quinta-feira, 3 de julho de 2014

A Guerra das Vitaminas: O dia D

Tivemos vários assuntos polêmicos provocados pela seção Tendências/Debates da Folha de São Paulo recentemente. Um deles rendeu uma batalha de cartas no Painel do Leitor do mesmo jornal. Fiquei um pouco surpreso com a agressividade implícita em algumas cartas, mais comum em debates apaixonados do que científicos. Uma busca no Google mostrou que isso é só a ponta de um enorme iceberg de ciência mal feita.

Para mim a história começa antes. No ano passado minha filha mais velha teve receitada uma complementação de vitamina D.
 
Um teste de laboratório mostrou que ela tinha insuficiência dessa vitamina. A endocrinologista, que também cuida de mim há mais de uma década, me disse que não é nada para se preocupar, é comum jovens em Campinas terem insuficiência de vitamina D por não se exporem o suficiente ao sol. Efetivamente complementação oral de vitamina D é recomendada a pessoas com carência dessa vitamina, e aparentemente só nesse caso.

Em 8/5/14 o Prof. Morton Scheinberg da USP e do Hospital Israelita Albert Einstein, publicou no T/D texto O mito da vitamina D. A resposta no T/D veio no dia 2/6/14 por parte do Prof. Cicero Galli Coimbra, da UNIFESP e do médico e ex-deputado federal Walter Feldman: A verdade sobre a "vitamina" D. Logo começaram as cartas: O Prof. Scheinberg no dia 3/6/14 escreve ao Painel do Leitorafirmando que "Recomendar doses elevadas de vitamina D como terapia inovadora para doenças autoimunes carece de fundamento científico.". No dia 4/6/14 o médico e ex-deputado Feldman lançou o livro de sua autoria Vitamina D e Esclerose Múltipla - A Chave Brasileira das Doenças Autoimunes. O lançamento contou com a presença de políticos, jogadores de futebol, chiques e famosos. Teve até cobertura por um programa de TV de gosto duvidoso. O Painel do Leitor de 8/6/14 da Folha publicou carta do Prof. Tarso Adoni em que ele afirma que "Os autores agem de má-fé ao assumirem uma relação causal entre deficiência de vitamina D e o aparecimento de uma doença autoimune tão complexa como a esclerose múltipla." O Painel do Leitor do dia 11/6/14 discute o assunto. O Prof. Tarso Adoni insiste que não há comprovação científica para esse tipo de terapia. Marcelo de Palma e Sergio de Palma, vice-presidente e secretário do Instituto de Autoimunidade saem em defesa de Coimbra e Feldman citando "vasto respaldo científico de extrema confiança"; Michele Sallum, pedagoga de Curitiba sugere que o Prof. Adoni está mal-informado e "pago por algum laboratório para escrever isso"; Carlos Antonio Anselmo Guimarães, médico de Curitiba sugere que se consulte a Colaboração Cochrane, onde a conclusão é que "não há evidências que justifiquem seu [vitamina D] uso". Ana Emilia Gurniak, irmã de paciente em São Paulo se diz indignada com as "absurdas acusações" do Prof. Adoni e "Quem está no dia-a-dia do tratamento sabe muito bem que o ele é eficaz, seguro e barato." Ana C. N. Sasaki, de São Paulo, recomenda cautela ao divulgar resultados sobre o assunto e Maurílio Polizello Jr., farmaceutico de Ribeirão Preto, afirma que "Estatisticamente, mesmo com poucas comprovações científicas, pessoas que desenvolveram doenças autoimunes como esclerose múltipla apresentam níveis muito aquém dos valores mínimos estipulados de vitamina D no sangue." e portanto toma sua dose diária da vitamina. Não consigo entender como uma estatística bem feita pode se contrapor a comprovações científicas.

O que realmente sabemos sobre a vitamina D?

Um artigo recente com o sugestivo título Status da Vitamina D em um país ensolarado: onde foi parar o sol? reporta uma preocupante e inesperada carência de vitamina D entre 603 voluntários. Em grandes centros urbanos a exposição ao sol não é suficiente para garantir a síntese de vitamina D nos níveis mínimos recomendados. O artigo recomenda o monitoramento do serum 25 vitamin D (s25(OH)D) mesmo num país ensolarado como o Brasil. Ou seja, é razoável supor que parte importante da população tem carência de vitamina D, e nos casos em que isso se confirma deve ser indicada a complementação.

O que realmente sabemos sobre esclerose múltipla?

Não muito. Não sabemos o que a causa. Conhecemos bem os sintomas. Os protocolos de tratamento são tão pouco eficazes que estima-se que 70% dos pacientes recorrem à medicina complementar e alternativa.

