Lideranças avaliam as áreas de pesca e os resultados dos estudos de impacto socioambiental durante assembleia da ACIBRN
Em experimento inédito, comunidades do Rio Negro criam projeto para pesca turística que não devasta nem natureza, nem cultura — mas gera ocupações, serviços e renda compartilhados
No site do Instituto Socioambiental
Uma iniciativa inédita no Brasil promete trazer emprego e renda para comunidades indígenas por meio da exploração do turismo de pesca esportiva sustentável. A Associação das Comunidades Indígenas do Baixo Rio Negro (Acibrn) e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) divulgaram, na semana passada, o termo de referência para firmar uma parceria com empresa especializada que se disponha a explorar a atividade no Rio Marié, afluente do Rio Negro, ao longo da Terra Indígena (TI) Médio Rio Negro I, no noroeste do Amazonas (veja o termo de referência).
A expectativa é que sejam gerados pelo menos 22 empregos diretos e em torno de R$ 170 mil anuais apenas em salários. Os números são significativos considerando as pouco mais de 1,2 mil pessoas que devem ser beneficiadas. Outra parte dos recursos oriundos dos pacotes turísticos será investida diretamente nas comunidades em melhorias de infraestrutura, por exemplo, em radiofonia, transporte e na construção de um laboratório de informática, além da manutenção de um sistema de monitoramento, fiscalização e gestão territorial com envolvimento de todas as comunidades, fortalecendo a Acibrn e coibindo invasões e atividades ilegais. A iniciativa prevê também a organização de uma rede de produtores das comunidades para abastecimento da atividade com frutos da floresta e das roças.
“Essa iniciativa foi construída com base nos anseios e propostas das comunidades e nas normas legais, de modo que ela não venha a inviabilizar as atividades do dia a dia dos indígenas, nem prejudicar sua cultura”, conta Marivelton Rodrigues Barroso, um dos diretores da Foirn. “Nós, os povos indígenas, temos o usufruto das TIs garantido pelo processo de demarcação. A partir daí, temos de fazer a gestão territorial e ambiental para que possamos desenvolver atividades que garantam também a autonomia econômica das comunidades”, finaliza.
“O caráter inédito dessa iniciativa se deve, antes de mais nada, à forma participativa com que foi construída. A partir do interesse das comunidades, foram envolvidos parceiros e os órgãos oficiais na elaboração de um modelo de turismo de pesca esportiva sustentável e de base comunitária”, analisa Camila Barra, antropóloga do Programa Rio Negro do ISA. “Quem for pescar no rio Marié estará contribuindo diretamente para a sustentabilidade das terras indígenas e qualidade de vida dessas comunidades, compreendendo que os povos indígenas do rio Negro são os responsáveis pela preservação e riqueza do importantíssimo patrimônio socioambiental, que é a Bacia do Rio Negro”, diz Barra.
O turismo de pesca esportiva no médio Rio Negro ocorre hoje de forma desordenada, sem estudos de capacidade de pesca, monitoramento ou fiscalização. A maior parte da região, que inclui os municípios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos, 400 quilômetros a noroeste de Manaus, é território indígena ainda sem reconhecimento formal. Apesar de injetar recursos e gerar empregos, ninguém assume as responsabilidades e custos socioambientais da atividade. Não há treinamento de guias, manejo de áreas de pesca ou tratamento de esgoto nas embarcações das mais de 30 empresas que operam na região. As comunidades indígenas e ribeirinhas recebem apenas o impacto em suas áreas de pesca de subsistência.
Projeto
O projeto da Acibrn tem como principal objetivo criar condições para a sustentabilidade do território indígena, com protagonismo e autonomia das comunidades. Longe de representar a solução de todos os problemas, o turismo de pesca viabilizará a manutenção de um plano de manejo e formação de uma equipe de agentes indígenas que fará o monitoramento e adequação continuada da atividade.
