terça-feira, 3 de abril de 2018

Do mato ao prato (jornalufgonline.ufg.br)

Data: 27.09.2017

Para além do sistema agroalimentar global, as plantas alimentícias não convencionais são uma alternativa de alimentação saudável

Texto: Carolina Melo
Fotos: José Vernek e Flickr, Wikimedia Commons

Já imaginou saborear uma flor de ipê amarelo? E pegar aquele matinho infestante pra fazer uma sopa refogada e nutritiva? São muitos os “matos”, “inços”, “chicórias” e “ervas daninhas” que podem compor uma rica refeição. Mas o pouco conhecimento das propriedades nutritivas de plantas acessíveis faz que a maioria da população se limite aos produtos disponibilizados pelo sistema agroalimentar global e pelas redes de supermercado. 

Para quem descobre as ricas possibilidades alimentares das plantas, cozinhar se torna uma experiência política, cultural, ambiental e revolucionária. Ali mesmo, no quintal de casa, a baixo custo, é possível encontrar plantas que podem estar na mesa. As Plantas Alimentícias Não Convencionais (Panc), como atualmente são conhecidas, contribuem para transpor a padronização e a monotonia da alimentação diária, além de garantir a apreciação de diferentes sabores, texturas e combinações.

Árvores, trepadeiras, arbustos, cipós e até mesmo aquele matinho desprezado ou considerado invasor. São várias as espécies que podem ser consumidas, apesar de não serem conhecidas ou produzidas em grande escala. O termo “Panc”, no entanto, depende de quem está lidando com a planta. “São plantas presentes em determinadas localidades e regiões e que já exerceram ou ainda exercem grande influência na alimentação de populações tradicionais, mas que em algum momento foram perdendo espaço para o consumo de hortaliças produzidas pelo mercado”, explica a professora de Agronomia da UFG, Abadia dos Reis Nascimento. Vão desde plantas nativas até aquelas que não são produzidas pela agricultura industrial e compõem o universo de alimentos não utilizados no dia a dia de uma população.

As mudanças de comportamento alimentar fizeram que o cultivo dessas plantas passasse a ter expressões econômicas, sociais e culturais reduzidas. Já são muitas as que estão esquecidas e não são mais vistas como alimento, podendo até ser extintas. Para se ter ideia, estima-se que 30 mil plantas possuem partes comestíveis, mas cerca de 90% do alimento mundial provém de menos de 40 espécies vegetais. “A retomada do cultivo, além de preservar e valorizar as espécies nativas e a produção local, recupera as origens de uma sociedade histórica, seja nos encontros e feiras para a venda ou troca de sementes, seja na troca de conhecimentos passada por gerações. O consumo nos possibilita uma nova experiência alimentar, mais saudável e uma alternativa sustentável para os alimentos convencionais industrializados”, acredita Abadia dos Reis.

Cultivo afetivo na cidade

A horticultura doméstica e a utilização de plantas não convencionais no repertório alimentar era uma prática mais comum, de uma cultura urbana que ainda carregava o vínculo afetivo e a vivência com o campo. Entretanto, a diminuição da agricultura urbana, em diálogo com a transformação no modo de habitar a cidade, impulsionou a dependência às grandes redes de comércio de alimentos. “Essa atual realidade contribuiu para que o conhecimento sobre as Panc fosse desprezado por algumas gerações”, avalia o consultor em sustentabilidade, José André Verneck, aluno do curso de Fruticultura no Programa de Pós-Graduação em Agronomia da UFG.

Os quintais de outrora passaram a ter outros usos comuns, como estacionamento, áreas de circulação e lazer coletivo em edifícios, com ajardinamento restrito por falta de espaço físico ou para reduzir tarefas braçais requeridas pela manutenção de áreas verdes. “Sujar as mãos de terra, talvez tenha adquirido sentido demeritoso a ponto de ser classificado como coisa de ‘caipira’, sendo mais cômodo e ‘chique’, concretar o piso e se produzir vestualmente para ir fazer compras no supermercado”, observa José Verneck. Segundo o consultor em sustentabilidade, até mesmo as feiras livres tiveram o perfil alterado. “Poucos feirantes continuam a produzir e vender. São muitos os que passam a adquirir os produtos nas Centrais de Abastecimento”.

Mas o aproveitamento das áreas verdes domiciliares para o cultivo de alimentos saudáveis é uma possibilidade viável para todos os tipos e tamanhos de espaço. “Em qualquer pequeno espaço onde bata sol, com pouco trabalho por dia, é possível cultivar plantas não convencionais e ter fartas colheitas. As Panc são menos suscetíveis a pragas e requerem menos tratos do que as hortaliças convencionais. Jardins, minijardins, são muitas as possibilidades para quem tem o interesse”, afirma José Verneck. Mais do que isso, o cultivo doméstico pode estimular a adoção de tecnologias sustentáveis, como a compostagem orgânica, o uso de defensivos naturais e biofertilizantes, o reaproveitamento de materiais, a captação e uso de água pluvial. “Além de ampliar as áreas verdes no espaço urbano”, avalia o consultor.

Ao plantar, cuidar e acompanhar o desenvolvimento das plantas, cria-se uma relação afetiva com o alimento, com o ambiente e a sociedade, diferente daquela que se tem nos corredores do supermercado. Em feiras, na troca de sementes, no conhecimento compartilhado, a experiência alimentar é incrementada pelo resgate de uma memória ancestral e pela autonomia. “Cultivar alimentos em casa, sem agrotóxicos, significa soberania alimentar e menor dependência de alimentos processados. A obtenção de mudas e sementes tende a ser ampliada quando a prática se irradia a outras famílias da localidade e entre regiões distintas”, afirma José Verneck.

Acesso igualitário

De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), as famílias urbanas pobres gastam até 80% de sua renda com alimentos, o que as torna mais vulneráveis quando os preços sobem ou a renda diminui. Nesse sentido, a horticultura urbana e não convencional tem potencial para contribuir com os desafios da segurança alimentar e nutricional. “Amplia-se a capacidade de resiliência familiar”, ressalta José Verneck, que acredita que as Panc deveriam ser incluídas na merenda escolar, no cardápio dos asilos e demais organizações focadas em populações que estejam em condições de vulnerabilidade.

A percepção sobre o valor socioambiental representado pela produção caseira vem ampliando o interesse e o número de adeptos. “Pessoas e organizações têm empreendido projetos na área, com expressivos resultados educativos e na sedimentação de ciclos de capacitação, de tomada de consciência e formação de redes cooperativas em prol do alimento produzido na urbe, de modo justo, solidário e sustentável”, observa o consultor em sustentabilidade.

Segundo a professora de Agronomia da UFG, Abadia dos Reis, com a ampliação do conhecimento sobre as Panc, elas podem tornar-se uma alternativa viável para agricultores familiares. “Para isso, estratégias são necessárias para chamar a atenção e contribuir com a elaboração de políticas públicas em prol das hortaliças não convencionais”, acredita. Entre os benefícios, as espécies de plantas não convencionais podem ser selecionadas com base na adaptação às condições de solo e clima da região, possibilitando o cultivo sem a dependência de soluções sofisticadas. “Os agricultores familiares precisam dessa autonomia. Não dá para eles ficarem dependentes da compra de insumos e sementes todo ano”, acrescenta José Verneck.
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