Células na base do cérebro controlam a fome e acionam os mecanismos neurais da recompensa
FRANCISCO BICUDO | Edição 199 - Setembro de 2012
Revista Pesquisa Fapesp
Um grupo de apenas 5 mil neurônios localizados na base do cérebro, em uma região chamada hipotálamo, não controla somente a fome e a saciedade. Especializados na produção de dois dos comunicadores químicos cerebrais – o neuropeptídeo Y (NPY) e o peptídeo relacionado ao agouti (AgRP) –, esses neurônios atuam também sobre os mecanismos cerebrais de recompensa, que coordenam as sensações de prazer. O duplo papel dessas células foi observado por um grupo de pesquisadores brasileiros e norte-americanos e descrito em junho na revista Nature Neuroscience. “Foi a primeira vez que se registrou a influência dessas células sobre outras funções do sistema nervoso central”, conta o médico Marcelo Dietrich, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e primeiro autor do artigo.
Dietrich suspeitava havia algum tempo de que os neurônios produtores de NPY e AgRP pudessem manter conexões com outras áreas cerebrais por causa dos efeitos colaterais provocados por medicamentos inibidores de apetite. Compostos como a sibutramina, retirada do mercado em vários países e vendida com retenção de receita no Brasil, reduzem a fome por induzir efeitos semelhantes ao da desativação desses neurônios.Mas também originam uma série de alterações no organismo, como a melhora do humor – a sibutramina foi desenvolvida para ser usada como antidepressivo – e o aumento do risco de problemas cardiovasculares. “Imaginávamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP não estariam isolados ou associados apenas à fome”, conta Dietrich. “Pensamos que também pudessem desempenhar algum papel em funções cognitivas mais sofisticadas e decidimos ver se estavam envolvidos nos mecanismos de recompensa”, diz o pesquisador, que atualmente passa uma temporada no laboratório de Tamas Horvath na Universidade Yale, nos Estados Unidos.
A fim de testar possíveis conexões desses neurônios com os de outras regiões cerebrais, Dietrich realizou uma série de experimentos com roedores geneticamente alterados para apresentar menor atividade dos neurônios do apetite. “As células não eram eliminadas, mas funcionavam de maneira deficiente, minimizando assim a sensação de fome”, explica.
A consequência esperada era que outros mecanismos associados àquele grupo de neurônios também se mostrassem menos ativos. Mas não foi o que ocorreu. Inicialmente os camundongos foram soltos em uma caixa de acrílico em que foi colocado um pequeno cilindro de plástico para avaliar como se comportavam. Como os roedores são curiosos e gostam de conhecer tudo o que é novo no ambiente, o grau de exploração serve como termômetro de ativação dos mecanismos de recompensa. Os pesquisadores imaginavam que eles fossem se interessar pouco pelo objeto novo, uma vez que seus neurônios da fome não estavam funcionando bem. Mas observaram o oposto. Mal entraram na caixa, os roedores caminhavam freneticamente de um lado para o outro, explorando as novidades e tomando informações sobre o ambiente até então desconhecido. Esse era o primeiro indício de que os mecanismos de recompensa estavam respondendo de forma acentuada.
Numa segunda etapa, o pesquisador repetiu os testes aplicando nos animais uma injeção de cocaína, que sabidamente ativa as vias neurológicas de recompensa. Quanto maior a dose, mais os camundongos se movimentavam pelo ambiente. Por fim, Dietrich estabeleceu um roteiro em que determinava a injeção de cocaína durante cinco dias, matinha os animais em abstinência por quatro dias, e depois voltava a aplicar a droga. “O cérebro desenvolve uma espécie de memória dos efeitos da cocaína, cria dependência e responde de forma ainda mais intensa ao final dos testes”, lembra o pesquisador.
Dietrich, então, sofisticou um pouco mais o teste para verificar se a inibição da atividade dos neurônios produtores de NPY e AgRP aumentava a busca por situações prazerosas. Desta vez ele colocou os animais em uma caixa que, de um lado, dava acesso a outra caixa contendo água com cocaína e, de outro, estava conectada a uma terceira caixa com um recipiente com água pura. Num primeiro momento, ele colocou os animais na caixa central e os deixou explorar as outras duas – os animais visitaram as duas caixas mais ou menos o mesmo número de vezes. Depois, Dietrich fechou o acesso à caixa com água pura e deixou os animais visitarem apenas aquela em que havia cocaína. Numa etapa seguinte, fez o inverso. Bloqueou o acesso à cocaína, permitindo as visitas só à caixa com água pura. Por fim, os camundongos voltaram a ter acesso às duas caixas. Desta vez, porém, as visitas ao ambiente com cocaína foram duas vezes mais frequentes do que à caixa só com água. Foi a confirmação da busca pelo prazer.
Questão de idade
“Observamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP estão conectados aos neurônios que produzem dopamina, o neurotransmissor do prazer”, explica Dietrich. “Mas essa relação se dá de forma inversa, quando os neurônios do apetite são inibidos, os produtores de dopamina se tornam mais ativos, acentuando o funcionamento dos mecanismos de recompensa”, conta.
Mas restava uma dúvida. Os testes haviam sido feitos com camundongos transgênicos adultos que haviam nascido sem a proteína que ativa os neurônios da fome e os pesquisadores haviam observado que, quanto mais velho o animal, menor o efeito.
Para avaliar a influência da idade, foi preciso mudar de estratégia. Eles inativaram os neurônios da fome em animais com idades diferentes (5, 10, 15 e 20 dias de vida e depois de adulto) e repetiram os testes. Os resultados confirmaram: a inativação dos neurônios da fome nos filhotes mais novos intensificava a ação do mecanismo de recompensa.
Para Dietrich, essa é uma evidência de que é na primeira semana de vida dos roedores que essas células se conectam com as de outras áreas cerebrais. Nos seres humanos, esse estágio do desenvolvimento cerebral corresponde ao do terceiro trimestre da gestação. “Modificar o funcionamento desses neurônios no começo do desenvolvimento talvez gere consequências que só apareçam bem mais tarde na vida, aumentando a suscetibilidade à adição por drogas”, suspeita o pesquisador, que começou a investigar essa função do hipotálamo durante o doutorado na UFRGS, sob a orientação de Diogo Onofre de Souza.
Dietrich pretende ainda compreender a influência da alimentação de recém-nascidos sobre o mecanismo de busca de prazer. “Queremos entender como as células que regulam o apetite reagem quando as mães, em vez de amamentar, dão papinha e outros alimentos em substituição ao leite materno”, conta. “No limite, queremos ser capazes de um dia conseguir sugerir quais são os nutrientes e a quantidade de calorias recomendáveis para que essas conexões se formem de maneira adequada.”
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