O julgamento de um ex-escravo acusado de envenenar uma família branca em Porto Alegre foi marcado pelo medo da vingança da população negra
Paulo Roberto Staudt Moreira 9/9/2007
A sala fechada no Paço Municipal de Porto Alegre era um ambiente propício para o acúmulo de miasmas que poderiam causar males à saúde dos jurados que ali se encontravam. Por isso, o negociante Luiz Leyrand se dirigiu a uma das janelas e abriu-a, deixando entrar a refrescante brisa da madrugada de 5 de maio de 1872. Desde o dia anterior, permanecia trancado na sala um grupo de seletos cidadãos da capital da Província de São Pedro, composto de negociantes, funcionários públicos, médicos e advogados. Eles estavam ali para julgar um caso muito delicado, o do preto liberto (ex-escravo) Joaquim Mina, africano de cerca de 45 anos, acusado de tentar envenenar uma família branca da capital. A família penou doente por muito tempo, mas nenhum de seus membros faleceu.
Quando a janela foi aberta, os membros de júri puderam ouvir ao longe o soar de tambores. Naquela noite e em outras anteriores, os habitantes de Porto Alegre perceberam, atemorizados, o aumento do número de “reuniões de pretos” nos arredores da capital.
Na véspera do julgamento de Joaquim Mina, intensificaram-se as “danças e batuques de pretos” em toda a cidade. Os vereadores, em carta secreta ao chefe de Polícia, reclamaram da concessão de licenças para estas manifestações. A maior autoridade policial da Província respondeu que não dera permissão alguma e que os subdelegados seriam novamente avisados da proibição vigente, devendo os fiscais do município, sempre que soubessem de tais ajuntamentos, requerer “o necessário auxílio para dispersá-los”. Como os batuques ocorreram justamente no dia do julgamento de Joaquim Mina, é provável que o objetivo das mobilizações fosse pedir o auxílio dos orixás para o parceiro preso. Os escravos não perderam a oportunidade de avisar aos jurados e à sociedade que a comunidade negra acompanhava com atenção o processo contra um de seus líderes.
Não era estranho aos ouvidos de Leyrand – um experiente mercador – o eco dos “divertimentos” de negros. O censo daquele ano evidenciou que Porto Alegre tinha uma população total de 43.748 pessoas, sendo 8.070 destas escravizadas. Dos habitantes livres, somente 22.830 eram efetivamente descritos como “brancos”. A cidade tinha uma população não-branca de 20.918 pessoas – quase a metade do total.
Processos criminais contra libertos e cativos na sociedade escravista da época não eram raros, mas algumas circunstâncias tornavam aquele julgamento especial. Nos últimos dias de novembro de 1871, artigos na imprensa e boletins da polícia da capital da Província de São Pedro disseminaram o medo entre a população. O chefe de Polícia, Araújo Brusque, em ofício de 29 de novembro ao subdelegado do 2º distrito, ordenou o processo contra o preto forro Joaquim Mina, encontrado com “substâncias cáusticas e drogas, inclusive vidro moído”, as quais estariam sendo “propinadas” à família do cidadão José Rodrigues de Barros. O alerta fora dado pelo médico Israel Rodrigues Barcelos Filho, que, ao ser chamado para tratar da família de Barros, identificou sinais de envenenamento. Mais do que isso, uma das criadas negras da casa deixara involuntariamente cair perto de sua ama um papelzinho contendo substâncias estranhas. Tratava-se de uma conspiração.
Com raro dinamismo – que demonstra o temor que provocava a figura de um preto envenenador –, o subdelegado organizou uma perícia no dia seguinte. Os médicos convocados confirmaram a “propinação” de veneno de qualidade “cáustica e irritante”, e, com um misto de temor e respeito aos conhecimentos do negro Joaquim, declararam que “sem dúvida a propinação foi tão bem manejada, que seguir-se-ia a morte, porém lenta e quase imperceptivelmente”. Os “morcegos” – denominação popular dada aos policiais – prenderam Joaquim quando perambulava pelas ruas vendendo pão e o levaram para uma cela da Cadeia Civil. Na prisão, o perigoso envenenador disse chamar-se Joaquim Mina, cangueiro (trabalhador que carregava mercadorias e pessoas pelas ruas da cidade) e forro. Como viera da Costa da África muito novo, ignorava o nome de seus pais.
