quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Sobre história das pimentas

Bem-vinda ardência

As pimentas americanas viraram um sucesso mundial ainda nos séculos XVI e XVII.

Christian Fausto Moraes dos Santos e Fabiano Bracht 2/3/2011

Com uma concentração seis vezes maior de vitamina C que uma laranja, os pimentos, quase sempre chamados equivocadamente de pimentas, tiveram um papel capital ao longo do período das grandes navegações, nos séculos XV e XVI. Ricos em vitaminas A, B1, B2 e E, eles tinham propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, antibacterianas e energéticas. A capsaicina, presente nos pimentos e responsável pela sua ardência, ajudava a cicatrizar feridas, evitar hemorragias e aumentar a resistência física. A substância ainda libera a endorfina, que provoca sensação de bem-estar, que, para aqueles marinheiros, talvez fosse a única possível em alto-mar.

Mas o reconhecimento da versatilidade dos pimentos não se deu de uma hora para outra. Conhecidos popularmente como ardidas, dedo-de-moça, piri-piri, tabasco, jalapeño, pimentão e pimenta-doce, consumidos pelos nativos das Américas, eles estiveram entre as primeiras especiarias americanas que invadiram e conquistaram os pratos e solos europeus, africanos e asiáticos. No século XVI, era possível encontrar as “pimentas ardidas” nativas do Brasil, do México e das Antilhas na costa ocidental da África, na Europa e em boa parte da Ásia. Charles de l’Écluse (1525-1609), considerado um dos criadores da horticultura moderna, chegou a relatar, em 1564, que havia se deparado com esses pimentos em toda a Espanha, onde se espalharam rapidamente: “Os frutos têm várias formas e são usados, frescos ou secos, como condimento”.

É difícil saber se as especiarias que brotavam nas hortas espanholas da época eram doces – pimentões, pimenta-doce – ou ardidos – dedo-de-moça, malagueta. Provavelmente eram de ambas as variedades e pertenciam ao gênero Capsicum. Tempos depois de ter visitado um mosteiro lisboeta, l’Écluse relatou ter encontrado uma variedade amarela que era comprovadamente ardida. Um dos filósofos naturais mais famosos do século XVI, Leonhart Fuchs (1501-1566), em seuDehistoria stirpium commentarii insignes (Comentários notáveis sobre a história das plantas, 1542), desenhou e descreveu várias espécies do gênero Capsicum. Nas versões coloridas de sua obra, há pimentos vermelhos e verdes, além de outros nos formatos dedo-de-moça e rolha-de-champagne. Estes últimos lembram muito as pimentas-doces verdes usadas em saladas e vinagretes e que podem ser compradas em qualquer feira, quitanda ou supermercado no Brasil.

O cronista Gonzalo Fernandez de Oviedo (1478-1557) em seu Sumáriode La Natural Historia de Las Índias (1526), conta que os viajantes espanhóis já haviam sido conquistados, em 1514, pelo sabor marcante dos pimentos da América Central. Segundo ele, recorrendo ao entendimento medicinal europeu da época, a pimienta das Índias Ocidentais tinha grandes qualidades medicinais, pois aquecia o corpo daqueles que a ingeriam e, portanto, era de grande utilidade em invernos rigorosos. Oviedo chegou a afirmar que, quando utilizada para temperar peixes e carne, ela conseguia ser mais saborosa que a pimenta-do-reino asiática (Piper nigrum). Nicolau Monardes (1493-1588), em Primera, segunda y tercera partes de la historia medicinal de las cosas que se traen de nuestras Indias Occidentales(1580), também comparou os dois condimentos. Ele chegou a dizer que as pimientas do Novo Mundo eram mais aromáticas e de melhor paladar que as orientais.

Mas para chegar às cozinhas de todo o planeta, as rotas de comércio da época – definidas, inclusive, por fatores naturais – foram de fundamental importância. Durante o século XV, os navegadores portugueses se depararam com um grande obstáculo: ao sul do Golfo da Guiné, os ventos alísios tendiam a afastar as embarcações para o meio do Atlântico. Esses mesmos ventos também podiam conduzir os navios para perto da costa do Brasil. Fazendo este caminho, os portugueses perceberam que, à altura das costas americanas, os ventos mudavam de sentido e sopravam na direção do Sudeste. As correntes de ar impulsionariam as caravelas, passando ao sul do Cabo da Boa Esperança, ao sul da África, e adentrando o Índico.

Essa manobra, chamada de “volta do mar”, se repetia cada vez que os portugueses viajavam para o Oceano Índico e para as Índias. Assim, a partir de 1500, as paradas estratégicas na costa do Brasil, na ida e na volta, se tornariam fundamentais para que as viagens fossem bem-sucedidas. Isso não só intensificou a busca por frutas frescas em terras brasileiras, como contribuiu de maneira decisiva para que os europeus disseminassem os elementos botânicos de uma parte do globo para outra. É possível que as mudas e sementes dos pimentos tenham chegado à Europa através do importante eixo comercial Brasil-Lisboa-Antuérpia, ou mesmo vindo do Caribe via Espanha. Entretanto, os marinheiros não embarcavam os produtos encontrados na costa da América portuguesa só por causa das belas e variadas cores que seus frutos apresentavam, ou porque seu sabor dava certo tempero à insossa dieta básica em alto-mar. Esses pimentos tinham uma finalidade medicinal.

