quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Economias emergentes registram autocitação nacional excessiva e chamam atenção para os efeitos do isolamento


BRUNO DE PIERRO | Edição 204 - Fevereiro de 2013
© LARISSA RIBEIRO
Países do chamado Brics (Brasil, Índia, China e Rússia), junto com outros casos particulares, como o Irã, têm registrado elevados índices de autocitação nacional, provocando o chamado isolamento científico
Se alguém um dia disser que a China, o Brasil ou o Irã são ilhas, demonstrará pouca ou nenhuma familiaridade com conceitos básicos da geografia. No campo da cienciometria – ramo que estuda elementos quantitativos da produção científica – a afirmação, no entanto, não soa estranha. Os três países citados, entre outros, tornaram-se ilhas num mar de publicações e citações acadêmicas. O fenômeno tem sido chamado de scientific insularity(insularidade científica) e ocorre quando o nível de autocitação nacional encontra-se acima da média em um país, isto é, quando boa parte das citações recebidas é feita por pesquisadores do próprio país. As causas vão desde uma agenda científica voltada mais para temas localizados até o precário ensino das práticas metodológicas em universidades. Uma pesquisa publicada no ano passado pela revistaScientometrics lança novo olhar sobre o problema ao sugerir que características políticas e geográficas, como a extensão territorial do país, exercem forte influência nos índices de autocitação nacional.
“Países grandes têm mais chances de desenvolver tradições de pesquisa e redes acadêmicas independentes, principalmente quando há um grande número de grupos potencialmente ligados entre si”, explica Richard Ladle, autor principal do estudo e pesquisador sênior associado da Universidade de Oxford. Já cientistas de países pequenos acabam sendo forçados a colaborar e estabelecer diálogo com colegas de outros países, o que amplia o número de citações estrangeiras. Para chegar a essa constatação, Ladle e sua equipe, que inclui a esposa brasileira Ana Malhado, do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), analisaram informações sobre números de publicações e citações por países, disponibilizadas entre 1996 e 2010 pelo SCImago, portal de indicadores científicos amparado pelo banco de dados Scopus.
A pesquisa revelou que o grupo de campeões em autocitação nacional reúne países com grande extensão, como os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), e aqueles que constituíram, ao longo da história, sistemas políticos fechados, destacando Irã e Cuba, além de ex-integrantes do bloco soviético (Sérvia, Ucrânia e Polônia). Países com menores níveis de autocitação são, na maioria, aqueles com pequeno território, mas alta proporção de programas de pós-graduação ministrados em inglês, como Israel, Dinamarca, Cingapura e Emirados Árabes Unidos. Enquanto a China registrou, no período analisado, 51% de autocitações, do total de citações que o país recebeu, apenas 15% eram de artigos de Israel feitos por autores do próprio país.
A influência que a área territorial exerce sobre a autocitação nacional está atrelada a outros fatores. Índices elevados de autocitação nacional em países grandes e desenvolvidos, como os Estados Unidos, com taxa de 47%, são esperados. O país produz o maior volume de pesquisas no mundo, geralmente com artigos de alto impacto; portanto, espera-se que seus papers sejam muito citados. O Brasil, que apresenta índice de autocitação nacional alto e crescente, também é um país grande, mas menos desenvolvido, o que significa que as causas são distintas das dos Estados Unidos.
Para se fazer compreender melhor, Ladle compara a Inglaterra, seu país de origem, com o Brasil, onde trabalha, desde 2009, como professor visitante no mesmo departamento da esposa na Ufal. “Uma das diferenças que notei é o baixo número de professores e alunos estrangeiros aqui e o considerável número de instituições acadêmicas na Inglaterra”, conta. Nos tempos de professor em Oxford, Ladle chegou a registrar 70% de alunos estrangeiros em seu curso. Dos colegas de departamentos, 50% eram acadêmicos vindos de várias partes do mundo. “Os cientistas ingleses escrevem principalmente para revistas internacionais e são, portanto, obrigados a ‘vender’ seus trabalhos à comunidade internacional logo no início da carreira”, acrescenta.
Essa preferência pelos periódicos de prestígio internacional, a despeito dos nacionais, é uma característica comum das nações que fazem questão de cortar o cordão umbilical que conecta um paper à mãe-pátria. De 2006 a 2011, os artigos da Suécia receberam mais de 6 milhões de citações, dos quais apenas 1,06 milhão são autocitações. A diferença entre a Suécia e a China está no que se pode chamar de “milagre da multiplicação” dos periódicos científicos. No Scopus, a China tem indexadas 537 publicações e a Suécia se satisfaz com apenas 49 publicações no banco de dados.

“Quanto mais revistas científicas um país tiver, mais autocitação receberá”, explica Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca virtual Scientific Electronic Library Online (SciELO), que também chama a atenção para as diferenças entre os sistemas adotados pelos bancos de dados internacionais mais reconhecidos. O Web of Knowledge, da Thomson Reuters, é o mais tradicional e tem cerca de 12 mil periódicos indexados. O concorrente Scopus, da Elsevier, chega a 23 mil publicações, revelando, portanto, um sistema de seleção menos exigente. A disputa pelo mercado entre ambos cria condições favoráveis para que publicações de baixo prestígio internacional sejam incorporadas rapidamente.
A eclosão de novos periódicos em alguns países tem por trás motivações políticas e de mer-cado. Na contramão da tendência mundial, em que a questão nacional vem deixando de ser o principal elemento de classificação de qualidade, países em desenvolvimento têm sido tratados como verdadeiras “ilhas do tesouro perdido” por parte das grandes editoras de publicações científicas. “Hoje quem está tomando conta do mercado de revistas científicas são os publishers comerciais, como a Elsevier e a Springer, cuja margem de lucro chega a 45%”, diz Meneghini, ao salientar que os maiores alvos de investimentos têm sido a China e o Brasil, entre outros. “A Suécia considera mais relevante ter pesquisadores atuando como editores-chefes de importantes publicações internacionais, ditando os rumos da ciência no mundo, do que simplesmente ter um número alto de periódicos nacionais”, completa.