A terapia proposta pelo Prof. Cícero enquadra-se nesse contexto. É uma terapia complementar e alternativa. O "Instituto de Investigação e Tratamento de Autoimunidade" do qual os senhores de Palma são diretores não é um instituto de pesquisa, mas uma ONG recheada de boas intenções. O presidente é exatamente o Prof. Cícero Galli Coimbra. Três diretores têm o sobrenome de Palma. Um deles provavelmente é um ex-paciente do Prof. Coimbra. No Lattes do Prof. Coimbra não há uma única publicação científica relacionada a Vitamina D e Esclerose Múltipla. Certo está o Dr. Guimarães. O correto nesse caso é consultar a melhor referência sobre o consenso médico do mundo, a colaboração Cochrane: Não há evidências que recomendem o tratamento de esclerose múltipla com vitamina D. Oconsenso da Academia Brasileira de Neurologia é claro e está em negrito no artigo: "Não há evidência científica para o uso de vitamina D como monoterapia para esclerose múltipla na prática clínica até a preparação desse consenso".

É possível que o Prof. Coimbra tenha razão e seu protocolo seja realmente revolucionário no tratamento da esclerose múltipla. No entanto, enquanto um estudo duplo-cego aleatorizado não for realizado será impossível saber. Até que isso aconteça o mais prudente é seguir o recomendado no consenso da ABN.

O Globo Reporter fez uma matéria com um tom meio nacionalista sobre o tratamento do Prof. Coimbra. Ali ele afirma que "não há como você chegar e dizer que precisa de um estudo controlado, porque se você tivesse por exemplo um filho seu com esclerose múltipla, você jamais colocaria essa pessoa, aceitaria que ela fosse para o grupo placebo, para mostrar o quanto ela iria mal”. Se o Dr. Feldman, que não tem treinamento nem experiência em pesquisa afirmasse isso seria ruim mas compreensível. A recusa do Prof. Coimbra a submeter seu protocolo a um estudo duplo-cego aleatorizado é inadmissível.

Tem razão os doutores Scheinberg, Adoni, Guimarães e Sasaki: atualmente, a panaceia dos doutores Coimbra e Feldman não é mais que uma forma de medicina complementar e alternativa e não tem evidências científicas que justifiquem seu uso como tratamento primário para esclerose múltipla.

Disclaimer: Não sou pago por laboratório algum para fazer essa análise!

Upideite 18/6/14: Deu no site da Veja a matéria Vitamina D pode evitar mortes por câncer e doenças cardiovasculares, com referência ao artigo Vitamin D and mortality: meta-analysis of individual participant data from a large consortium of cohort studies from Europe and the United States que foi publicado ontem no British Medical Journal. Vale a pena ler as conclusões do artigo original como um indicador de como se deve proceder em ciência bem feita: "Apesar dos níveis de 25(OH)D variarem fortemente com país, sexo e estação do ano, a associação entre o nível de 25(OH)D e a mortalidade por qualquer causa e por causas específicas é notavelmente consistente. Os resultados de um estudo aleatorizado com grupo de controle testando a longevidade são esperados antes que a suplementação de vitamina D possa ser recomendada para a maioria dos individuos com baixos níveis de 25(OH)D." O grifo é meu.

Ao contrário do que a Veja afirma, em lugar algum do artigo há alguma indicação de que "a equipe acredita que a pesquisa tem uma grande relevância na saúde pública, mostrando que o combate à deficiência em vitamina D deve ser uma prioridade."

Upideite 21/6/14: Folha volta a tratar do assunto. Corretamente menciona a falta de comprovação científica para o protocolo do Dr. Coimbra e o consenso da ABN.


Referências

Unger, M., Cuppari, L., Titan, S., Magalhães, M., Sassaki, A., dos Reis, L., Jorgetti, V., & Moysés, R. (2010). Vitamin D status in a sunny country: Where has the sun gone? Clinical Nutrition, 29 (6), 784-788 DOI: 10.1016/j.clnu.2010.06.009

Yadav, V., Shinto, L., & Bourdette, D. (2010). Complementary and alternative medicine for the treatment of multiple sclerosis Expert Review of Clinical Immunology, 6 (3), 381-395 DOI:10.1586/eci.10.12

Jagannath VA, Fedorowicz Z, Asokan GV, Robak EW, & Whamond L (2010). Vitamin D for the management of multiple sclerosis Cochrane Summaries DOI: 10.1002/14651858.CD008422

Brum, D., Comini-Frota, E., Vasconcelos, C., & Dias-Tosta, E. (2014). Supplementation and therapeutic use of vitamin D in patients with multiple sclerosis: Consensus of the Scientific Department of Neuroimmunology of the Brazilian Academy of Neurology Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 72 (2), 152-156 DOI: 10.1590/0004-282X20130252

Schottker, B., Jorde, R., Peasey, A., Thorand, B., Jansen, E., Groot, L., Streppel, M., Gardiner, J., Ordonez-Mena, J., Perna, L., Wilsgaard, T., Rathmann, W., Feskens, E., Kampman, E., Siganos, G., Njolstad, I., Mathiesen, E., Kubinova, R., Paj k, A., Topor-Madry, R., Tamosiunas, A., Hughes, M., Kee, F., Bobak, M., Trichopoulou, A., Boffetta, P., Brenner, H., & , . (2014). Vitamin D and mortality: meta-analysis of individual participant data from a large consortium of cohort studies from Europe and the United States BMJ, 348 (jun17 16) DOI: 10.1136/bmj.g3656

Postado por Leandro R. Tessler

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