quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Lições mal aprendidas e quase esquecidas de uma primavera silenciosa: Lei 13.301/2016, artigo de Thiago Lustosa Jucá

Imagem: Leve Bem

Artigo de Thiago Lustosa Jucá, biólogo e membro titular da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes da Petrobras

[Jornal da Ciência] No mundo pós-guerra, a ciência nuclear canalizava para si, não só grande parte dos recursos financeiros destinados às pesquisas científicas, como os debates da época, principalmente depois que a sociedade tomou conhecimento dos efeitos devastadores sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Por conta disso, as responsabilidades da ciência e os limites do progresso tecnológico foram duramente questionados. Os debates acerca dessas responsabilidades/limites ganharam ainda mais força em 1962, após a publicação de Silent Spring, que recebeu o título em português de “Primavera Silenciosa”, da bióloga marinha e escritora, a americana Rachel Carson. Esse livro, que é considerado um marco do surgimento do movimento ambientalista no mundo, não só despertou a consciência pública para a questão ambiental, como foi responsável por mudanças que culminaram na proibição do uso do inseticida DDT nos EUA.

Em seu livro, Rachel Carson chama a atenção, de maneira clara e objetiva, para o uso indiscriminado de produtos químicos (usados como inseticidas e herbicidas), que ao contaminar todo o ambiente onde eram pulverizados, dizimavam várias espécies de animais. A intenção do título era evocar o extermínio das aves, como consequência da toxicidade dessas substâncias, algo notado de imediato não só pelos moradores dos locais atingidos, mas também de áreas distantes. Por isso, a autora utilizou esse título, em referência à primavera que passou a ser silenciosa, sem a presença e o canto dos pássaros.

Recentemente, em 27 de Junho de 2016, foi sancionada a Lei nº 13.301 que dispõe sobre a adoção de medidas de vigilância em saúde quando verificada situação de iminente perigo à saúde pública pela presença do mosquito transmissor (Aedes aegypti) do vírus da dengue, chikungunya e zika. A Lei trata em seu art. 1º, § 3°, inciso IV, da permissão para a incorporação de mecanismos de controle vetorial por meio de dispersão de aeronaves mediante aprovação das autoridades sanitárias e da comprovação científica da eficácia da medida.

Na verdade, a sanção de tal medida vai na contramão dos estudos científicos, políticas públicas, ações governamentais e não governamentais desenvolvidos nos últimos 50 anos a respeito desse tema, em especial, depois da publicação de Primavera Silenciosa, quando a população tomou conhecimento de tal assunto. Vale lembrar que diversas entidades nacionais se manifestaram, em vão, solicitando o veto dessa proposta. Nem mesmo todos os estudos desenvolvidos em instituições como o INCA e a FIOCRUZ, com um histórico de contribuições valiosas para a saúde pública nacional, alertando para os perigos da pulverização dessas substâncias, surtiram efeitos. O próprio Ministério da Saúde, através de nota técnica (Recomendação nº 003, de 15 de Junho de 2016), se manifestou contrário à adoção da pulverização aérea como estratégia para o combate de vetores, mesmo em situação emergencial.

O motivo de tanta preocupação por parte dessas instituições se deve ao fato de que tal medida aumentaria significativamente o risco de contaminação de pessoas e do ambiente. Quando se considera a organização desordenada das nossas cidades, o risco fica ainda mais potencializado. Cabe ressaltar que a Organização Mundial de Saúde classificou recentemente algumas das substâncias a serem utilizados em tais pulverizações, e que já são utilizados nos “fumacês”, como possivelmente carcinogênicas.

Nos EUA da década de 50, mesmo com todo o lobby da indústria contra a restrição e proibição de uso do benzeno, um carcinogênico reconhecido, o congresso e a Justiça Americana restringiram drasticamente seu uso em ambientes industriais. Com o DTT, a vitória foi ainda maior: o mesmo foi banido em 1972, o que só ocorreu no Brasil em 2009 (Lei 11.936/09), apesar da sua proibição para fins agrícolas em 1985. Vale lembrar que tal medida (art. 1º, § 3°, inciso IV) surgiu por emenda parlamentar, ainda durante a tramitação do Projeto de Lei de Conversão nº 9/2016 (oriundo da Medida Provisória nº 712, de 29 de janeiro de 2016), na câmara dos deputados, e foi amplamente defendida pelas empresas de aviação agrícola, que serão beneficiadas com tal medida. Infelizmente, uma prática considerada fracassada no mundo e já abolida em muitos países, conseguiu se refugiar em nosso País.

Apesar de essa lei representar outro “7×1” contra nós, vale lembrar que a saúde é um direito fundamental de todo ser humano e dever do Estado (art. 196); e que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (art. 225), ambos da Constituição Federal de 1988. Por tudo disso, a comunidade científica nacional e a sociedade devem, mais do que nunca, se mobilizar e impedir que o meio ambiente e pessoas inocentes sejam “condenados”. O DTT não representou a vitória sobre as pragas, e nem tal medida triunfará sobre os vetores; pelo contrário, como disse Rachel Carson “pela primeira vez na História, todos os seres humanos estão sujeitos ao contato com produtos químicos perigosos do momento da concepção até a morte”.

Referências Bibliográficas

Rachel Carson. Primavera Silenciosa. Ed. Guaia, Pag. 327, 2010.

Oliveira, Francisco Zuza. Nota Técnica. Considerações sobre a pulverização agrícola aérea em relação às discussões do PL 18/2015 na Assembleia Legislativa do Ceará. Fortaleza, 2016.

Guyton, KZ; Loomis D; Grosse Y; Ghissass FE; Benbrahim-Tallaa L; Guha N; Scocciant C; Mattock H; Straif K. Carcinogenicity of tetrachlorvinphos, parathion, malathion, diazinon, and glyphosate. On behalf of the International Agency for Research on Cancer Monograph Working Group, IARC, Lyon, France, The Lancet Oncology, 2015.

Patrícia Fara. Uma Breve História da Ciência. Ed. Fundamento, Pag. 436, 2014.

Lei N° 13.301, de 27 de Junho de 2016, http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13301.htm)

RECOMENDAÇÃO Nº 003, DE 15 DE JUNHO DE 2016. Conselho Nacional de Saúde, CNS.

Thiago Lustosa Jucá, biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas pela UFC. Atualmente trabalha como técnico químico de petróleo na Refinaria de Lubrificantes e Derivados do Nordeste, Petrobrás, onde é membro titular da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e coordenador do Grupo de Trabalho do Benzeno.

Artigo socializado pelo Jornal da Ciência / SBPC e reproduzido in EcoDebate, 17/08/2016

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