quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Cor nos fungos (usos de biofilme de mandioca)

Filme sensível avisa ao consumidor deterioração dos alimentos

EVANILDO DA SILVEIRA | Edição 183 - Maio de 2011
Revista Pesquisa FAPESP
© EDUARDO CESAR

A tradicional mandioca, originária do sudoeste da Amazônia e consumida no Brasil desde muito antes da chegada dos portugueses – era a base alimentar dos indígenas –, ganhou novas e avançadas funções tecnológicas. Filmes plásticos biodegradáveis feitos a partir do amido desse vegetal poderão ser usados na produção de uma embalagem ativa, capaz de inibir o crescimento de fungos, ou inteligente, que muda de cor quando o alimento começa a estragar. O polímero também está sendo testado em cirurgias cardíacas, tanto para revestir o implante venoso, dando a ele maior resistência na fase inicial, como para a liberação de fármacos.

Os estudos que resultaram nos filmes plásticos feitos do amido da mandioca, um polissacarídeo que tem como função principal armazenar a energia produzida pela fotossíntese, tiveram início em 2004 na Universidade de São Paulo (USP). As películas que o grupo de pesquisa coordenado pela professora Carmen Cecília Tadini, do Laboratório de Engenharia de Alimentos do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP, desenvolve têm em comum a adição em sua composição de glicerol, substância plastificante conhecida comercialmente como glicerina. Subproduto da fabricação de biodiesel, o glicerol tem custo baixo.

São três tipos de filme plástico estudados. Cada um é caracterizado pelas substâncias presentes em sua composição, sendo que dois deles contêm nanopartículas de argila para torná-los mais resistentes. No caso da película antimicrobiana, são os óleos essenciais de cravo e canela que possuem princípios ativos que agem contra microrganismos. Testes realizados em laboratório com o polímero contendo essas essências mostraram que ele é capaz de impedir o crescimento de fungos. “Hoje esses microrganismos são combatidos com substâncias antifúngicas aplicadas no produto embalado”, conta Carmen. “Nos ensaios feitos com os filmes que desenvolvemos constatamos que essa capacidade perdura por até sete dias.”

Um dos desafios que os pesquisadores precisaram vencer para produzir esse filme foi determinar a dosagem exata das essências de cravo e canela que deveriam entrar em sua composição. Se muito alta, o odor forte e característico dessas especiarias poderia passar para os alimentos embalados e, se pequena demais, não teria eficácia para evitar o crescimento dos micróbios. O desafio de resolver o problema coube à doutoranda Ana Cristina de Souza, que fez um estágio no Laboratório de Alta Pressão e Tecnologia Supercrítica, da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde aprendeu a dominar a técnica que usa gás carbônico em estado supercrítico para incorporar os óleos essenciais aos polímeros. Ela explica que o estado supercrítico é alcançado quando a temperatura e a pressão de uma substância estão acima do seu ponto crítico – que ocorre quando se chega a uma determinada pressão e o equilíbrio líquido-vapor deixa de existir. A substância nesse estado tem grandes aplicações em processos de extração e separação química.
© EDUARDO CESAR
Filme rosa possui extrato de uva na composição e o transparente, canela

O segundo plástico é feito a partir da mesma base do primeiro, com amido de mandioca, glicerina e nanopartículas de argila. O que o diferencia é o quarto elemento de sua composição, que é um extrato rico em antocianinas, componente natural de frutas roxas ou arroxeadas, como uva, açaí, jabuticaba e amora, por exemplo. “A característica das antocianinas que aproveitamos em nosso trabalho é sua capacidade de mudar de cor, conforme muda o seu pH”, explica Carmen. “Como a alteração do pH é um dos primeiros indicativos de que um produto alimentício está começando a se deteriorar, usamos isso para produzir um filme para embalagens inteligentes. Ela muda de cor quando o alimento começa a estragar. Uma paleta de cores na embalagem pode indicar ao consumidor se o produto está bom ou não.”

O terceiro polímero está sendo testado junto com a equipe do professor José Eduardo Krieger, diretor do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração (InCor), da Faculdade de Medicina da USP. O plástico é empregado com o objetivo de melhorar a eficiência dos enxertos venosos utilizados nas cirurgias de revascularização miocárdica, mais conhecidas como pontes de safena.

O filme utilizado não tem nanopartículas de argila em sua composição, porque a ideia é que, com o tempo, ele possa ser absorvido pelo organismo do paciente. Além do amido de mandioca e do glicerol, ele contém uma substância chamada carboximetilcelulose (CMC), um polissacarídeo extraído da celulose que tem a função de melhorar as propriedades mecânicas do plástico.

Resistência natural - Nos implantes de ponte de safena, quando essa veia é retirada da perna e colocada no coração para funcionar como artéria, a exigência por resistência é maior se comparada à sua função natural. Krieger explica que a velocidade do fluxo e a pressão do sangue circulante nas veias são menores do que nas artérias. Por isso a parede das primeiras é mais fina. Quando uma veia, como é o caso da safena, é implantada no coração, ela sofre uma alteração brusca de função e deve se adaptar rapidamente ao novo papel. Entender como isso funciona e o que ocorre quando uma veia se “arterializa” é o objetivo dessa linha de pesquisa de Krieger no InCor. “Queremos saber que genes e proteínas estão envolvidos nesse processo”, explica.

