Cacique Damião: “Agora a terra é nossa, vamos viver tranquilos, sem ameaças” (SÔNIA ODDI)
Depois de quase 50 anos, Terra Indígena Marãiwatsédé é retomada por seus verdadeiros donos. ‘A terra é a mãe do índio’, diz o cacique Xavante Damião. Mas os brancos seguem à espreita
por Sônia Oddi e Celso Maldos, RBA
Nem os dias quentes de sol a pino desanimam a criançada de jogar a pelada. No intervalo das aulas, meninos e meninas correm para o centro da aldeia e atrás da bola. Aproveitam cada minuto com garra e determinação, como tem sido a luta dos Xavante de Marãiwatsédé nos últimos 50 anos. No final da tarde, dois times de meninas adolescentes, uniformizadas, treinam, correm, chutam forte – com os pés descalços –, gritam, comemoram e se divertem. O campinho com trave de pau fica na outra extremidade, próximo às casas construídas mais recentemente, de alvenaria, mas no estilo tradicional Xavante. As crianças menores assistem enquanto se distraem com outras brincadeiras.
O rio, a 500 metros da aldeia, é outra diversão. As crianças brincam e se banham, enquanto as mulheres lavam roupas e utensílios. A água usada na higiene pessoal de todos os moradores não é potável. O rio, assim como o Ró (denominação usada pelos Xavante para definir seu ecossistema) está “enfraquecido” devido ao desmatamento e às fazendas dos arredores. Para beber e cozinhar recorrem a um poço artesiano. Próximo ao poço, na entrada da aldeia, um gerador fornece energia para bombear a água e carregar os celulares, usados basicamente para armazenar e ouvir músicas, em especial de compositores da etnia. Sinal, só bem distante dali, já perto do posto da Fundação Nacional do Índio (Funai).
Ao cair da noite, no warã, numa roda iluminada pela fogueira, se reúnem homens adultos e anciãos para compartilhar acontecimentos importantes do dia que se vai. Os anciãos falam durante a maior parte do tempo, o silêncio e a atenção dos homens se fundem aos estalidos da madeira que queima. Um pouco antes do encontro, percorre a aldeia o canto dos wapté, meninos Xavante reclusos no Hö, casa dos adolescentes, onde permanecem por cinco anos, em processo de iniciação à fase adulta.
Um dos assuntos no warã é a reunião do dia seguinte sobre um perigo que paira sobre a aldeia e toda a área da terra indígena: as queimadas. “Conter o fogo hoje é mais difícil que antigamente, nas pastagens ele se espalha muito rápido”, diz o cacique Damião Paridzané. Estarão reunidos integrantes da Funai, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), bombeiros, brigadistas, anciãos, homens, mulheres, jovens. O objetivo é delinear ações de prevenção e combate. A preocupação é constante no período da seca, de maio a outubro. São temidos incêndios criminosos por parte de fazendeiros e posseiros insatisfeitos com a retomada da terra pela comunidade indígena. “Se inimigo nosso, de passagem, coloca fogo, queima tudo”, alerta Damião.
A preocupação tem fundamento. Em agosto passado, cerca de 30 mil hectares (área do tamanho da cidade de Belo Horizonte) foram consumidos por chamas de origem criminosa. A equipe de brigadistas do Prevfogo, do Ibama, localizou 120 focos de incêndio no interior da área indígena, a maioria perto de rodovias que a cortam ou circundam. O fogo ateado em várias partes e a precariedade das estradas, ou a falta delas, tornam o acesso à área, a fiscalização e o combate aos incêndios tarefas quase impossíveis.
Durante a reunião, o cacique pede por um carro e por estradas. “Temos de evitar o fogo, Ibama precisa ter apoio, parceria e aliança dos índios. Estamos pedindo para arrumar estrada dentro da área pois o tempo de seca está chegando”, insiste. A professora Carolina Rewaptu intervém: “O povo indígena tem muito conhecimento que hoje o branco tá estudando sobre meio ambiente e preservação. O branco fala que é educação ambiental, como preservar o meio ambiente; esse é o nosso conhecimento”.