Os minas eram representantes de várias etnias africanas que no Brasil passaram a se auto-apresentar como grupo coeso. Joaquim portava com orgulho a referência à sua origem africana. Mais que isso, ser “mina” o identificava como integrante de uma das mais importantes nações do tráfico transatlântico de escravos. Avaliando que a passagem pela polícia seria rápida, Joaquim autodenominou-se Mina, como devia ser conhecido cotidianamente. Quando percebeu que a situação ficava delicada e que seria levado ao tribunal, ele passou a usar o sobrenome do seu antigo proprietário. No Auto de Qualificação, frente às autoridades policiais e judiciárias, abandonou a alcunha de identidade africana e disse chamar-se Joaquim da Cunha Vieira, sacando assim seu sobrenome “branco”.
Joaquim fora alforriado com 37 anos, quando faleceu seu proprietário, Francisco da Cunha Vieira, em 19 de maio de 1865, o qual justificou a carta de alforria como recompensa pelos bons serviços prestados, pois “sem ele e outro eu não posso viver”. O “outro” mencionado por seu senhor era o congo Francisco, libertado em 29 de maio do mesmo ano. As alforrias concedidas com a morte do senhor eram comuns no Brasil escravista e estavam condicionadas à obrigação de bom trabalho e fidelidade ao longo da vida do proprietário. Esta forma de concessão da liberdade era principalmente dirigida a escravos dedicados ao trabalho doméstico.
O africano foi julgado duas vezes, sendo a primeira no dia 4 de maio de 1872. Nesta data, cumprindo o ritual jurídico, as testemunhas foram colocadas em salas separadas para que uma não escutasse o depoimento da outra, e foi sorteado em uma urna o Júri de Sentença. Depois que a Promotoria e o defensor do réu descartaram alguns nomes, foram escolhidos os 12 jurados, e o primeiro deles, como presidente do Júri, colocou sua mão direita sobre os Santos Evangelhos. A seguir, jurou haver-se com “franqueza e verdade” conforme a sua consciência.
Segundo os autos do processo, Joaquim seduzia as criadas da casa da família Barros – escravas ou forras –, fazendo-as ministrar veneno em pequenas doses aos seus senhores. Isso ocorria havia anos, e Barros já dispensara três ou quatro escravas, manipuladas para esse fim pelo réu. Os desentendimentos entre Joaquim e aquela família vinham de longa data, surgidos de uma denúncia feita por Barros ao proprietário dele, que ocasionou um dos raros castigos sofridos pelo escravo. Joaquim foi açoitado, e, em seguida, passou a usar seu prestígio e seus conhecimentos de feiticeiro para – sem pressa – vingar-se de seu desafeto.
A última cativa seduzida, também apontada como ré no processo, chamava-se Silvana e tornou-se a principal acusadora de Joaquim. Nomeado curador de Silvana, o advogado Miranda e Castro apresentou uma interessante explicação para o caso. Segundo ele, Silvana era inocente neste “crime, revestido de todas as cores negras, com cortejo de circunstâncias aterradoras, friamente calculado para extinção de uma família inteira, inclusive inocentes crianças”. Se cabia a ela alguma responsabilidade em atos “maquinalmente executados”, assim agira “debaixo de pressão de terror e medo irresistível”. Segundo o advogado, era inquestionável que “Joaquim passava por feiticeiro e, mediante retribuição pecuniária, fornecia a escravos pós e outros objetos para serem lançados nas comidas e bebidas de seus senhores, cujas qualidades venenosas ignoravam, para o fim de amansá-los!”. Um gesto de descontrole de Joaquim Mina acabou dando certo crédito à argumentação do advogado. Ao defrontar-se com Silvana durante uma acareação, Joaquim falou claramente na frente de várias testemunhas: “Põe-te bem com Deus, que eu hei de me vingar de ti”. Atemorizada, Silvana acabou fugindo e foi julgada à revelia.