Uma vez entendido isso, pode-se pensar em novas intervenções para melhorar o desempenho e tornar mais duradoura a ponte de safena. Krieger explica que a perda dos implantes venosos chega a 50% após 10 anos, como se a “garantia expirasse em metade dos casos”. O trabalho da equipe visa buscar alternativa para aumentar esse prazo. Para isso o filme desenvolvido por Carmen e sua equipe está sendo testado em duas funções. Na primeira, ele é usado para embrulhar, ou seja, revestir externamente o implante venoso, dando a ele maior resistência e sustentação nas fases iniciais após a cirurgia. Depois disso a veia arterializada adquire sustentação própria. Assim o filme perde sua função e a absorção pelo organismo torna-se vantajosa.
© EDUARDO CESAR
Embalagem inteligente para uvas que muda de cor se elas estragarem

Na segunda função o filme é usado como plataforma para liberar drogas ou substâncias. “Se descobrirmos os genes ou proteínas envolvidos na arterialização, que a tornam diferente em cada paciente, poderemos interferir no processo com finalidade terapêutica”, diz Krieger. “Assim, se um gene está mais ativo do que deveria, podemos desativá-lo com drogas, por exemplo.” Para que a película desenvolvida por Carmen possa desempenhar essa função, ela deve ser impregnada com drogas, da mesma forma que os outros plásticos com substâncias antimicrobianas ou que a fazem mudar de cor. Por enquanto, os testes no laboratório de Krieger são feitos in vitro com segmentos vasculares e com células e em modelos experimentais utilizando ratos. Mais adiante os experimentos poderão ser feitos em coelhos e porcos.

O projeto de desenvolvimento do filme para envolver as veias do coração é mais recente. Começou em 2009, com o doutorado de Helena Aguiar e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e conta com a participação do grupo de pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos, da USP, liderado pelo professor Douglas Franco. O trabalho que está mais adiantado é o de desenvolvimento do plástico com propriedades antimicrobianas, iniciado em 2004. “Já estamos na fase de viabilizar a produção em escala industrial”, revela Carmen. Esse projeto teve financiamento da FAPESP. Para o desenvolvimento do filme inteligente o grupo obteve bolsas do CNPq e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Homogêneo e biodegradável – A evolução da integração das nanopartículas de argila aos plásticos contou com o trabalho da doutoranda Otilia de Carvalho, que fez um estágio na Universidade de Estrasburgo, na França, mais precisamente no Laboratório de Engenharia e de Polímeros e Altas Tecnologias (Lipht, na sigla em francês). “O meu principal objetivo durante o estágio foi elaborar um filme à base de amido, nanocomposto com argila e plastificado com glicerol”, conta. “Como há baixa compatibilidade entre o amido e a argila nativa, testei duas modificações e obtive materiais bem mais homogêneos.”

Um estudo apresentado em abril pelo Instituto Fraunhofer, da Alemanha, também mostra a utilização de filmes que mudam de cor quando alimentos como carnes e peixes estão deteriorados. A pesquisa, conduzida pela professora Anna Hezinger, utilizou sensores químicos em embalagens plásticas que respondem às aminas, moléculas presentes na deterioração das carnes, e mudam a cor do filme que envolve o produto. Anna teve financiamento do Ministério de Educação e Pesquisa alemão e agora busca parceiros na indústria para produzir os sensores químicos para embalagens.

Quanto aos plásticos biodegradáveis em geral, é um campo que está em desenvolvimento no mundo. Existem hoje muitos desses filmes sendo produzidos em vários países como Japão, Estados Unidos, Holanda e Brasil. Eles são produzidos a partir de várias fontes, como mandioca, milho, batata, soja e celulose. No Brasil está sendo produzido em escala piloto, a partir do açúcar da cana, um plástico biodegradável com propriedades similares às do polipropileno. O produto, chamado de Biocycle, foi desenvolvido em parceria entre o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Centro de Tecnologia da Copersucar (CTC), no início dos anos 2000. “Hoje a tecnologia de produção encontra-se consolidada”, diz o gerente administrativo Eduardo Brondi, da empresa PHB que produz o bioplástico. “Toda a produção é destinada ao desenvolvimento e teste de aplicações, em conjunto com inúmeros parceiros em todo o mundo.” Entre essas aplicações estão peças automotivas, brinquedos, copos e talheres.

De acordo com um estudo da European Bioplastics, associação criada em 2006 e que representa os fabricantes, processadores e usuários de bioplásticos e polímeros biodegradáveis e seus produtos derivados, em 2007, dado mais recente disponível, a capacidade de produção mundial de bioplásticos equivalia a cerca 0,3% da produção mundial de plásticos, derivados principalmente de fontes petroquímicas. A previsão é que a produção de bioplásticos será de 2,33 milhões de toneladas em 2013 e de 3,45 milhões de toneladas em 2020.

Artigos científicos
1. KECHICHIAN, V. et al. Natural antimicrobial ingredients incorporated in biodegradable films based on cassava starch. LWT – Food Science and Technology. v. 43, p. 1.088-94. 2010.
2. VEIGA-SANTOS, P. et al. Development and evaluation of a novel pH indicator biodegradable film based on cassava starch. Journal of Applied Polymer Science. v. 120, p. 1.069-79. 2011.

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