Crianças por toda a parte. Em breve a área terá duas novas aldeias (CELSO MALDOS)
A mata de volta
Na única aldeia da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, vivem 1.130 indígenas, população considerada numerosa para os padrões da etnia. São 83 casas dispostas em forma de semicírculo. Tem também o Hö, a igreja, o posto de saúde, uma casa assistencial, a escola e a casa da ONG Operação Amazônia Nativa (Opan), todas fora do semicírculo. “Tá aumentando a população, crianças estão nascendo… Queremos encher a terra de Marãiwatsédé”, conta Damião.
Em breve devem ser fundadas duas novas aldeias, com 200 pessoas em cada. “Senão o pessoal vai continuar entrando. Temos de ocupar as pontas da terra indígena para proteger, e a cada ano fundar aldeia nova”, afirma o cacique. “Precisamos conseguir recursos para fazer estradas novas e pontes.” As estradas facilitarão o acesso e a fiscalização dos 165 mil hectares da TI Marãiwatsédé – área um pouco maior que a da cidade de São Paulo.
Fazendas e pastos era o que mais existia na terra Xavante antes da reocupação, iniciada em 2004 e finalizada em janeiro de 2013, quando terminou o primeiro processo de desintrusão (retirada) dos não índios. A terra que os índios receberam está muito diferente daquela que deixaram em 1966, quando foram colocados num avião da FAB e levados para a Missão Salesiana de São Marcos, em Barra do Garças.
Damião era menino, mas lembra. “Nossos pais andavam dentro da mata virgem, grande, perigosa, cheia de bicho bravo, porcão, anta, macaco, quati, cotia, tamanduá, caititu. Cheia de inhame, cheia de fruta de buriti e jatobá. E era tudo alimentação natural. Não existia arroz na alimentação Xavante antes do contato com o branco.”
Segundo dados de 2012, quase dois terços dos 165 mil hectares constituintes da reserva foram desmatados pela ação de madeireiras, ocupação de fazendeiros, posseiros, pelo fogo e até mesmo pelo surgimento de dois núcleos de povoamento no interior da área: o município Alto da Boa Vista e o distrito Estrela do Araguaia (ou Posto da Mata). A agressão fez da TI Marãiwatsédé a primeira no ranking das mais desmatadas do país. O cenário é de terra arrasada. E pasto, muito pasto, a perder de vista.
“Nos primeiros anos que entramos na aldeia foi bem difícil, só tinha pastagens. Sofremos muito debaixo do sol… mas plantamos manga, caju, laranja e hoje estamos trabalhando debaixo da sombra”, diz Damião, referindo–se às árvores que voltaram a crescer próximas às casas da aldeia, onde as mulheres fazem cestos de palha de buriti, adornos, esteiras, debulham o milho, pilam o arroz, fiam o algodão, selecionam sementes e preparam a pasta de urucum usada nas pinturas corporais.
Em Marãiwatsédé, plantam arroz, mandioca, milho tradicional, feijão xavante e frutas. Ainda em fase incipiente, estão pastoreando gado para, no futuro, terem mais uma fonte de alimento. “Hoje tem bastante milho que plantamos no ano passado”, diz o cacique, apontando para a pilha de espigas que se vê diante das casas. Mas ainda é pouco para suprir as necessidades nutricionais da população, que conta com o reforço da merenda escolar e também com a distribuição de sopa de uma entidade assistencial.
Rede de Sementes
Na cultura tradicional Xavante, o contato com não índios é feito especialmente pelos homens. Eles é que vão a Brasília e reúnem-se com representantes de governos e instituições locais. As mulheres e as crianças quase não falam o português. Mas são as mulheres de Marãiwatsédé que participam de um projeto para recuperação da vegetação nativa de seu território. O projeto, uma parceria com as ONGs Operação Amazônia Nativa e Assistência Social Nossa Senhora da Assunção (Ansa), consiste em coletar sementes em incursões na mata, selecionar, armazenar e promover o plantio das espécies.