Internacionalização de periódicos

No Brasil, a razão da alta produção de periódicos é simples: dar vazão à produção científica que não encontra lugar em revistas internacionais. “Temos um número extremamente alto de periódicos, algo em torno de 5 mil (não há uma contagem exata de quantos sejam), o que demanda sempre novos artigos”, diz Meneghini. O problema, segundo ele, é que muitas instituições nunca estiveram preparadas para publicar artigos, mas como desejam inaugurar cursos de pós-graduação a edição de um periódico pode contar pontos na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
“A publicação que aqui é considerada referência e apresenta artigos de excelente qualidade no exterior pode ter a importância reduzida quando levado em conta seu índice de citação nacional”, afirma Gilson Volpato, professor do Instituto de Biociências da Unesp em Botucatu e autor de livros sobre redação científica. Um exemplo lembrado por ele é o da Revista Brasileira de Zootecnia, editada pela Sociedade Brasileira de Zootecnia. Embora ainda bem classificada pela avaliação Qualis da Capes, a publicação foi praticamente congelada no Journal Citation Reports (JCR), ligado ao Web of Knowledge, ao atingir taxas altíssimas de autocitação nacional. O conjunto de publicações brasileiras que foram, em 2011, suprimidas do Journal Impact Factor, ligado ao JCR, inclui ainda as revistas Planta DaninhaRevista Brasileira de Farmacognosia e Revista Ciência Agronômica, por terem desenvolvido padrões anômalos de citação, provocando distorções em seus fatores de impacto.
O índice de autocitação da CA, A Cancer Journal for Clinicians, uma das principais publicações médicas, editada pela American Cancer Society, é de 0,029%, e seu fator de impacto, segundo o JCR, é de 101. As conhecidas Nature e Science apresentam autocitação de 0,158% e 0,136% e fatores de impacto 36 e 31, respectivamente.

Alguns exemplos de mecanismos para dar maior projeção aos trabalhos realizados em seu campus podem ser encontrados nas universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos três anos, ambas passaram a investir na realização de workshops para discutir ferramentas de escrita de teses e papers e metodologias para a apresentação de dados e resultados. “Refletimos sobre como melhorar a redação em inglês e as práticas de citação, e criamos estratégias para a internacionalização de nossas publicações”, afirma Sueli Mara Soares Pinto Ferreira, coordenadora do Sistema Integrado de Bibliotecas da Universidade de São Paulo (SIBi-USP), que reúne 104 periódicos produzidos na USP.
A Unicamp mantém, desde 2008, o Espaço da Escrita, com o objetivo de apoiar a tradução de artigos científicos para outros idiomas. O primeiro workshop organizado na Unicamp, em 2010, contou apenas com a participação de 57 pessoas. Em 2012, o número havia saltado para 800. Há, ainda, um projeto em andamento para criar um repositório para os 44 periódicos editados pela universidade. “O repositório deve começar a receber as primeiras publicações ainda neste primeiro semestre, e futuramente será vinculado a um repositório maior hospedado no site do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais de São Paulo (Cruesp)”, explica Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp.
“Quando realizei o doutorado em Oxford, meu projeto inicial de descrever padrões de morfologia de folhas da Amazônia foi completamente desconstruído”, relata Ana Malhado, coautora da pesquisa. Segundo ela, foi preciso desenvolver hipóteses e adotar uma nova abordagem muito mais afinada com a literatura mundial. Muitos estudantes e pesquisadores parecem preferir escrever um artigo descritivo para um periódico nacional do que usar os mesmos dados para tratar importantes temas de forma global, generalizante. O depoimento de Malhado reforça como a insularidade pode dificultar a vida de muitos brasileiros que pretendem estudar no exterior.
“Todos os países têm um nível de autocitação nacional considerado saudável, porque seus cientistas devem tratar de interesses do país”, pondera a pesquisadora. Para ela, o principal ponto que merece ser destacado é que desenvolvedores de políticas públicas devem ficar mais atentos para a insularidade com a finalidade de refinar as agendas de pesquisa em todos os níveis.
No Brasil, as áreas agrícola e de saúde pública são bons exemplos de setores que se voltam para o local, mas que, ao mesmo tempo, produzem artigos reconhecidos internacionalmente. “Muitos países estão interessados em saber como o Brasil driblou uma situação climática ou de solo para determinada cultura vegetal. Trata-se de utilizar dados locais para depois generalizá-los”, afirma Meneghini. Como exemplo, Volpato menciona o educador Paulo Freire (1921-1997), que estudou a alfabetização de adultos e ficou conhecido internacionalmente ao desenvolver, com dados locais, conceitos globais. “Não fazer isso é uma questão de fragilidade na postura científica de nossos pesquisadores”, conclui.
Outra medida para que a insularidade seja evitada é a contratação de professores estrangeiros, como Ladle. A própria pesquisa do casal é exemplo de como a parceria entre pesquisadores de diferentes países pode atribuir ao trabalho o desejável caráter global, e, em alguns casos, mostrar que a superação das fronteiras nacionais também pode render frutos para além dos interesses científicos. Pais de primeira viagem, Ladle e Malhado concederam entrevista à revista Pesquisa FAPESP numa semana atrapalhada, logo após assistirem ao nascimento da filha, a pequena Jasmine.

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