A humanidade mudou sua atitude em relação ao meio ambiente, mas ainda não abriu mão da exploração desenfreada dos recursos naturais
Rodrigo Elias 1/5/2012
Gravura de planta medicinal publicada em livro da segunda metade do século XV
“O homem é um animal preto que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte do que outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo exatamente como eles.”
Escrito em 1736, o trecho ainda nos soa familiar. Voltaire (1694-1778), um dos grandes nomes do Iluminismo, assumia a pele de um viajante extraterrestre que descia na África e dava a sua impressão sobre a nossa espécie: apenas mais um animal, um ser inserido na natureza, muito distante das concepções religiosas até então em vigor. Seu texto, o Tratado de metafísica, assim como toda a sua obra, foi condenado pela Igreja.
A dor de cabeça que esta concepção natural do homem rendeu a Voltaire e a alguns dos seus companheiros é uma prova de que nossa relação com a natureza nem sempre foi a mesma. Se, nos nossos dias, algumas pessoas são capazes de dedicar suas vidas à defesa do meio ambiente, no passado o mundo natural já foi visto como algo totalmente estranho ou, no máximo, uma fonte inesgotável de recursos para o sustento dos homens – e mesmo para o seu puro divertimento, como comprovam as populares rinhas de todos os tipos de animais, muito comuns em todos os grupos sociais na Época Moderna, ou as caçadas que faziam a alegria de nobres e reis.
Por incrível que pareça, não era o que ocorria entre os gregos e os romanos da Antiguidade, há mais de 2.000 anos, como afirmou o historiador britânico Keith Thomas. Pensadores daquela época chegaram a uma concepção bem próxima da que temos hoje: a natureza, para autores como Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) e Plínio, o Velho (33-79), deveria ser entendida de acordo com a sua lógica interna. Muito diferente do que aconteceria séculos depois, com a generalização do cristianismo no Ocidente ao longo da Idade Média: a partir de então, a natureza passa a ser entendida como algo criado por Deus, mas que existe apenas para servir ao homem – Adão, sua criação máxima, é feito segundo sua imagem e semelhança.
Sob influência desta concepção teológica do mundo, por exemplo, os cogumelos eram estudados, classificados e separados entre os que podem ser comidos e os venenosos. Esses eruditos e naturalistas medievais e do início da Época Moderna não levavam mais em conta as características próprias daquelas espécies, como a cor, a textura, o tamanho, o sistema do qual fazem parte. O que interessava era a sua relação com o homem. Esta concepção criou raízes tão profundas que atravessou séculos e chegou ao sueco Carlos Lineu (1707-1778), considerado o pai da taxonomia moderna (a classificação científica do mundo natural). Seu sistema é iluminista, científico, não religioso – ou seja, a base do nosso conhecimento atual sobre animais e plantas. Entretanto, nem mesmo Lineu conseguiu escapar totalmente da tradição teológica. Quando classificou os canídeos, chamou o nosso cão doméstico de canis familiaris – a espécie foi batizada de acordo com sua proximidade com o homem.
"Mesmo o controle do corte de árvores durante o século XVII pode ser justificado como uma forma de garantir o estoque real de madeira para a construção naval"
A própria formação econômica e social que cobriu vastas regiões da Europa durante a Idade Média, o feudalismo, refletiu em alguma medida uma noção meramente utilitária do mundo natural. As grandes áreas dominadas pelos senhores feudais – chamadas de domínios – eram divididas em terras para a agricultura, construções e reserva senhorial. Esta última nada mais era do que uma vasta porção de terra “inculta” – ou seja, uma floresta que servia exclusivamente às necessidades do senhor feudal, como a caça e o corte de madeira. A lenda de Robin Hood, um fora da lei que liderava um grupo de bandoleiros em uma floresta inglesa na Idade Média, talvez seja um eco longínquo da luta entre grupos sociais por uma apreensão utilitária do meio natural.
