quarta-feira, 13 de março de 2013

A medicina mística na Alta Idade Média

Texto gentilmente cedido pelo Neto Geraldes (historiador e médico) do blog: Xarope de letrinhas (http://netogeraldes.blogspot.com.br/)
Data: 10.02.2013

O advento do cristianismo e seu processo de consolidação construíram uma Igreja poderosa e hegemônica, que mantinha uma relação de mão dupla com o Estado, ao qual dava sustentação, interferindo no imaginário popular e de cujas decisões dependia para sua manutenção e fortalecimento.

Num processo que vinha ocorrendo desde a decadência do Império Romano e que a Igreja incorporou e sustentou, a doença vai sendo percebida como tendo causas sobrenaturais, como consequência do pecado, como castigo divino. A racionalidade pregada pelos ensinamentos hipocráticos e galênicos deixa de ser perseguida. Na Alta Idade Média, a prática médica passa a ser feita principalmente pelos monges, em nome da caridade cristã. 

O corpo passa a ser visto como a prisão da alma. A Igreja vai criando uma moral rígida, responsabilizando os que se afastavam dessa moral. As doenças são consideradas como provas ou castigos enviados pela divindade e seriam compensadas no futuro celestial. Ao mesmo tempo em que era um castigo divino a doença poderia significar a redenção da alma. Jacques Le Goff acentua que tudo o que é relacionado ao sexo vai se tornado pecaminoso, deve ser desprezado, refreado e isso se manifesta mais intensamente no corpo feminino que é visto como arma do diabo. Diversos tabus surgem e tem guarida no imaginário medieval, com destaque para os relacionados com a menstruação. Relacionamento sexual durante o período menstrual resultava em filhos leprosos. A lepra na alta idade média era a expressão simbólica, a essência de doença, enfermidade do corpo e da alma. Gregório de Tours conta que Constantino teria ficado leproso por perseguir os cristãos e curou-se após sua conversão ao cristianismo. 

Um dos fatores importantes na consolidação do cristianismo foi a introdução de intermediários nas reivindicações a Deus, então uma figura longínqua e de acesso difícil, principalmente às pessoas com diferentes tradições místicas, com seus deuses capazes de curar e espantar os males. Ocorreu então na Idade Média grande profusão de santos. Vários deles passaram a ser invocados para auxiliar na cura de diversos males: Santa Luzia, para as doenças dos olhos, São Vito e São Guido para a coréia, São Lázaro para a lepra. Santa Águeda auxiliava as doenças da mama, Santa Apolônia era invocada em casos de dor de dente, São Brás para os males da garganta. 
Cosme e Damião. Fra Angélico

Cosme e Damião, os santos gêmeos, foram dos primeiros a serem cultuados e sua tradição é bastante rica. Consta que viveram no século III, eram árabes e filhos de pais cristãos. Existem registros que atestam o culto a eles desde o século V, com relatos da existência nas igrejas de um certo óleo com poder de cura. Diz a tradição que foram perseguidos por Diocleciano e martirizados. São cultuados até hoje e tornaram-se padroeiros de várias profissões relacionadas à saúde. Diz uma lenda famosa, que foi imortalizada por Fra Angelico em um de seus quadros, que São Cosme e Damião, certa ocasião, para curarem um enfermo com a perna gangrenada transplantaram-lhe, com sucesso, a perna de um etíope negro que já tinha sido sepultado.

Os primeiros médicos cristãos são sacerdotes, que enfatizam a necessidade da fé. Para curar o corpo, é preciso curar a alma. As doenças tem causas místicas: possessão demoníaca, associação com o pecado. Jejuns e vigília tornam-se práticas comuns de purificação. 

Na Alta Idade Média começaram a surgir os locais onde eram acolhidos doentes e peregrinos. Uma das decisões do Concílio de Nicéia em 325, convocado por Constantino foi que cada cidade deveria ter um xenodóquio, estabelecimento destinado à acolhida de peregrinos doentes. Constantino e Juliano construíram outros hospitais notadamente em Constantinopla, alguns para receber os portadores de lepra, que eram rechaçados pela população e acolhidos nesses locais, graças à caridade cristã. No ano de 370 há o relato da fundação da mais antiga casa de saúde, por São Basílio em Cesarea na Capadócia. Em 400, uma nobre romana chamada Fabíola, convertida ao cristianismo, manda erguer o primeiro grande hospital, chamado de Nosocomium, influenciada pelas pregações de São Jerônimo. 

Esses primeiros hospitais na verdade apenas acolhiam o doente, proporcionavam-lhe alimento, hospitalidade e apoio espiritual. O tratamento das enfermidades era feito em segundo plano. Os primeiro hospital destinado ao tratamento dos doentes parece ter sido o Hotel-Dieu de Lyon em 542. Diversos estabelecimentos monásticos foram criados com diferentes denominações: Infirmarium, para os monges doentes, Xenodoquium para os peregrinos estrangeiros, Gerontochium para os velhos, Orphanotropium, para os órfãos, Nosocomium para os doentes em geral e Echinodochium leprosorum para os leprosos. 

Posted by Neto Geraldes
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