domingo, 22 de novembro de 2015

O cheiro de enxofre e o mercado do medo: apropriações simbólicas da maconha como medicamento

Texto: Julino Soares

Doutorando pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo. 

A discussão sobre a maconha vem ganhando diversas frentes e despertando grande interesse popular, como a discussão sobre o usos medicinal e recreativo, direitos dos pacientes, regulação e porte. Certamente que parte do interesse de instituições por esse tema está relacionado com a ideia de controle social, centro de diversas disputas de poder. Portanto, reconhecer as estratégias de convencimento e os conflitos permitirá uma melhor percepção da complexidade do tema e diminuir os temores. 

Disciplinar nossa conduta e as experiências para um discurso coerente com o pensamento dominante sempre foi campo de disputas, seja por parte das religiões, monarquias, instituições sociais ou do próprio Estado (vídeo). Em nome de um “bem maior”, as estratégias de convencimento incluem a produção de (des)informação, o medo e a violência para o controle da vida. A aceitação e reprodução das formas de controle também se estendem para as relações pessoais, como um olhar do outro sobre o comportamento “normal” que devemos ter para a aceitação social e evitar punições. 

Historicamente, os doentes também são alvo de diversas formas de controle e discursos, especialmente os portadores de doenças psiquiátricas, hanseníase (lepra), peste bubônica (peste negra), tuberculose, ancilostomíase (amarelão), AIDS dentre outros. 

Assim, o corpo doente é campo de disputa entre as diversas práticas de cura. Possui apropriações simbólicas, da doença como manifestação do campo espiritual, possibilita intervenções do Estado, como o isolamento do doente, e “autoriza” a manifestação de ideias preconceituosas contra imigrantes, homossexuais, etnias ou dependentes químicos.

Como exemplo, Bertoli (2012), descreve a pandemia de influenza (gripe espanhola - 1918) que deixou centenas de mortos em São Paulo e causou um estado de histeria coletiva, com grande contribuição dos jornais para a legitimação dos “culpados” e difusão do pânico. O autor relata um caso que ocorreu com imigrantes alemães infectados: 

“Ernest, o pai, conseguiu internação por alguns dias no Hospital Alemão e, ao receber alta, retornou ao chalé em que morava, nas proximidades de onde hoje se situa o Parque do Ibirapuera. Na casa, sua esposa e seu filho perceberam que algo estranho havia acontecido com Ernest, que, segundo eles, exalava forte odor de enxofre, afugentando até as moscas. Ponderando os fatos, ambos concluíram que o homem havia sido tomado por Satanás. Caberia a eles, bons protestantes lutar contra o Príncipe das Trevas e, ato contínuo, assassinaram o convalescente por sufocamento, introduzindo em sua boca uma pedra de lima e oito colheres”.

É importante considerar o impacto da desinformação e preconceitos sobre a vida dos pacientes e na elaboração de políticas de saúde. Apesar das conquistas dos pacientes, que fazem tratamento com Cannabis medicinal, junto às instituições de saúde, também é preciso o reconhecimento popular e dos profissionais da saúde com essa opção terapêutica. Nesse sentido, a paciente Juliana Paolinelli faz um importante relato:

“Tenho sequelas neurológicas graves, devido a uma espondilolistese congênita, operada duas vezes, sem sucesso, e preciso da maconha, mas muito também tem que ser feito para combater o preconceito. Eu quero ser reconhecida pelo que sou: paciente de maconha. Não posso mais ouvir berros de vizinho na janela, gritando ‘maconheira’, ‘não tem vergonha, duas crianças em casa’ e outras coisas que nem vale a pena reproduzir. Dói duas vezes - a dor neurológica intratável e o preconceito. Duas grandes dores”.

Os medicamentos também possuem valor simbólico. Pode ser comum escutar adjetivações negativas utilizando os nomes de medicamentos como o Gardenal®, Rivotril® ou Pondera®. Como também existem doenças que são alvo de preconceitos, a maconha medicinal igualmente carrega estigmas sociais. É importante dialogar com a população para que a apropriação simbólica da maconha medicinal no imaginário popular não se confunda com preconceitos atribuídos aos dependentes químicos ou à legalização do uso recreativo da maconha, que possui sua legitimação como campo de lutas e diferentes complexidades. 

A imprensa seria um importante aliado na discussão do uso medicinal e recreativo de substâncias psicoativas. Entretanto, a questão das drogas ainda é tratada sob o olhar da criminalização e medicalização. A abordagem jornalística agrega diversos discursos, incluindo o discurso médico, mas geralmente fragmentado, e nem sempre criteriosa, para legitimar as notícias veiculadas. Na construção dessas notícias, buscam-se especialmente declarações polêmicas, como parte dos mecanismos que regem a mídia no tema das “drogas” (Fiore, 2002). Segundo Carlini-Cotrim (1995), a imprensa brasileira usa um tom alarmista e fabrica o "pânico de drogas"; e, com isso, amplificar o medo pelo sensacionalismo (Barros, 2007). 

A ação de organizar e lapidar a informação a partir de certos fenômenos sociais é feita de forma a influenciar o leitor a consumir a informação de forma mais rápida e sem questionamentos. Entretanto, essa mercadoria (informação) é a versão dos fatos, onde o leitor não tem controle das circunstâncias em que foi produzida ou o motivo pelo qual foi levada a público, não possibilitando questioná-la (Barros, 2007).

O desenvolvimento de medicamentos possui contribuições de diversas disciplinas e muitos anos de pesquisa e vigilância. Mesmo medicamentos centenários e exaustivamente estudados como o ácido acetilsalicílico (AAS) ainda possuem estudos buscando novas aplicações clínicas e suspeitas de novas reações adversas. Neste momento, é importante que os pacientes reivindiquem participação nas discussões e deliberações das agências e instituições de saúde, além de cobrar transparência e ética na publicação de notícias e artigos científicos, garantindo assim que os esforços vão ao encontro dos melhores interesses dos pacientes. 

Referências 

Carlini-Cotrim, B. 1995. A mídia na fabricação do pânico de drogas, um estudo no Brasil. In Comunicação & Política, v.1, n.2 

Barros, L.A. 2007. Os “penalizáveis”, a política, a mídia e a polícia diante do estado democrático de direito. Revista Asa-palavra de Brumadinho. N° 08, ano IV.Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 

Bertoli, C.B. Novas Doenças, Velhos Medos: a mídia e as projeções de um futuro apocalípticos. In: As Doenças e os Medos Sociais. Monteiro, Y.N. & Carneiro, M.L.T. São Paulo: Ed Fap-Unifesp, 2012. 

Fiore, M. 2002. Algumas reflexões a respeito dos discursos médicos sobre uso de "drogas". Texto apresentado na XXVI Reunião Anual da ANPOCS, realizada em Caxambú, 2002.

Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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