Os portugueses que chegaram à América entre os séculos XV e XVI, ávidos por almas, corpos e riquezas, viviam num contexto de transformações intelectuais que os forçava a lidar de uma maneira diferente com a natureza. Muitos estudiosos acabaram por atribuir a estes homens, que precisavam, por necessidade prática, ter um conhecimento mais profundo da flora e da fauna, uma noção modernada natureza. Reconhecer espécies comestíveis, investigar locais de ocorrência de recursos naturais, identificar sinais de terra nas correntes marítimas: um conhecimento mais apurado do meio não era apenas o reflexo de uma mudança de pensamento, mas uma necessidade vital para estes aventureiros do mar, o que abriria caminho para o que conhecemos como ciência moderna.
Mas Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso (1959), levanta sobre isso uma dúvida: o cuidado que esses homens têm ao analisar a natureza não seria correlato ao “pedestre realismo” da cultura medieval, que representa anjos que não voam, mas caminham sobre nuvens, como se isto fosse mais plausível? Talvez não tenhamos uma resposta definitiva, mas a exploração colonial da América não mostrou indícios de que as preocupações com o meio ultrapassassem a visão da natureza como algo que só existe para servir ao homem. Mesmo uma iniciativa como o controle do corte de árvores durante o século XVII pode ser justificada como uma forma de garantir o estoque real de madeira para a construção naval. Além disso, durante todo o período colonial, nenhum esforço de preservação foi comparável à sanha mercantilista que predou o pau-brasil, desviou e envenenou rios em busca de metais, devastou florestas em lenha para transformar cana em açúcar.
Quais seriam, em termos práticos, os benefícios de se conhecer “a origem das espécies”?
Nenhum maior do que colocar a natureza sob domínio completo do homem
Ao longo do século XIX, com os desdobramentos de uma abordagem científica do mundo, a natureza acabou incorporada ao domínio humano não apenas por causa da sua utilidade. Mais do que a serventia – ou o lucro –, o conhecimento em si torna-se legítimo. Quais seriam, em termos práticos, os benefícios de se conhecer “a origem das espécies”? Nenhum maior do que colocar a natureza sob domínio completo do homem – ou do homem “civilizado”. Tratava-se, a partir daí, de conhecer para dominar, o que foi posto em prática de forma bastante agressiva no Velho e no Novo Mundo. Homem e natureza estavam em lados opostos, salvo quando isso punha em risco a nossa imagem civilizada – caso, por exemplo, do repúdio que surge em alguns círculos em relação aos tradicionais maus-tratos contra os animais.
No Brasil, a febre desenvolvimentista, que se abateu sobre nós ainda na primeira metade do século XX, via a natureza como obstáculo. Desenvolvimento, integração nacional, industrialização, desbravamento, civilização... Tudo o que era verde esmaeceu na bandeira da República. Em 1957, ao conceber Brasília, Lucio Costa expressou sua criação como um ato de domínio do homem sobre o território virgem. No plano piloto, os dois eixos que se cruzam perpendicularmente são a marca do triunfo do homem sobre a natureza selvagem.
Na década seguinte, o mundo assistiria ao surgimento de uma postura efetivamente ecológica em relação ao mundo natural. A agitação dos anos 1960 trouxe também a preocupação com os limites da capacidade de recuperação do ambiente degradado, expondo a forma irresponsável como a humanidade conduzia havia séculos seu suposto progresso. As conferências internacionais sobre o tema começaram a revelar uma outra postura da comunidade global em relação à natureza. Se o homem pode ser entendido como um ser constituinte do mundo natural, sua existência está inevitavelmente condicionada à compreensão e à preservação do meio ambiente. Este passa a ser visto não mais como uma fonte inesgotável de recursos, ou como uma fera a ser dominada, mas como patrimônio a ser preservado. Junto com esta consciência, o reforço de uma noção que transcende fins práticos: é preciso preservar a natureza porque ela é digna de ser preservada. Abraçar árvores nos faz mais humanos.
Resta saber, entretanto, se estamos dispostos a abrir mão de um modelo de desenvolvimento econômico generalizado no século XIX – a produção e o consumo de bens –, com o risco de deixarmos de existir como espécie.
Rodrigo Eliasé professor das Faculdades Integradas Simonsen e pesquisador da Revista de História.
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