Bonitas, nutritivas, saborosas e pouco calóricas – as flores comestíveis são uma festa para o paladar
Há muitas primaveras — muitas mesmo —, o cravo tem insistido em brigar com a rosa na famosa canção infantil. O resultado dessa violência botânica gratuita? Um ferido, a outra despedaçada e crianças impressionadas. Quer dar um melhor destino para as pétalas de ambos? Comece decorando uma boa salada!
Isso mesmo. Mas só se as duas espécies forem de procedência orgânica, livres de pesticidas e outros tipos de contaminantes tóxicos. Os cravos túnicos (Tagetes patula ou Tagetes erecta) darão um leve toque de amargor, além de emprestar beleza ao conjunto, com suas pétalas rugosas e de coloração amarelo-limão ou tangerina. No caso das rosas (Rosa spp), despreze apenas a base esbranquiçada de cada pétala, lave-as suavemente e salpique sobre uma salada de folhas verdes. Sua consistência aveludada, aliada a um sabor adocicado e levemente perfumado, vai adicionar um toque de sofisticação ao seu prato.
Figurinha carimbada da culinária oriental — especialmente da cozinha árabe —, a rosa foi muito popular na Inglaterra vitoriana do século 19. Suas pétalas podiam ser desidratadas para aromatizar o chá da rainha, ser conservadas em vinagre para dar mais sabor às saladas ou até mesmo ser glaceadas com claras de ovos e açúcar para enfeitar e emprestar perfume a doces variados.
Primavera no prato
Muitos ainda se surpreendem com as embalagens de plástico transparente, repletas de flores coloridas, em meio às gôndolas refrigeradas de verduras e legumes dos supermercados brasileiros — retrato contemporâneo que faz parte de uma longa tradição gastronômico-floral da humanidade que remonta, no mínimo, aos antigos egípcios. Por outro lado, há aqueles que não se dão conta de terem, por muitas vezes, saboreado flores em sua dieta habitual.
Isto porque, alcaparras, por exemplo, são botões da flor Capparis spinosa. A alcachofra, o brócolis e a couve-flor, só para ficar em três notórios frequentadores de nossas mesas, também são flores. Em nome da precisão botânica, seriam, na realidade, inflorescências — nomenclatura que define estruturas que reúnem mais de uma flor em um mesmo pedúnculo. Descomplicando: cada um ao seu modo, seriam pequenos “ramalhetes” naturais.
Mas ninguém em sã consciência presentearia alguém com um buquê de brócolis, ou enfeitaria um vaso na sala com couve-flor. Logo, a muita gente causa maior estranheza se imaginar mastigando pétalas e sépalas de flores coloridas e de beleza ornamental, como rosas, violetas, begônias, calêndulas, crisântemos, tulipas, alfazemas e amores-perfeitos. Mas elas têm frequentado com cada vez maior assiduidade os cardápios dos restaurantes, acompanhando saladas, sopas, doces, sorvetes, no interior de cubos de gelo das bebidas, e onde mais a imaginação permitir.
“Algumas espécies menos conhecidas do grande público, como as cravinas e as verbenas, também começam a marcar presença”, afirma Giulio Cesare Stancato, pesquisador do Centro de Horticultura do Instituto Agronômico, vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Stancato frisa que é muito importante buscar produtores especializados e confiáveis e que se deve evitar a ingestão aleatória de flores sem a devida orientação.
“Existem flores que possuem princípios tóxicos em sua estrutura fitoquímica e não devem ser usadas na alimentação humana de forma alguma”, alerta o pesquisador, “como algumas flores ornamentais populares como lírio, copo-de-leite, violeta-africana, bico-de-papagaio e azaleia, entre outras”.
Floresce um novo mercado
Embora ainda responda por um parcela ínfima do total da produção de flores de corte e de flores envasadas do país, voltadas para a aplicação ornamental e para a indústria de essências aromáticas, o mercado de flores comestíveis orgânicas tem-se desenvolvido muito na última década e promete desabrochar em variedade e importância econômica nos próximos anos.
“Elas têm um valor agregado significativo”, explica Deborah Orr, proprietária de uma produtora orgânica situada em Cerquilho, no interior de São Paulo, especializada na venda de flores comestíveis, ervas finas frescas e brotos para restaurantes refinados da Capital. Entre as flores comestíveis que cultiva, destacam-se não apenas flores de beleza ornamental, como crisântemo, borago, capuchinha, amor-perfeito, mas também flores de legumes como a flor-de-abóbora – também conhecida como cambuquira – ou de ervas, como a flor-de-coentro e a flor-de-manjericão.
