21 de julho de 2015
Karina Toledo, do Rio de Janeiro | Agência FAPESP – A diferença entre o remédio e o veneno muitas vezes está na dose, diz o ditado. No caso da cafeína, pode estar também na idade de quem a consome. Enquanto em indivíduos adultos a substância parece proteger o cérebro de danos causados pelo estresse que podem desencadear quadros depressivos, na vida intrauterina pode atrapalhar o desenvolvimento cerebral e representar um fator de risco para doenças como epilepsia.
As conclusões são de estudos feitos com camundongos e apresentados durante a nona edição do Congresso Mundial do Cérebro (IBRO 2015), realizado no Rio de Janeiro de 7 a 11 de julho.
Na pesquisa coordenada há cerca de 15 anos por Rodrigo Cunha, da Universidade de Coimbra, em Portugal, o objetivo é investigar em que medida a cafeína pode prevenir o desenvolvimento de depressão, doença que afeta cerca de 15% da população e representa a primeira causa de incapacitação segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O grupo, que envolve colaboradores da Alemanha, Estados Unidos e Brasil, sujeitou ao longo de três semanas dois grupos de camundongos a situações de estresse crônico e imprevisível. Um dos grupos começou a receber duas semanas antes do experimento cafeína na água de beber. Testes mostraram que a concentração da substância encontrada na corrente sanguínea dos animais era equivalente à de um humano adulto que consome entre duas e três xícaras de café por dia.
“Tentamos reproduzir no modelo animal aquilo que todos nós humanos sentimos naquele momento da vida em que tudo vai mal. O carro quebra, perde-se o emprego, termina-se um relacionamento amoroso, descobre-se que um amigo tem câncer. Tudo é uma desgraça e, muitas vezes, esse conjunto de situações dá origem a um quadro depressivo”, contou Cunha em entrevista à Agência FAPESP.
No modelo animal, o estresse era induzido por situações como agitar a caixa onde estavam os camundongos durante alguns segundos, privá-los de comida temporariamente, dar banhos de água fria ou pequenos choques nas patas.
Uma série de testes bioquímicos, neuroquímicos, eletrofisiológicos e comportamentais foi feita após o período do experimento para avaliar fatores indicativos de depressão nos dois grupos.
“Como o animal não pode dizer se está ou não deprimido, avaliamos seu comportamento com uma série de testes já bem padronizados”, contou Cunha.
Um dos testes consiste em colocar o animal em uma situação de nado forçado por alguns minutos. Em condições normais, o roedor tenta escapar a todo custo. Um camundongo deprimido, porém, costuma desistir rapidamente e começa a boiar. “É como se ele esperasse que a vida resolvesse seu problema”, comentou Cunha.
Roedores deprimidos também demonstram menos interesse em se esforçar para alcançar uma bebida açucarada (perda de prazer ou anedônia), déficit de memória e tornam-se mais retraídos em momentos de interação social.
Também foi medido o nível de corticosteroide – o equivalente em animais ao cortisol, o hormônio do estresse – de algumas proteínas que costumam estar alteradas em quadros depressivos e o fluxo de informações em determinados circuitos neuronais.
“Observamos que a informação continua fluindo normalmente, o que muda na depressão é o sentido que se dá à informação que chega. A capacidade de se adaptar rapidamente em função de pistas externas parece perdida nos animais deprimidos”, contou Cunha.
Com base nos resultados dos testes, os pesquisadores concluíram que o grupo tratado com cafeína apresentou uma quantidade significativamente menor de sintomas depressivos em relação ao controle. O passo seguinte foi caracterizar o alvo molecular responsável por esse efeito observado.
“Nossos estudos anteriores já mostravam que a cafeína se liga a um receptor celular chamado A2A para adenosina e queríamos demonstrar que manipulando farmacologicamente ou geneticamente esse receptor conseguiríamos interferir nos resultados”, disse o pesquisador.
Existente em grande quantidade nos neurônios, o receptor A2A se liga a uma substância chamada adenosina, um dos componentes da molécula de ATP (adenosina trifosfato), que é essencial para o metabolismo energético.
“Quando há uma situação de estresse ou qualquer disfunção no sistema nervoso, ocorre um maior consumo de ATP, consequentemente uma maior liberação de adenosina. A adenosina em excesso se liga aos receptores A2A e desencadeia um efeito em cascata que faz esse sistema trabalhar ainda pior”, contou Cunha.
Como a cafeína também se liga ao receptor A2A, acrescentou o pesquisador, ela bloqueia a ligação com a adenosina, impede o efeito em cascata e reequilibra o sistema. “Por isso, quando estamos cansados e consumimos cafeína, por exemplo, nos sentimos mais alerta. Ela também aumenta a tolerância a vários sinais que podem causar hiperirritabilidade no indivíduo”, explicou Cunha.
Em um dos experimentos, o grupo administrou ao mesmo modelo animal o fármaco istradefilina, que também inibe a ação do receptor A2A e tem sido usado no tratamento da doença de Parkinson. Nesse caso, também foi observado no grupo de camundongos tratados um menor desenvolvimento de sintomas depressivos em comparação ao controle.
“Fizemos o nocaute do gene que expressa o receptor A2A para mostrar que isso conferia o mesmo efeito protetor da cafeína. Fizemos também o nocaute apenas em neurônios principais para mostrar que o efeito que observamos está presente diretamente no neurônio e não depende de interação com outros sistemas”, explicou.