Preso desde o fim de novembro de 1871, Joaquim disse em seu depoimento estar “sofrendo inocentemente”. Demonstrando consciência de sua situação étnica e social e conhecimento dos meandros jurídicos, o acusado afirmou não ter testemunha alguma para “provar ou alegar” sua inocência, pois “sempre morou com companheiros pretos, mas testemunho de preto não serve”. Joaquim, visto como inimigo por ser estrangeiro, ex-escravo e feiticeiro, sabia que, sendo julgado por brancos em uma sociedade escravista, seus parentes e amigos pouco poderiam ajudá-lo. Depoimentos dos pretos com os quais sempre residira, companheiros negros como ele, talvez africanos, não seriam aceitos – “não serviam” – como prova de sua “boa índole” e “inocência”.
Logo na abertura do julgamento, quando Joaquim foi chamado a depor, começou uma discussão entre ele e os médicos. O réu alegou que entre as substâncias apreendidas com ele não existia veneno, mas “uns pós feitos de canela de boi com sabugo para limpar dentes, e que as demais eram inofensivas, contando-se a erva picão para urinas e outra de nome rasteira, também para dores de urina”. Na época, o picão já era conhecido da medicina, como consta no Dicionário de Medicina Doméstica e Popular do Dr. Langaard, que recomendava a erva como “antiescorbútico e desobstruente”, sendo o “suco das folhas prescrito contra a icterícia”. Mas o que iorubás como Joaquim Mina sabiam muito bem é que as plantas podem ao mesmo tempo sanar os males do corpo e interferir nos domínios da alma. Segundo o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, o picão era usado em “trabalhos para fazer alguém ter pesadelos” e como “proteção contra a ganância”.
Os senhores permitiam que os escravos usassem métodos próprios de cura. Alguns deles inclusive acreditavam nestas técnicas: muitas cartas de alforria foram retribuições pelo tratamento de senhores doentes. As curas domésticas também diminuíam o custo de produção, poupando gastos com serviços médicos. Além disso, o tratamento dos cativos em casa evitava que as autoridades soubessem dos maus-tratos a eles infligidos. Pelo processo montado contra Joaquim Mina ficamos sabendo que ele vendia, entre outras coisas, garrafas contendo um preparado de ervas, ao preço de 32$000 réis, “próprio para amansar mulheres”. Havia uma demanda na cidade por “trabalhos” que deixassem as mulheres mais tranqüilas, acessíveis, sensíveis à sedução masculina.
Os jurados se retiraram para a sala secreta das conferências e, demonstrando sua hesitação, lá permaneceram do dia 4 até a madrugada do dia seguinte, dividindo-se quanto à resposta dos quesitos apresentados pelo juiz. Nove jurados acharam que Joaquim fornecera as substâncias para que Silvana as ministrasse à família Barros e sete consideraram que assim procedera para matá-los. O juiz, então, condenou o preto Mina a 20 anos de galés – trabalhos forçados – e ao pagamento das despesas oriundas do processo, e fez apelação ao Tribunal da Relação.
Durante o julgamento, os tambores dos negros que foram para as ruas dar seu apoio a Joaquim não pararam de tocar, deixando em estado de alerta a população branca de Porto Alegre. Os batuques não eram algo incomum na cidade, onde havia um grande contingente de negros. As autoridades policiais costumavam expedir permissões – com limites bem precisos – para manifestações religiosas africanas. Em 1850, a preta forra Maria José, moradora na Rua do Arvoredo nº 64, informava que fora cassada a licença que tinha para “brincar ao modo de suas nações” em algumas casas na Rua do Rosário e sugeria que “os brinquedos” fossem na Várzea desta cidade. Maria José argumentava que esses divertimentos eram uma distração inocente, aludindo também às esmolas ganhas nessas ocasiões, que seriam aplicadas em socorros mútuos nos casos de enfermidades e para enterros.
