Sementes de arroz / Foto de Martin Godwin
Camila Nobrega*
Com sementes de arroz nas mãos, a agricultora Emilia Alves Manduca explica a outros pequenos produtores como a comunidade onde ela vive, no Mato Grosso, região Centro-Oeste do Brasil – escapou da pobreza e tornou-se autossuficiente. Ela viajou mais de dois dias em um ônibus para participar do III Encontro Nacional de Agroecologia, em Juazeiro, na Bahia. Com um sorriso largo no rosto, a agricultora conta que, nos últimos seis anos, eles desenvolveram mais de 30 tipos de culturas sem uso de nenhum agrotóxico no assentamento Roseli Nunes, na cidade de Mirasol D’Oeste, cuja produção orgânica é certificada pelo Ministério da Agricultura, como parte do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra brasileiro.
“Eu trabalhava em uma grande fazenda, fazia aplicação de pesticidas. Tive que ir ao hospital duas vezes por causa dos efeitos colaterais, intoxicada pelo veneno”, disse Emília.
No Centro-Oeste do Brasil, onde fica o assentamento a que a agricultora se refere, predominam os cultivos de soja e milho, em extensas áreas de monoculturas. Em 2013, a região exportou um volume recorde das duas culturas, atingindo a marca de 78.5m toneladas. A maior parte, entretanto, não é utilizada para alimentar a população. O destino principal é a exportação, para produção de biocombustíveis – e para alimentação de animais que abastecem cadeias de produção de alimentos nos países desenvolvidos.
Em meio a esse cenário, Emília Manduca vê as sementes de arroz como um símbolo da força e resistência da agricultura familiar. Essas sementes foram fruto de uma troca feita com agricultores de uma comunidade quilombola que as selecionaram por mais de quatro gerações. (São o que se chama de sementes criolas, como explica esta publicação – http://www.agroecologia.org.br/index.php/publicacoes/publicacoes-da-ana/publicaoes-da-ana/sementes-registradas-pdf/detail). São referências que fazem parte de um movimento mundial protagonizado pela América Latina, a Agroecologia.
Em resposta aos problemas causados pelo agronegócio, incluindo a contaminação dos recursos naturais, os aumentos nos preços dos alimentos, a infertilidade do solo e problemas de saúde causados em trabalhadores do campo e em consumidores, a agroecologia surgiu como uma ponte entre o conhecimento científico, a agricultura tradicional e os movimentos sociais.
A agricultura familiar, modelo no qual a agroecologia se baseia, envolve cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês). E a produção proveniente da agricultura familiar produz, em relação ao modelo do agronegócio, mais alimentos. Na América do Sul, este modelo de agricultura ocorre em apenas 18% do território, mas é responsável pela produção de cerca de 40% dos alimentos.
María de Los Angeles é representante equatoriana do Movimento Agroecológico da América Latina e do Caribe (Maela). Ela afirma que a produção convencional não é sustentável: além de degradar o solo, é baseada em combustíveis fósseis, que poluem e se tornarão cada vez mais escassos.
“A agroecologia recupera elementos de cada território e conhecimentos desenvolvidos pelos agricultores há milhares de anos. Em vez da monocultura, ela é uma busca pela preservação da biodiversidade e da própria espécie humana.”
Em sua opinião, esse sistema é importante para acabar com a desnutrição e garantir alimentos de qualidade para todos. Mas há obstáculos. “Temos uma carência de informações sobre agroecologia”, diz Los Angeles.
Pequenos agricultores sofrem para manter-se como parte da cadeia de abastecimento. Não faltam exemplos disso. No Equador, entre 2002 e 2003, a maior cadeia de supermercados decidiu fazer uma substituição no seu quadro de fornecedores, que concentrou ainda mais o mercado. Trocou 2.500 pequenos produtores por apenas 250 produtores maiores (PDF).
Na outra ponta, busca-se o fortalecimento das redes de produtores – e também de consumidores. A rede agroecológica de Azuay, também no Equador, reúne 19 grupos de pequenos agricultores que comercializam conjuntamente para feiras e mercados. Um estudo do grupo aponta um crescimento da agricultura agroecológica, passando de 23 mil hectares (56,810 acres) em 1996 para 403 mil em 2008, contabilizando 395 milhões de dólares e registrando a criação de 172 mil postos de trabalho (PDF).
Há uma batalha pela informação. Campanhas feitas por multinacionais do agronegócio negam que o modelo de produção com agrotóxicos afeta a saúde das pessoas e argumentam a necessidade de uma produtividade elevada, ignorando estudos que apontam como a produção de alimentos na América Latina e no Caribe pode atender facilmente as necessidades da população da região. Já se sabe que o problema da fome não é por falta de alimentos, mas falta de acesso à terra ou a recursos para compra de alimentos pelos mais pobres.
“A agroecologia se baseia na garantia de terra para os camponeses, a diversidade de espécies, o trabalho digno e a soberania alimentar, entre outros princípios. Traz elementos da pesquisa acadêmica para melhorar a produção no campo, sem a necessidade de usar insumos químicos. E é diferente do conceito da produção orgânica, que pode continuar ocorrendo sob o mesmo modelo que o agronegócio industrial, apenas sem usar agrotóxicos. Muitas vezes é feita por poucas pessoas para poucos consumidores que podem acessar”, afirmou Paulo Petersen, coordenador da ONG AS-PTA.
O chileno Miguel Altieri, professor de Agroecologia da Universidade de Berkeley e membro da Sociedade Científica Latino Americana de Agroecologia chama o movimento de uma nova revolução agrária, que se opõe à Revolução Verde. “Agroecologia é a única opção viável para satisfazer as necessidades alimentares da região neste cenário de aumento dos preços do petróleo e a mudança climática global.”
(Este artigo traz uma perspectiva do que Altieri chama de “revolução agroecológica” na América Latina. Como a expansão da agroexportação e biocombustíveis continua marca a história recente da região, enquanto o planeta continua registrando taxas de aquecimento global, os conceitos de soberania alimentar e agroecologia baseados em ganho de produção agrícola chamam cada vez mais atenção)
*A jornalista Camila Nobrega é editora do Canal Ibase e colaboradora da Global Development Professionals Network, editoria do jornal The Guardian voltada para a reflexão sobre o desenvolvimento
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