sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Ciência explica relação entre serpentes da Amazônia e o imaginário humano

Especialistas em diversas áreas comentam sobre serpentes nas lendas indígenas e ensinam como agir em caso de ataque
MANAUS - O encanto e o medo de serpentes estão no cotidiano dos ribeirinhos da Amazônia. Na floresta, elas são comuns – em forma física ou no imaginário. A ciência explica a relação do homem com estes animais que, como a figura bíblica que seduz Eva a comer o fruto proibido, atraem tanto quanto assustam. Em todo o País, são 60 espécies venenosas. Mas não há o que temer: nas linhas abaixo, o Portal Amazônia explica quais os tipos encontrados na região, como agir em caso de ataque e lista as maiores serpentes da floresta amazônica.

Biólogo formado pela Universidade de Santa Maria e doutor em Biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA/MCTI), Igor Kaefer afirma que as emoções e sentimentos em relação aos animais existem a partir de múltiplas origens. “Tanto o fascínio quanto o medo possuem origens evolutivas, culturais e pessoais. Nossa espécie evoluiu dessa forma e, portanto, nascemos com propensão a temer serpentes”, explica.

Kaefer acredita que o comportamento de distanciamento em relação ao grupo animal contribui com a fobia. “Temos a tendência de temer aquilo que desconhecemos”, afirma. O biólogo destaca ainda a pesquisa da antropóloga Lynne Isbell, proponente da teoria em que células nervosas no cérebro dos macacos respondem automaticamente à ameaça das serpentes. A Teoria das cobras foi baseada em estudos realizados pela antropóloga desde 2006, e resultou na publicação do livro 'The Fruit, the Tree and The Serpent' (O Fruto, A Árvore e a Serpente).

“Várias características definem a espécie humana, inclusive nossas habilidades visuais que evoluíram em resposta ao contato entre populações humanas e serpentes, nossos principais predadores ao longo da história”, explica o doutor em Biologia.

A Lenda da Cobra Grande ou Boiúna – uma das mais conhecidas da Amazônia - saiu das concepções cosmológicas e ganhou a sétima arte com o filme Anaconda, do diretor português, Luis Llosa. No artigo “A Amazônia e o Imaginário das Águas”, a doutora em Antropologia e professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Marilina Oliveira Bessa Pinto, destaca que a Boiúna convive nas concepções dos ribeirinhos principalmente porque habita o fundo dos grandes rios: “Sua aparição é sonora e inusitada, marca o relevo e modifica a topografia, faz surgir os igarapés. Seus olhos lembram duas tochas de fogo.”

Em entrevista ao Portal Amazônia, o doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Antropologia da Ufam, Gilton Mendes, explica que as cobras possuem na narrativa dos povos amazônicos um poder de respeito da natureza. “Elas [as serpentes] têm um poder de destruição, pois as cobras classificam-se como uma das maiores predadoras da Amazônia, ao lado do Gavião Real e da Onça”, relembra. “O povo não conhece o poder do veneno. Para eles, as cobras estão associadas aos espíritos e a cobra seria um elemento que incorpora os espíritos negativos.”

O doutor em Antropologia ainda explica o poder que a cobra exerce nos sonhos dos povos da Região Norte. “Geralmente, quem convive no interior pergunta com o quê você sonhou e se a pessoa responde com cobra ela imediatamente está associada a traição”, relata.

Ataques de cobras

De acordo com o Instituto Butantan - referência em pesquisas e na produção do soro antiofídico -, as jararacas são as responsáveis pelo maior número de ataques de cobras no Brasil – cerca de 85% do total. Cascavéis e surucucus, que atingem o comprimento máximo de 4,5 metros, causam pouco mais de 10% dos acidentes.

No Amazonas, a Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD) contabilizou 405 casos de ataques de animais peçonhentos até outubro de 2013. Os indicadores incluem serpentes, aranhas e escorpiões. Já em 2012, a Fundação registrou 355 casos. A maior ocorrência acontece no período da chuva, geralmente pelo mês de novembro.

O doutor em Biologia pelo Inpa/MCTI, Igor Kaefer, afirma que ocorrem na Amazônia quatro das serpentes que podem causar acidentes. “Essas serpentes são popularmente conhecidas como jararacas, cascavéis, corais-verdadeiras e a surucucu-bico-de-jaca”, acrescenta.

A maior cobra da Amazônia é a sucuri (Eunectes murinus). A espécie pode atingir cerca de 7 metros. Já a segunda maior é a jiboia (Boa constrictor), que pode atingir cerca de 5 metros de comprimento. Kaefer explica que nenhuma das grandes espécies da Amazônia são peçonhentas, ou seja, 'não são capazes de inocular veneno'.

O infectologista e chefe do departamento clínico da FMT-HVD, Antônio Magela Tavares, afirma que 90% das pessoas que procuram a Fundação são mordidas por cobras. “Esse ano aconteceu uma situação atípica, pois os casos se mantiveram constantes em função da cheia permanecer quase por completo neste ano”, destacou.

Magela avalia que a maior parte das serpentes são não-peçonhentas. “A pessoa mordida pela cobra apresenta os sintomas de dor e não cede ao uso de analgésicos, edema progressivo e que pode até sangrar”, explica.

O infectologista aponta que 97% dos casos registrados são de mordidas da espécie Surucucurana (Boltrops Atrox). Magela explica que os outros 3% dos acidentes registrados na Fundação são das espécies surucucu e coral. “O veneno dessa serpente [Surucucurana] tem ação coagulante. Após desencadear o processo de coagulação do sangue, em torno de duas horas todas as proteínas do sangue são consumidas e essa pessoa fica vulnerável a sofrer hemorragia”, relata. Magela ainda enfatiza que qualquer traumatismo que a pessoa possa ter pode levar a uma hemorragia, inclusive interna.