Carolina Rewaptu é uma das professoras da escola estadual da aldeia (EEI Marãiwatsédé). Formada em Ciências Sociais na Faculdade Indígena Intercultural da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), ela diz que na cultura Xavante as mulheres não têm espaço para entender o mundo do branco. E vê com muita satisfação a participação feminina no projeto Rede de Sementes do Xingu. “Vamos reflorestar, melhorar a qualidade de vida, melhorar a renda… A gente pensou no futuro”, diz.
“A Opan faz oficinas, cursos e as mulheres começaram a participar da vida da comunidade. Na época das expedições a gente colhe e na época da chuva a gente planta. Queremos fortalecer a cultura de manejo tradicional que o povo Xavante está perdendo em outras regiões e a gente tá resgatando.”
Segundo a professora, em muitas localidades a maioria das pessoas não quer mais cultivar a terra, “como em São Marcos, Água Boa, Campinápolis, onde temos parentes”.
Alimentação saudável
Carolina Rewaptu atenta ainda para a importância da recuperação da alimentação tradicional, com milho xavante, feijão xavante, bolo de milho, “que antigamente deixava a comunidade mais forte e saudável”. O manejo é direcionado a reflorestar a área de pasto, ter os animais mais próximos e retomar a prática de uma economia sustentável.
“O alimento industrial que vem da cidade tá dando muito diabetes, a gente quer controlar… Queremos que as crianças conheçam os alimentos que existiam na nossa infância: chichá-do-cerrado, pequi, coquinho-do-cerrado, inajá, buriti… O ano que vem já vai dar porque a gente plantou. Tem também as plantas medicinais: pé-de-anta, algodoeiro, raízes… O segredo delas é transmitido pelas anciãs para apenas um filho e uma filha. Elas têm muito conhecimento.”
O calendário tradicional (Marcadores de Tempo) é um dos conteúdos das aulas de Agroecologia e Sociologia que Carolina ministra na escola e faz parte de um currículo específico da educação local. Mas o responsável, na prática, pelos Marcadores de Tempo é o ancião Francisco, o mais velho da aldeia.
“Ele comanda o tempo de todos os rituais e as atividades ligadas ao calendário, e os jovens têm que participar”, conta Carolina. “Somos descendentes de um povo que lutou muito nesses anos, temos que amarrar essa história e deixar uma visão para os nossos netos ocuparem a região Marãiwatsédé. Cultivar a terra, produzir, melhorar a qualidade de vida. Esse é o futuro.”
Os ritos, de suma importância na dinâmica da sociedade Xavante, não cessaram nem quando eles ficaram dez meses, entre 2003 e 2004, acampados na beira da estrada, esperando a hora de reentrar na área onde estão atualmente. Do outro lado, estavam os posseiros, armados e sustentados por fazendeiros. “Quando os posseiros fizeram a barreira, os jovens tiveram coragem. Tem de aprender coragem desde pequeno… Acompanhar os guerreiros sem medo. A gente tem que conservar os jovens participando para que não percam a cultura”, explica o cacique Damião, relembrando a experiência da guerra vivida.
Ele reconhece que o apoio do governo federal foi condição decisiva para que os índios voltassem à terra onde estão seus ancestrais. Damião comemora, sonha. “Agora a terra é nossa, vamos viver tranquilos, sem ameaças. E enquanto eu for vivo, nunca vou esquecer… Considero como irmãos a Dilma, o Gilberto Carvalho (ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República), o Paulo Maldos, o Nilton Tubino (ambos da Secretaria de Articulação Social da Secretaria-Geral), o pessoal do Ministério Público, e de outros países que me apoiaram no dia da Rio+20. Com paciência se ganha tudo.”
Posto da Mata agora é Monipá
O posto de gasolina no cruzamento das rodovias BR-242 e BR-158 não existe mais. Tampouco comércios, residências, igrejas, escolas, farmácias. Foi tudo demolido. Sedes de fazendas, sítios, currais e outras edificações da zona rural. O palco da “operação de guerra”, na classificação dos ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, é o distrito de Posto da Mata, município de Alto da Boa Vista.
