas mortais que funcionam em conjunto”, disse o pesquisador, explicando a origem da complexidade do veneno. “Algumas toxinas têm efeitos dissolvendo os músculos, outras causam paralisia. Essas substâncias no veneno das serpentes têm natureza protéica, e proteínas se encontram em todo o organismo, e cumprem funções importantes na digestão, circulação, transmissão nervosa, entre outras”.
As toxinas nos venenos das serpentes são proteínas comuns em novas versões letais, ou formas mutantes de proteínas naturais do corpo, envolvidas em processos fisiológicos muito importantes, prosseguiu ele. Assim como as demais proteínas, as toxinas são cadeias formadas por unidades químicas menores, os aminoácidos.
“Como já disse, nenhum antiveneno funciona para todas as mordidas de serpentes porque o veneno é incrivelmente variado: não só existe muita variação de uma espécie para outra, mas, até, dentro da área geográfica de uma espécie vemos grandes diferenças na composição do veneno. É como se tivessem um cardápio diferente, por assim dizer”.
“Quando nós começamos o estudo deste veneno existia pouca informação, apenas alguns reportes de estudos ou caracterizações parciais de frações com certas atividades, mas nada isolado e caracterizado como nós fizemos”, disse.
Huancahuire-Vega e seus colegas fizeram o isolamento e a caracterização bioquímica e farmacológica de duas miotoxinas – venenos que atacam o tecido muscular – que pertencem a uma família chamada fosfolipases A2 (PLA2), e que foram batizadas de BbTX-II e BbTX-III.
A BbTX-III, uma típica PLA2, apresenta forte atividade catalítica – isto é, ela acelera certas reações químicas – e seus efeitos farmacológicos são resultado de sua ação sobre um conjunto de moléculas, chamadas fosfolipídios, presente na membrana das células musculares: uma vez rompida a membrana, a célula morre.
Já a BbTX-II é do grupo chamado de PLA2-homólogas: possui a arquitetura molecular das PLA2 típicas, mas pequenas mudanças de aminoácidos na parte responsável pelo efeito catalítico fizeram com que estas toxinas perdessem a sua atividade de catalisadoras. O interessante deste grupo de toxinas, explica o pesquisador, é que, mesmo sem atividade catalítica, elas produzem os mesmos efeitos das PLA2 ativas cataliticamente. Em alguns casos, esses efeitos são até mais pronunciados. O desafio é compreender o mecanismo pelo qual toxinas como a BbTX-II agem para gerar o dano muscular.
Mecanismo
O pesquisador explica que o veneno de B. brazili age de forma local, diretamente nos tecidos onde foi injetado. Ainda não há evidência de ação em tecidos distantes. “As toxinas PLA2 que caracterizamos agem diretamente na membrana celular dos tecidos afetados”, o que rompe as células e destrói os tecidos. As BbTX-II e BbTX-III são toxinas que provocam destruição do tecido muscular e inflamação local, embora testes de laboratório mostrem que elas também podem ser tóxicas para os neurônios, as células do sistema nervoso.
Uma contribuição importante do grupo de pesquisa, na compreensão de como essas proteínas agem na membrana muscular, foi a proposta de um novo mecanismo de ação: “Com base na determinação da estrutura cristalográfica da BbTX-II, e em comparações com outras toxinas botrópicas da mesma família, propomos uma hipótese coerente dos eventos moleculares que levam à sua toxicidade”, disse o pesquisador.
A hipótese descreve, em detalhes, como a BbTX-II se ancora sobre a membrana, facilitando sua desestabilização. “Desorganizada, a membrana perde descontroladamente íons, iniciando alterações celulares irreversíveis, que acabam com a morte da célula”, explicou Huancahuire-Vega.
“Este modelo proposto pode ser útil para desenvolver eficientemente inibidores que podem ser utilizados para complementar a administração do soro antiofídico convencional, evitando lesões permanentes ainda causadas por estas toxinas nas vítimas de acidentes ofídicos”, completou.
Outras toxinas
“Ainda falta muito para chegar a conhecer este veneno e seus componentes individuais”, afirmou ele. “O isolamento e caracterização de componentes individuais do veneno constitui o suporte da toxinologia, como uma estratégia fundamental para analisar e entender a série complexa de eventos envolvidos no envenenamento ofídico”.
A análise do veneno completo sugere a existência de mais de 30 proteínas ou toxinas diferentes, diz o cientista. “O veneno viperídio, que é o nome da família à qual pertence a B. brazili, caracteriza-se por possuir varias famílias de toxinas”, sendo a família das PLA2 uma das mais abundantes.
Potencial
O estudo detalhado das moléculas que compõem o veneno das serpentes também pode abrir caminho para a descoberta de novos fármacos, capazes de salvar vidas mesmo fora do contexto do envenenamento por picada de serpente. “As toxinas do veneno da serpente possuem alta especificidade de seu alvo. São consideradas, cada vez mais, como modelos biológicos e têm contribuído para o conhecimento de como cada aminoácido da cadeia que compõe a proteína participa na expressão biológica da molécula”, disse Huancahuire-Vega. “Dessa forma, são cada vez mais utilizadas como ferramentas farmacológicas e como protótipo natural para o desenvolvimento de medicamentos”.
O que sustenta essa estratégia industrial, explicou ele, é o fato de as toxinas representarem um modelo biológico isolado e purificado em laboratório, com moléculas homogêneas, de características físico-químicas já bem definidas e submetidas a testes farmacológicos. “Todo resultado advindo dessas moléculas podemos atribuir às suas características estruturais, que contribuem para a organização espacial da molécula, fazendo que seja uma proteína funcional”.
Ele cita como exemplo o captopril, medicamento usado no combate à hipertensão arterial. Criado nos Estados Unidos em 1977, o medicamento surgiu a partir de um estudo do veneno da serpente Bothrops jararaca, feito no Brasil nos anos 60. Em tempos mais recentes, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) têm estudado o uso de proteínas do veneno da jararaca e da cascavel na criação de adesivos para uso medicinal – capazes de fechar cortes na pele, por exemplo – e no combate ao câncer.
Publicação
Tese: “Modificações químicas e caracterização farmacológica das miotoxinas PhTX-I e PhTX-II isoladas do veneno de Porthidium hyoprora”
Autor: Salomón Huancahuire-Vega
Orientador: Sergio Marangoni
Unidade: Instituto de Biologia (IB)
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