Naquele tempo, a ração diária de um marinheiro era composta de biscoitos, água, lentilhas, favas, cebolas, mel, açúcar, uva-passa, marmelada, queijos, azeitonas, porcos, cabras, carneiros e aves. É claro que os produtos mais frescos eram consumidos antes, principalmente a carne de porco, de cabra, de carneiro e de aves. Ao fim de muitos meses no meio do oceano, até mesmo ratos mais desavisados poderiam compor a cota diária de proteína a ser consumida. Afinal, além dos não raros problemas com motins e péssimas condições de higiene, a situação se tornava crítica quando os suprimentos básicos começavam a escassear. As consequências mais nefastas para os marinheiros eram males como o escorbuto, chamado pelos marinheiros portugueses de “doença dos beiços inchados” [Ver edição especial RHBN: História da Ciência nº 1].

Esta doença é causada pela falta de ácido ascórbico, ou vitamina C. Seus sintomas são manifestações hemorrágicas, inchaço das gengivas, perda dos dentes, fadiga, tonteira, anorexia e infecções, podendo levar à morte. O escorbuto foi o segundo maior causador de óbitos durante o período das grandes navegações, perdendo apenas para os naufrágios. Ele se manifestava porque era difícil renovar os suprimentos alimentares durante as viagens. Os marinheiros já sabiam que o consumo de laranjas e limões tinha efeitos fitoterápicos contra este mal. No entanto, esses frutos cítricos originários do Sudeste da Ásia nem sempre estavam à mão. Mesmo quando eram encontrados em locais como a Costa da Gâmbia, na África Ocidental, eles eram muito perecíveis e ainda competiam por espaço com as valiosas especiarias nos porões das naus. Nesse momento, os pimentos americanos acabaram servindo como uma excelente alternativa, já que tinham a vantagem de não apodrecer, e sim se desidratar. Isso lhes permitia reter boa parte de suas propriedades químicas, vantagem que os frutos cítricos não tinham.

Hoje em dia, é comum encontrar vidros de conservas e molhos adornados com um belo desenho do pequeno e vermelhoCapsicum frutescense a legenda “pimenta malagueta” em gôndolas de supermercados, em uma antiga referência à Costa da Malagueta, na África Ocidental. Naquela região, encontrava-se com facilidade, nos séculos XV e XVI, uma especiaria chamada Aframomum melegueta. Suas sementes eram utilizadas como pimenta, mas o produto foi praticamente extinto e seu nome foi emprestado a uma espécie de capsicum brasileiro – a malagueta. É um daqueles casos de globalização de especiarias americanas que, de tão bem-sucedido, acabou fundindo o nome de duas espécies vegetais com origens completamente distintas. Chamar um pimento, nativo das Américas, de pimenta malagueta é tão comum que até soa estranho chamá-la de americana. Do ponto de vista botânico, isso pode ser um equívoco. Mas, historicamente, não há nada de errado com este fenômeno biogeográfico que dá importantes informações sobre a história de uma planta americana que é, simplesmente, a especiaria mais consumida no mundo.
File:Aframomum melegueta.jpghttp://en.wikipedia.org/wiki/File:Aframomum_melegueta.jpg

Os pimentos americanos não só conquistaram o continente das especiarias como tomaram o lugar de uma delas. A famosa pimenta-do-reino, por exemplo, foi destronada em seu próprio lar, já que a Índia, ironicamente, é hoje o seu maior produtor mundial. É interessante notar que a busca pela pimenta oriental, que começou no final do século XV, acabasse por disseminar no mundo inteiro os pimentos americanos.Curiosamente, os turistas que hoje adentram um restaurante em Goa ou Coxim, quando pedem uma refeição, são logo avisados do risco que podem correr ao consumir os apimentados pratos “típicos” da Índia, temperados com especiarias que o povo das Américas conhece muito bem.

Christian Fausto Moraes dos Santos é professor de História da Universidade Estadual de Maringá e organizador do livro História das Ideias: viajantes, naturalistas e ciências na modernidade (Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2010).

Fabiano Brachté professor da rede particular de ensino de Maringá e pesquisador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC).

Saiba Mais - Bibliografia

DISNEY, A. R. A Decadência do Império da Pimenta. Lisboa: Edições 70, 1981.

RAMOS, Fábio Pestana. No tempo das especiarias: o império da pimenta e do açúcar. São Paulo: Contexto, 2004.

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América. Lisboa: Difel, 1998.

FERRÃO, J.E. Mendes. A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses.Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1993.

SCHIEBINGER, Londa. Plants and Empire: colonial Bioprospecting in the Atlantic World. Cambridge: Harvard University Press, 2004.

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