A iniciativa será desenvolvida com a modalidade do “pesque e solte”. Cada peixe pescado será pesado, medido e solto pelos guias indígenas. Realizada com o devido treinamento, essa técnica acarreta baixa mortalidade e não impactará os estoques pesqueiros. A proposta de exploração de cerca de 500 quilômetros do Rio Marié possibilitará o zoneamento e manejo das áreas de pesca.
“A análise dos dados coletados apontam uma situação inexplorada dos estoques de tucunaré no Rio Marié, semelhante a estoques virgens. O rio encontra-se em condição de excelência para a prática da pesca amadora, desde que obedecidas normas de manejo e uso sustentável recomendadas pelo estudo e em consonância com as dinâmicas de pesca das comunidades”, disse Daniel Crepaldi, analista do Ibama que coordenou os estudos ambientais para a iniciativa.
As pesquisas foram realizadas também pelos analistas ambientais James Bessa e Michel Machado. Os resultados sugeriram que a atividade se inicie de forma moderada, com oito pescadores por semana, estando previsto um rodízio de lagos e áreas de pesca a ser discutido pelos parceiros.
O termo de referência determina que a empresa parceira deve apresentar uma proposta de trabalho, com o valor pretendido do pacote turístico, a natureza dos gastos esperados, incluída a contratação de mão de obra, impostos e outros custos, a manutenção do sistema de monitoramento e fiscalização, além da sua previsão de lucro. O contrato deverá ter entre cinco e dez anos e estabelecer compromissos e responsabilidades socioambientais para o desenvolvimento da região.
A Acibrn e a empresa parceira definirão um calendário de reuniões e atividades preparatórias, agenda de treinamento, capacitações e expedições de monitoramento, que terão acompanhamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) para avaliação continuada do projeto.
“O importante é a gente poder ir a hora que dá vontade, passear, pescar. O turismo não pode mudar a nossa vida e tem de beneficiar as 14 comunidades da região e não só uma, como estava acontecendo”, disse Alberto Clemente, da comunidade São Pedro, durante as reuniões de levantamento realizado para a iniciativa.
Luta
O termo de referência é a etapa mais recente de uma luta de seis anos das populações indígenas para retirar os pescadores irregulares da área e regulamentar a atividade. Desde 2008, empresas de turismo vinham fazendo contratos informais com alguns indígenas, sem nenhuma fiscalização, documentação válida ou garantia para eles. A disputa entre firmas rivais levou lideranças locais a serem pressionadas e até ameaçadas.
Depois de uma série de denúncias da Acibrn e da Foirn, a Funai e o Exército fizeram, em 2012, uma operação para retirada de todos os pescadores ilegais da região. Em abril do ano passado, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão do turismo de pesca no Rio Marié e a realização de estudos de impactos socioambientais para aferir a viabilidade de regularizar a atividade.
A partir daí, iniciou-se uma parceria entre várias instituições para atender a recomendação, estabelecendo um processo de diálogo e esclarecimento das comunidades afetadas. O coordenador da Coordenação Regional do Rio Negro da Funai (CRRN-Funai), Domingos Barreto, assumiu a ação como prioritária e estratégica. Segundo a Funai, foram investidos cerca de R$ 150 mil para realização das oficinas e expedições que compuseram os estudos, além do combustível para as ações do Exército, que fez a segurança dos trabalhos e a fiscalização na foz do rio para coibir a entrada ilegal de empresas de pesca.
Equipe do exército em operação de fiscalização no Rio Marié
A realização dos estudos só foi possível devido às cooperações estabelecidas e da parceria e trabalho conjunto da Funai com as organizações indígenas. A Funai estabeleceu colaboração com o ISA para realização do levantamento sociocultural com base em entrevistas e oficinas nas 14 comunidades que fazem parte da ACIBRN (saiba mais).
Em cooperação com o Ibama, a Funai executou os estudos ambientais para avaliação dos estoques pesqueiros, o potencial do rio para a pesca esportiva e os possíveis impactos ambientais. A primeira etapa dos estudos contou também com o apoio da Prefeitura Municipal de São Gabriel da Cachoeira e da Secretaria de Estado para os Povos Indígenas do Amazonas (Seidn).
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