Além disso, Deborah destaca que alguns brotos de flores também são muito apreciados pelos chefs "como os brotos de girassol, que são ótimos acompanhantes para saladas”. Os paulistas lideram a produção nacional de flores orgânicas comestíveis, seguidos pelos mineiros
Beleza que nutre
Mas, além da beleza das cores, do perfume e das sutis nuances de sabor, será que as flores comestíveis são, de fato, nutritivas? Ainda há poucas pesquisas científicas dedicadas ao setor, mas elas parecem indicar resultados muito positivos quanto ao aspecto nutricional das flores, como as constatações presentes na dissertação de mestrado de Patrícia Yuasa Niisu, defendida junto à Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp.
Sua pesquisa revelou que uma das flores comestíveis mais consumidas, a capuchinha ou nastúrcio (Tropaeolum majus), é rica em luteína, carotenoide associado à prevenção de problemas oftamológicos como a catarata e a degeneração macular — principal causa de cegueira entre indivíduos com mais de 55 anos de idade. “Carotenoides são pigmentos amplamente distribuídos na natureza, responsáveis pelas cores laranja, amarela e vermelha de diversos tecidos.
Embora não haja uma recomendação formal quanto à quantidade a ser ingerida, alguns estudos apontam que o consumo prudente dessas substâncias pode auxiliar no fortalecimento do sistema imunológico e na redução de doenças degenerativas”, afirma a pesquisadora.
Flores de fé
Embora o amor-perfeito seja considerado por muitos espíritos mais religiosos como um representante da Santíssima Trindade por causa da sua pigmentação tricolor, poucas plantas arrastam em seu nome tanta devoção religiosa quanto a ora-pro-nobis. Muito apreciada na culinária mineira, principalmente por suas folhas, a ora-pro-nobis recebe este nome do latim (que significa “orai-por-nós” em português) em razão de uma lenda. Nela, a planta faria parte do jardim de um padre que vivia rezando em voz alta, enquanto vizinhos aproveitavam sua distração para colher escondidos as folhas da planta e adicioná-las a suas refeições.
As folhas da ora-pro-nobis são seu carro-chefe, mas se engana quem pensa que suas delicadas e brancas flores não podem ser aproveitadas na culinária. O apicultor e pesquisador paulista de origem grega Nikolaos Mitiotis, que se dedicava ao estudo da ora-pro-nobis (Pereskia aculeata) aplicada à apicultura, acabou se rendendo — assim como as abelhas que estudava — ao sabor levemente adocicado de suas flores.
Segundo ele, as saladas floridas assumem dois valores nutritivos distintos conforme a hora da colheita. “Se forem colhidas nas primeiras horas da manhã, antes de serem visitadas por abelhas e demais insetos polinizadores, a salada resultante terá maior concentração proteica. Afinal, cada flor carrega em si cerca de 15 a 20 miligramas de néctar e pólen — e o pólen é quase proteína pura”.
Mitiotis aconselha temperar a salada com limão-cravo ou vinagre de maçã, além de adicionar à mistura algumas folhas de rúcula, a fim de dar um sabor mais picante ao conjunto.
Biologia e simbolismo
"Sempre haverá aqueles que creditam valores afrodisíacos ao consumo de flores (algo não amparado pela ciência). Em termos estritamente botânicos, contudo, as flores são os órgãos reprodutivos dos diversos integrantes de uma subdivisão do reino vegetal batizada de angiospermas". Nas flores, encontram-se as estruturas masculinas (estame ou androceu) e femininas (pistilo ou gineceu). Enquanto as sépalas formam o cálice na base da flor e protegem as estruturas mais internas como o ovário, as pétalas têm a função de atrair insetos polinizadores e, em alguns casos, paladares humanos.
Do ponto de vista simbólico, flores foram associadas ao longo da história humana ao renascimento e à transcendência. No pensamento místico oriental — principalmente no budismo —, isso fica muito claro no exemplo da flor-de-lótus (Nelumbo nucifera), que nasce e desabrocha no meio do lodo dos pântanos. E, embora possa parecer um pouco sacrílego, também podemos comer suas pétalas brancas ou levemente rosadas — bem como suas folhas, sementes e rizomas.
Nos anos 1970, jovens de diversas partes do mundo pediram que usássemos flores nos cabelos. Transformadas em ícone do movimento hippie, as flores eram quase onipresentes nas estampas psicodélicas da contracultura, como um gesto de paz em oposição à violência do sistema, das armas e das guerras que ceifavam as vidas de jovens inocentes.
Seja emprestando beleza, perfume, sabor ou transcendência, uma coisa parece ser certa: as flores, com sua delicadeza, serão sempre poderosos lembretes da efemeridade da vida e da possibilidade infinita de transformação da natureza.
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