A etnofarmacologia e a etnobotânica - ciências que se ocupam, entre outras coisas, do registro de plantas medicinais utilizadas por diversas culturas – podem contribuir com a farmacovigilância. Alguns dados valiosos (toxicidade, contra-indicações, doses diferenciadas e interações) sobre as plantas com restrições de uso indicadas por ribeirinhos, índios e quilombolas do Brasil já foram publicados (1,2). Assim, índios brasileiros utilizam o sumo das folhas da Vernonia herbacea (Vell.) Rusby – (Asteraceae) na forma de escarificação, nas pernas de recém-nascidos para “andar mais cedo”; porém, a ingestão do mesmo sumo, levaria o nenê a óbito. As folhas de uma outra planta, a Rudgea viburnoides (Cham.) Benth. (Rubiaceae), são utilizadas por quilombolas no preparo de um chá para os casos de insônia. Porém, os entrevistados alertam para possíveis reações adversas, “embora este chá promova o sono rapidamente, diminui a pressão sanguínea e perda do desejo sexual”.
Mas como as diversas culturas descobrem tais peculiaridades das plantas?
Da mesma forma que na ciência acadêmica, as experimentações são realizadas por indivíduos específicos daquelas comunidades e que seguem alguns critérios para a seleção de novas plantas/animais como potenciais agentes terapêuticos: a) utilizam a tentativa e erro como uma das estratégias de busca de novas drogas; b) procuram observar o comportamento de certos animais após o consumo de uma determinada planta; c) utilizam os estímulos sensoriais com flores, folhas e bichos - dissecando-os, cheirando-os, e amassando-os que, somados à curiosidade nata desses povos, inicia a elaboração de correlações entre particularidades (morfológicas e organolépticas) de uma planta/animal e seus usos potenciais; d) finalmente, a intuição, que é uma forma de aquisição de conhecimento, abordada por Jung, e de extrema importância na seleção de novos recursos a serem testados.
Este processo é complexo e dinâmico, estando em contínua transformação, portanto não é constituído apenas pelo conhecimento dos antepassados. Nesta dinâmica, quando se suspeita que determinada planta tem um efeito prejudicial (venenosa/tóxica), este conhecimento é disseminado entre os indivíduos da comunidade. Por este motivo, os conhecimentos sobre as plantas abortivas, contraceptivas, venenosas para animais ou humanos, que são contra-indicadas a gestantes, crianças ou idosos, não estão restritos aos especialistas em cura (xamãs, curadores, benzedeiros, parteiras). Pelo contrário, estes especialistas difundem estes conhecimentos entre os membros da comunidade a fim de evitar danos à sua saúde individual ou coletiva. Desta forma, poderíamos traçar um paralelo entre esta prática e o propósito da farmacovigilância, quer seja, coletar, analisar e informar aos consumidores sobre possíveis reações adversas de certos medicamentos.
Portanto, a suspeita de que certas plantas possam ser tóxicas ou produzir reações adversas, baseando-se no registro detalhado dos seus usos nos levantamentos etnobotânicos e etnofarmacológicos, pode ser um instrumento auxiliar à farmacovigilância, na medida em que amplia o conhecimento sobre “o lado ruim” dos recursos vegetais da flora mundial.
1) Rodrigues, E.. Plants of restricted use indicated by three cultures in Brazil (Caboclo-river dweller, Indian and Quilombola). Journal of Ethnopharmacology. 111: 295-302, 2007.
2) Rodrigues, E.; Barnes, J. Pharmacovigilance of Herbal Medicines. Drug Safety, 36: 1-12, 2013.
Este editorial foi escrito, a convite, pela Dra Eliana Rodrigues e baseado em seus trabalhos na área.
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