Os resultados mais recentes da pesquisa foram divulgados em maio na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Na avaliação de Cunha, os achados corroboram o que já havia sido demonstrado em estudos epidemiológicos com humanos.
“Um deles acompanhou ao longo de vários anos mais de 50 mil enfermeiras no Havaí, uma ilha onde todos têm estilo de vida e alimentação muito semelhante. Concluiu-se que aquelas que consumiam cafeína apresentaram menor necessidade de ajuda do ponto de vista psiquiátrico”, contou Cunha.
Ele ressalta, porém, que novos estudos precisam ser realizados para validar o receptor A2A como um alvo terapêutico em humanos.
“O grande problema de transpor essa informação para o homem é que somos sempre mais complicados. O receptor é uma proteína formada por uma cadeia de aminoácidos e essa cadeia pode ter pequenas variações de acordo com cada indivíduo. Isso é o que chamamos de polimorfismo genético e é o que faz as pessoas serem mais ou menos sensíveis à cafeína”, explicou Cunha.
O grupo de Coimbra também investiga se a inibição do receptor A2A pode prevenir as modificações cognitivas associadas a doenças como Alzheimer.
“Em estudos anteriores com modelos animais de Alzheimer, vimos que, quando se iniciam os problemas mnemônicos, o número de receptores A2A aumenta consideravelmente. Isso parece ser uma das causas da patologia e representa também uma oportunidade de tratamento”, disse.
O outro lado
No trabalho coordenado por Christophe Bernard no Institut de Neurosciences des Systèmes (INS), ligado à Aix-Marseille Université da França, foram avaliados os efeitos do consumo da cafeína durante a gestação e a lactação em camundongos.
Também nesse caso, as fêmeas de camundongo foram habituadas a ingerir cafeína na água, em concentrações equivalentes a duas ou três xícaras de café por dia. Depois era feito o cruzamento e mantida a oferta de cafeína durante a gestação e o período de lactação.
Os resultados foram publicados em 2013 na revista Science Translational Medicine.
“Observamos que a cafeína causa um atraso na migração para o hipocampo [região cerebral relacionada com memória e percepção espacial] de um grupo específico de neurônios gabaérgicos [que secretam ácido gama-aminobutírico]. Eles atingem o alvo, mas com um atraso de vários dias. Isso atrapalha o processo de construção do cérebro e causa um desequilíbrio”, contou Bernard à Agência FAPESP.
O efeito foi observado tanto na análise do tecido cerebral de camundongos quanto de macacos, que apresentam maior semelhança com os humanos.
Análises in vitro mostraram que, quando a cafeína se liga ao receptor A2A nos neurônios, a velocidade de migração é reduzida em 50%. “Isso sugere que a adenosina seja necessária para o processo de migração e essa é uma das coisas que estamos investigando atualmente”, contou.
O grupo francês também avaliou os efeitos desse atraso na migração neuronal nos filhotes e, posteriormente, nos camundongos adultos.
“Em decorrência do desequilíbrio causado pelo atraso dos neurônios, os filhotes se tornaram mais suscetíveis a sofrer de epilepsia e a apresentar convulsões febris. Apresentam um limite de tolerância ao aumento da temperatura corporal cerca de 1,5 grau Celsius menor”, contou Bernard.
Ao avaliar os camundongos já adultos, os cientistas notaram que outro grupo diferente de neurônios gabaérgicos estava faltando, causando, novamente, um desequilíbrio no funcionamento do cérebro.
“Testes comportamentais mostraram que a memória espacial nesses animais é menos eficiente que as dos camundongos controle. É um efeito sutil, mas está presente. Claro que se a cafeína estivesse causando algo realmente ruim no cérebro todos nós já saberíamos”, disse.
Bernard defende a necessidade de os profissionais de saúde investigarem o consumo materno de cafeína durante a gestação quando atenderem em hospitais crianças com crises convulsivas. “Dessa forma poderíamos tentar ver se há também em humanos uma correlação entre consumo de cafeína e aumento na probabilidade de ter epilepsia.”
Limite de segurança
Presente não apenas no café como também em diversos tipos de chá, refrigerantes, chocolates e bebidas energéticas, a cafeína é de longe a substância psicoativa mais consumida no mundo e não há consenso sobre qual seria o limite diário de segurança.
Segundo relatório publicado em maio pelo comitê científico da European Food Safety Authority (EFSA), o consumo de até 400 mg ao dia (cerca de 4 xícaras de café) por indivíduos adultos com em média 70 kg e que não estejam gestantes não representaria riscos significativos de saúde. Para mulheres grávidas ou lactantes, o valor supostamente seguro seria de 200 mg ao dia.
Bernard defende a necessidade de realizar estudos clínicos que confirmem se a quantidade de 200 mg ao dia é de fato segura para o desenvolvimento cerebral durante a gestação ou se pode representar um fator de risco para o desenvolvimento de patologias na vida adulta.
“No trabalho de 2013, avaliamos apenas o hipocampo. Agora estamos olhando o cérebro mais globalmente e vendo que outras regiões, como o córtex, também são afetadas, pelo menos em camundongos. Em um modelo animal de Alzheimer, estamos investigando se o consumo de cafeína na gestação pode facilitar de alguma forma o desenvolvimento da doença”, contou.
Estudos foram apresentados durante a 9ª edição do Congresso Mundial de Cérebro, realizado no Rio de Janeiro de 7 a 11 de julho (imagem: Wikimedia Commons)
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