terça-feira, 2 de setembro de 2014

Estresse precoce pode agravar depressão na vida adulta, indica pesquisa


Pesquisa feita na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP aponta que maus-tratos na infância e na adolescência levam a alteração em sistema psiconeuroendócrino (NIH)

Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) verificou que o chamado estresse precoce – termo que engloba tanto traumas e maus-tratos físicos como abusos sexuais e emocionais sofridos por crianças e adolescentes – pode agravar quadros de depressão na vida adulta.

Coordenada por Mario Juruena, professor no Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da FMRP, a pesquisa detectou registros permanentes no cérebro de quem passou por esse tipo de estresse e estabeleceu um meio de identificar a relação entre causa e efeito em diferentes tipos de depressão.

Em parceria com o professor Anthony Cleare, do King’s College London, instituição britânica que mantém acordo de cooperação com a FAPESP, Juruena identificou alterações no eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA) – parte do sistema neuroendócrino que percebe as situações causadoras de estresse – como resultado de estresse precoce em pacientes com psicopatologias depressivas na vida adulta.

Desenvolvido em colaboração com a Seção de Neurobiologia dos Transtornos de Humor da Unidade de Doença Afetiva do Instituto de Psiquiatria do King’s College, o estudo avaliou a associação entre abusos físico, sexual e emocional e negligências na infância e alterações específicas no eixo HPA e na função de receptores de hormônios responsáveis pelo metabolismo celular. O objetivo foi analisar desequilíbrios provocados pelo estresse precoce em dois subtipos prevalentes de depressão – a atípica e a melancólica.

“Buscamos avaliar quadros de depressão atípica e melancólica em adultos com dificuldade de resposta a tratamentos, o que tende a ocorrer com mais frequência quando há histórico de estresse precoce”, disse Juruena à Agência FAPESP. Segundo ele, estudos anteriores e a experiência em atendimento clínico indicam que, em geral, 50% dos casos de depressão não respondem ao tratamento.

Os pacientes estudados foram divididos em três grupos distintos. Em todos foram medidos os níveis de secreção do hormônio cortisol e suas correlações com os receptores.

O primeiro grupo foi formado por pessoas com histórico de estresse precoce e quadros de depressão. O segundo, por pessoas com quadros de depressão, porém sem histórico de estresse precoce. No terceiro (grupo controle), foram reunidos indivíduos saudáveis sem histórico de maus-tratos nem sintomas de depressão.

Em todos, foi aplicado o Childhood Trauma Questionnaire (CTQ), um tipo de questionário sobre traumas na infância com perguntas sobre abusos sexual, físico e emocional, negligência física e negligência emocional.

Também foi feita uma avaliação das funções dos receptores do hormônio cortisol em cada um dos sujeitos, correlacionando os resultados psicométricos da gravidade da depressão e do estresse com os resultados neurobiológicos do eixo HPA e dos receptores.

Aos pesquisados, também foram ministradas substâncias corticoides, como fludrocortisona, prednisolona, espironolactona e dexametasona. Essas substâncias interagem com os receptores de cortisol de modo diferente e seletivo e indicam em que receptor o paciente apresenta disfunções do eixo HPA, por meio da secreção de cortisol – que foi avaliado em amostras de saliva.

Oitenta por cento dos pacientes do primeiro grupo receberam o diagnóstico de depressão atípica. Entre os sintomas desse tipo de depressão estão a hiperfagia – tendência a comer em demasia, sobretudo doces e carboidratos – e a hipersonia – propensão para dormir muito. Eles são resultado de uma liberação muito baixa de cortisol pelo eixo HPA.

Por outro lado, a maioria dos pacientes do segundo grupo foi diagnosticada com depressão melancólica. Nesse caso, o desequilíbrio no eixo HPA provoca a liberação de altos índices de cortisol, levando a quadros de insônia e perda de apetite.

Genética e epigenética

De acordo com o professor da FMRP, a pesquisa indicou que o estresse precoce exerce influência sobre as pessoas consideradas suscetíveis a apresentar um dos subtipos de depressão na vida adulta.

Mesmo passando por eventos traumáticos na infância e adolescência, há pessoas que não desenvolvem quadros depressivos, pois não apresentam predisposição genética à depressão, “tendo algum tipo de resiliência”, disse Juruena.

“Os quadros de depressão apresentam uma interação entre a vulnerabilidade do indivíduo e o ambiente adverso em que ele viveu ou vive. Se um indivíduo com predisposição genética à depressão sofrer maus-tratos, os riscos de que desenvolva a doença aumentam muito. Isso ocorre por causa de fatores epigenéticos, ou seja, pela influência de fatores externos [ambientais, sociais, econômicos] na constituição física e psíquica dos indivíduos”, disse.

Segundo Juruena, embora a síntese de proteínas esteja relacionada à herança genética de cada pessoa, crianças que passam por estresse precoce têm modificadas suas características de liberação de proteínas. Fatores ambientais exerceriam o dobro de influência nos quadros depressivos, em comparação com fatores genéticos.

“Quando a criança sofre estresse precoce, essa informação impacta o eixo HPA, onde deixa cicatrizes. Na vida adulta, isso torna mais grave os casos de depressão. A pessoa deprimida passa a ter a sua condição físico-emocional determinada por essa alteração, apresentando oscilações nos níveis hormonais, como o de cortisol, para mais ou para menos, dependendo do subtipo de depressão”, disse Juruena.

Trabalhos feitos pelo pesquisador apontam que cerca de 70% dos pacientes com depressão têm histórico de maus-tratos. Além de maior resistência aos tratamentos, também apresentam maiores índices de recaída e de comorbidade.

“A discussão em torno de leis que proíbam maus-tratos contra crianças considera abusos físicos, mas trata pouco dos abusos emocionais, que envolvem destratar, humilhar e agredir uma criança verbalmente. A agressão com palavras, no entanto, também deixa cicatrizes, impulsionando o desenvolvimento de patologias na vida adulta, como pudemos verificar na pesquisa”, disse Juruena.

“O abuso e as negligências emocionais no desenvolvimento de uma criança são os fatores que mais causam impacto na gravidade da depressão”, disse.

Estudo compartilhado

Para Juruena, que realizou doutorado e pós-doutorado no Instituto de Psiquiatria do King’s College, o conhecimento desenvolvido sobre depressão na Unidade de Doenças Afetivas da instituição favoreceu o aprimoramento das pesquisas na FMRP.

“A depressão é uma doença muito resistente ao tratamento, com fatores que podem influenciar a gravidade dos sintomas e gerar cronicidade. Esse estudo nos permitiu chegar a dados que ajudam a corroborar tais evidências, já apontadas em pesquisas anteriores realizadas em colaboração com a equipe do professor Anthony Cleare”, disse.

Recentemente, segundo Juruena, outras pesquisas no Brasil também abordaram o tema, incluindo trabalhos feitos no grupo do Programa de Assistência, Ensino e Pesquisa em Estresse, Trauma e Doença Afetiva (EsTraDA), também na FMRP-USP, do qual faz parte. Mas o pesquisador destaca que são necessários novos estudos para elucidar os mecanismos envolvidos na ligação entre o estresse precoce e quadros depressivos na vida adulta.

Resultados da pesquisa foram publicados em diversas revistas:

Por Samuel Antenor, da Agência FAPESP, no EcoDebate, 02/09/2014
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