O delegado aprovou a concessão de licença dizendo que não havia “nenhuma dúvida” em concedê-la, desde que os divertimentos ocorressem fora do centro, “por causa das queixas que costumam fazer os vizinhos, em virtude do barulho que fazem nos batuques”. A única restrição eram os enterros, “por serem atos que eles praticam contra a nossa religião”. O alvará de licença foi passado pelo prazo de um ano, ocorrendo somente aos domingos e nos dias santos, devendo cessar o divertimento à noite, com a condição de não haver qualquer desordem e somente participando escravos com ordem por escrito de seus senhores.
Nesta troca de correspondência com o delegado de Polícia, pode-se perceber que Maria José disfarçava o sentido religioso do ato para o qual pedia autorização, caracterizando-o apenas como “divertimento”, “distração”, “brinquedo”. Mas o policial, ciente das reais intenções dos indivíduos que deveria vigiar, tratava a manifestação de “batuque”. No Rio Grande do Sul, batuque não é só uma dança e nem deve ser reduzido a uma festa. É, sim, sinônimo de “religião de negro”.
Mas o caso de Joaquim não estava concluído. Em 1º de maio de 1873, com o réu ainda preso, foi marcada uma nova reunião do júri. Se antes os jurados já estavam confusos, desta vez a situação ficou mais complexa. Uma das testemunhas de acusação acrescentou uma informação que desqualificava o primeiro exame feito pelos médicos. Falando da investigação feita no quarto do cortiço onde Joaquim residia, o negociante João Braga descreveu uma cena curiosa. Entre as substâncias apreendidas havia uns pós pretos, sobre os quais recaíam suspeitas de serem venenos perigosíssimos. Indagado a respeito daquelas drogas, o africano respondeu “que não eram nada e para o mostrar tirou um bocadinho com o dedo e pôs na língua”.
Joaquim falava com propriedade de ervas e pós que os juízes, os médicos e as testemunhas desconheciam – tanto os medicinais como os de uso estético. Quando provou com o dedo uma das substâncias “venenosas”, zombou da ignorância de seus contemporâneos brancos acerca da cultura que ele dominava, acessível unicamente pela cor da pele e pela origem africana. O medo que a existência de elementos como Joaquim despertava na elite talvez tenha influenciado a decisão dos jurados. Reunidos, os membros do júri responderam a apenas um dos quesitos, afirmando que o africano não fornecera as substâncias. Nove deles inocentaram Joaquim: o feiticeiro foi absolvido.
O processo contra Joaquim mostra que a possível ameaça residia nas próprias cozinhas dos senhores, na intimidade das suas casas, e poderia, num ato quase indefensável, atingir todos os membros da família, causando penosos danos físicos ou até a morte. Um pajem ou uma cozinheira submissos poderiam fazer chegar inesperadamente a seus senhores, de várias formas, algum tipo de veneno corriqueiro, utilizado em suas práticas caseiras. Este era o caso do Verde Paris, ou verdete, um corante muito usado, que tinha em sua composição química o arsênico. A cor verde tornava esta substância ideal para ser depositada sorrateiramente no chimarrão dos senhores e de suas famílias.
Intermediários na relação com o Além, os feiticeiros aliavam práticas mágicas a elementos da medicina popular. Eram temidos pelas autoridades por possuírem perigosos conhecimentos (venenos e remédios) e desfrutarem de grande prestígio entre escravos e negros livres, reunindo um grande número de seguidores. A idéia de uma vingança dos negros associada à da morte lenta e imperceptível trazia à tona o medo diante destes inimigos domésticos, imprescindíveis para a economia daquela sociedade.
Paulo Roberto Staudt Moreira é professor da Unisinos (RS) e autor do livro Os Cativos e os Homens de Bem – Experiências Negras no Espaço Urbano. Porto Alegre: Edições EST, 2003.
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