As demolições, intensas em abril e maio, estão em fase final, diz Aluísio Azanha, diretor de Proteção Territorial da Funai. A Justiça determinou a demolição das benfeitorias de origem não índia, depois que em janeiro cerca de 40 posseiros, insuflados por políticos e fazendeiros da região, voltaram a ocupar Posto da Mata, um ano depois da retirada dos não índios, quando a terra foi devolvida oficialmente aos Xavante.
Em meados de 2012, a Justiça determinou a desocupação do território pelos “intrusos”. Iniciou-se então o que foi chamado de desintrusão. A ação foi planejada por uma equipe do governo, envolvendo ministérios, Secretaria-Geral da Presidência, Funai, Ibama, Polícia Federal, Exército, Força Nacional, entre outros, visando a um processo pacífico. Por má-fé, a Justiça determinou a não indenização aos invasores, que haviam ocupado uma terra que sabiam pertencer aos índios.
Entre os habilitados a ser atendidos por programas sociais, o Incra cadastrou 235 famílias. As 97 que moravam em Posto da Mata foram assentadas no Projeto Casulo (Minha Casa, Minha Vida). Algumas aceitaram ir para o assentamento Santa Rita, em Ribeirão Cascalheira. Outras preferiram ir para a casa de parentes e conhecidos.
A movimentação, segundo o prefeito Leuzipe Domingos, causou sérios problemas sociais. A cidade não tem escola e atendimento de saúde para suprir as demandas. Ele também critica as condições em que vivem as famílias assentadas no Projeto Casulo. “Estão debaixo de lona, ou em casas de pau, sem energia e água, a prefeitura tem que mandar caminhão-pipa… O governo federal só ajudou a cascalhar as ruas”, reclama.
O Incra estuda uma nova área no município de Santa Teresinha, para assentar as cerca de 150 famílias cadastradas, que “moram de favor”.
Durante os quase 50 anos de ocupação ilegal, a terra indígena (conhecida também como Gleba Suiá Missú) foi violentamente desmatada (70% do território) para dar lugar a fazendas de plantação de soja transgênica, milho, arroz e criação de gado. A fase mais intensa se deu a partir de 1992, durante os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Em maio, o Ministério Público Federal denunciou 27 fazendeiros, condenando-os a pagar multa de R$ 42 milhões por crime ambiental. O valor a ser arrecadado será usado para reflorestar uma área de 10 mil hectares (1 hectare equivale a aproximadamente 1 campo de futebol) da terra Xavante. O desembargador aposentado Manoel Ornellas de Almeida, o empresário do agronegócio Edi de Oliveira Vieira, o atual prefeito de Alto da Boa Vista e muitos outros que integram a Associação dos Produtores Rurais da Área Suiá Missú (Aprosum) estão entre os denunciados.
A longa luta dos Xavante, a firme ação da Justiça e a atuação conjunta de vários órgãos federais não garantem ainda um futuro tranquilo aos índios. Azanha vê risco de novas invasões. “Não podemos esquecer que invasões e conflitos foram capitaneados por aqueles que insistem em se opor às demarcações”, diz, aludindo à bancada ruralista. A Aprosum tem como advogado Luiz Alfredo Feresin de Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), referência dessa bancada.
Ele tem razão. Em março, o presidente da associação, Sebastião Prado, prometeu iniciar um movimento nacional, partindo da Suiá Missu, para defender a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Congresso o poder de decisões sobre reservas indígenas.
Outro projeto defendido pelos ruralistas é o PLP 227, que abre Terras Indígenas à exploração do agronegócio, empresas de energia e mineração.
O clima de disputa faz com que servidores da Funai permaneçam na área no mínimo até as eleições de outubro. O fato é que Posto da Mata não existe mais. Voltou a se chamar Monipá, território sagrado para a comunidade Xavante.
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