Logo após a abertura, o seminário Maconha: usos, políticas e interfaces com a saúde e direitos contou com uma exposição do sociólogo Julio Calzada, ex-secretário-geral da Junta Nacional de Drogas do Uruguai no governo do presidente José Mujica. Ao discorrer sobre a regulação da cannabis no país vizinho, ele lembrou que o modelo uruguaio não significa um “liberou geral”, mas sim a regulação da droga, por meio da ação governamental. Para Calzada, “nunca houve e nem nunca haverá” sociedade humana em que não se observe o uso de drogas, seja de que tipo forem. Em sua opinião, falar de drogas é falar sobre saúde e direitos. “A política é um acordo sobre o qual se funda o regime republicano. Cada indivíduo é livre para ter a sua própria moral religiosa, mas esta não pode ser a da república, porque do contrário criamos um Estado confessional”. Ao final, ele respondeu perguntas da plateia a respeito da extensão da regulação para outras drogas, sobre os efeitos na criminalidade e outros temas.
Para Calzada, “nunca houve e nem nunca haverá” sociedade humana em que não se observe o uso de drogas, seja de que tipo forem (Foto: Peter Ilicciev)
Repetindo uma frase que já se tornou comum, Calzada disse que “a guerra às drogas fracassou”. Segundo o sociólogo, o autoritarismo dessa iniciativa não resolveu o problema e nas últimas décadas o mundo viu explodir o aumento da produção e do consumo. “Vivemos uma época em que existe uma busca obsessiva pelo prazer. É a cultura do efêmero, do instantâneo e do qual as drogas fazem parte. Até o fim do século 19, 90% do uso de drogas ocorria por meios religiosos e medicinais. Houve uma inversão e atualmente cerca de 90% do uso se dá de maneira recreativa. É simplismo acreditar que haverá um país sem drogas”, assinalou Calzada, lembrando que é importante pensar de forma aberta e integral, acompanhando o desenvolvimento e a evolução das sociedades.
O ex-secretário observou que uma política de regulação de drogas precisa estar necessariamente acompanhada de políticas públicas na área da saúde. Além de levar em consideração aspectos culturais, econômicos, geopolíticos e políticos. “O Uruguai começou a discutir essa questão em 2005 e desde então desenvolvemos uma política inovadora. Propusemos um debate amplo e livre sobre o tema à Comissão de Estupefacientes da ONU, em 2009, mas não conseguimos avançar o suficiente. No entanto, após a regulação uruguaia, obtivemos um feito: em 2016 a Assembleia-Geral da ONU vai debater o tema”.
Calzada disse que entre 2009 e 2012, o Uruguai experimentou um crescimento de 50% na criminalidade, o que causou um impacto tremendo na opinião pública. A partir desse aumento da atividade criminosa, o governo se comprometeu com 15 metas para reduzir a insegurança. E um desses pontos foi justamente a regulação da maconha, visando dar um golpe na violência gerada pelo tráfico de drogas. O pacote de medidas enviado ao Congresso uruguaio previa o uso medicinal e recreativo da maconha e industrial do cânhamo.
“Hoje, há três possibilidades de adquirir maconha no meu país. Pelo autocultivo em sua própria casa ou propriedade, por meio de clubes canábicos ou em farmácias. Todos são regulados e registrados pelo Estado. Um indivíduo pode comprar até 40 gramas de maconha por semana. No caso do autocultivo ou dos clubes, no entanto, não é possível, por exemplo, pegar a maconha e vender na praça. Quem fizer isso estará incorrendo em crime e pode ser preso”, afirmou Calzada.
Quando questionado sobre a criminalidade atual no Uruguai frente à nova política, Calzada disse que a mudança não foi significativa, mas que o número de usuários não aumentou, como argumentavam alguns adversários à regulamentação da maconha. Em função da nova política, o Estado e a polícia se tornaram mais presentes em todas as regiões do país. Calzada disse que à época da formulação da nova política o governo uruguaio chegou a estudar a implantação de um programa como o das UPPs do Rio de Janeiro. De acordo com Calzada, pesquisas mostram que, após a regulação, o consumo de drogas não aumentou em seu país, permanecendo nos mesmos níveis de antes. “E o mesmo se deu nos estados americanos que regularam”.
A respeito da possibilidade de passar a existir um mercado paralelo em função da maconha só poder ser adquirida pelo autocultivo ou pela compra em farmácias e clubes canábicos, Calzada mencionou a importância do controle em dois extremos: na produção e no preço. “Regulamentando a produção, você consegue controlar a produção e a disponibilidade da droga e, por conseguinte, o acesso a ela. Por outro lado, temos ainda a regulação do preço. Se o objetivo era reduzir o acesso à maconha, deveríamos aumentar o preço da droga. No entanto, isso poderia abrir brecha para um mercado paralelo. Nesse primeiro momento, optamos, portanto, em manter o mesmo preço da maconha por grama que era encontrado entre traficantes quando ainda era ilegal. Ou seja, hoje a pessoa pode ir à farmácia e comprar a droga pelo mesmo preço que compraria anteriormente numa boca de venda ilegal”, explicou o ex-secretário.
O sociólogo disse que o modelo do Uruguai não deve ser meramente copiado por outros países. “Cada país tem suas próprias realidades políticas, sociais, culturais etc. A sociedade uruguaia é bem distinta da chinesa, da americana, da brasileira. E, além disso, é preciso respeitar a soberania de cada país. Não há modelos. Há experiências, como o do Uruguai, o de Portugal, que avançou bastante de dez anos para cá, o da Holanda, o de alguns estados americanos... as legislações dos 24 estados dos EUA que têm leis sobre o uso medicinal da maconha são diferentes entre si. Portanto, há que respeitas as distintas realidades nacionais”.
Ele observou que o Uruguai viveu um amplo debate sobre o tema, que reuniu toda a sociedade. “E sempre com o cuidado de incluir a participação das autoridades de saúde, incluindo também, naturalmente, a saúde mental. E impondo restrições, como a de não poder dirigir após fazer uso da droga, entre outras”.
Quando perguntado sobre a possibilidade de estender a regulamentação da maconha para outras drogas no Uruguai, Calzada diz que não é o momento para isso. Segundo ele, os benefícios medicinais da maconha não se estendem a outras drogas. Há de se considerar questões toxicológicas distintas e cada droga deve ser regulamentada de uma maneira, ou seja, a política de regulamentação da maconha certamente será diferente de uma política de regulamentação da heroína ou da cocaína. O ex-secretário citou, por exemplo, o caso da cocaína. A produção de cocaína se concentra no corredor andino. Um debate sobre a regulamentação dessa produção exigiria, portanto, uma mudança internacional na legislação. “Ainda estamos longe de uma maturidade política para regulamentar outras drogas”, comentou Calzada.
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