Magela observa que algumas hemorragias aparecem também em outras áreas do corpo, como nariz, olhos e até dentro do Sistema Nervoso Central (SNC). “É difícil perdermos uma pessoa em tratamento, mas em 1999 uma paciente veio a óbito porque teve uma hemorragia dentro do Sistema Nervoso Central e não tivemos como recuperá-la”, relembra.

Atendimento

O pesquisador faz uma alerta para a população ao observar que uma pessoa sofreu de ataque de cobra. “O indivíduo deve ficar em uma posição confortável e ser imediatamente encaminhado para um hospital porque o único tratamento é o soro. Todo município do interior tem um hospital com o soro antiofídico. Aqui em Manaus só a Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado possui o tratamento, pois somos uma unidade de referência”, explica.

O infectologista relata que o soro é produzido em três locais do Brasil, no Instituto Butantan, Fundação Ezequiel Dias e Instituto Vital Brasil. “Para produzir o soro é necessário uma grande infraestrutura com uma fazenda, um serpentário, laboratório, cavalos, cuidado com a alimentação, além de possuir um amplo quadro de biólogos”, salienta. Magela destaca que o Brasil não possui casos de falta de soro. “Menos de 1% das pessoas atacadas por cobras são levadas a óbito. O principal fator é o tempo de atendimento e a população amazônica é muito vulnerável a esse fator. Já atendi pessoas que chegaram quatro dias após a mordida”, avalia.

Magela relembrou a história para a equipe do Portal Amazônia sobre um senhor que perdeu a vida após a mordida de uma cobra. “Ele foi mordido no braço, ao se levantar caiu em cima da cobra e foi novamente mordido por ela. Ao chegar aqui ele estava com um edema extremamente grave, pois aplicou um torniquete no braço e a infecção foi generalizada”, relata.

Apaixonados por cobras

Ao mesmo tempo em que há quem tenha repulsa pelas serpentes, há verdadeiros apaixonados e defensores destes animais. É o caso do designer e estudante de Arquitetura e Urbanismo, Fabrício Araújo. Ao Portal Amazônia, o estudante conta que desde pequeno tinha verdadeiro fascínio por cobras, lagartos e aranhas. “Criei uma Boa Constrictor Imperator, ou Jiboia Branca. O nome dela era Morgana”, relatou.

Araújo explica que sempre procurou na Internet como poderia adquirir uma serpente para criar, mas não tinha condições de comprar. “Ganhei a Morgana de uma amiga que trabalhava no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ela me presentou um pouco antes do meu aniversário no dia 31 de dezembro. Morgana tinha somente uma semana de vida e era legalizada.Tiver que assinar termos de responsabilidade sobre a tutela”, salienta.

O estudante de Arquitetura e Urbanismo disse que o animal morava em um viveiro de vidro, onde tinha água e uma pedra aquecida. “Mas quando ela ficou um pouco maior ficava solta no meu quarto, quando eu ia alimentá-la colocava no viveiro e depois deixava por algumas horas do dia em um pé de acerola que tinha em casa”, relata.

Araújo explica que a família tinha receio de criar uma cobra em casa. “Eu tinha um sobrinho de sete anos, na época, e meus pais e os pais dele sempre tiveram medo, mas meu sobrinho não. Desde pequeno eu o acostumei com a presença da Morgana. Ele até segurava às vezes. Para o desespero do resto da família”, brinca.

O estudante acredita que a ignorância faz com que as pessoas tenham essa reação de repulsa com as serpentes. “São animais lindos e pacatos, só atacam aquilo que comem. Nunca fui atacado. Aliás, só uma vez porque estava com um ratinho na mão e não prestei atenção ela deu o bote no rato e acertou minha mão. Na hora ardeu um pouco mais nada além disso. Quem nunca brincou com um gato e saiu arranhado?”, questiona Araújo.

Fabrício perdeu o animal de estimação ano passado e, após a morte, teve que levar na sede o Ibama para procedimentos legais, mas informa que sente vontade de criar outra cobra. “Tenho muita vontade sim, pois são animais que ao contrário do que se pensam criam relação entre criador e animal. São, de certo modo, bem fáceis de criar, não dão trabalho algum, pois comem pouco, não precisam de muito espaço, não são venenosos e vivem muitos anos e são lindos. Recomendo”, acrescenta.

Orientações ao comprar

O Instituto Butantan informa que a legislação atual não permite a entrada e comercialização de serpentes exóticas em território brasileiro. Nos últimos anos as exóticas que entram no Brasil são de forma ilegal. Da mesma forma que as serpentes da fauna brasileira "saem" do Brasil.

O biólogo e diretor do Museu Biológico do Instituto Butantan, Giuseppe Puorto, informa que o grande problema é que as pessoas compram as cobras jovens e esquecem que elas vão crescer. “Uma jiboia pode alcançar cerca de 4 metros e aí o grande problema é o que fazer com um animal tão grande”, observa.

Puorto explica que uma cobra precisa de espaço para se movimentar. “Teoricamente para um animal cativo viver bem é preciso ter em mente: cada meio metro de cobra 1 metro quadrado de área útil”, detalha.

Ao adquirir uma serpente o biólogo orienta que seja comprada em local credenciado, com nota fiscal e chip. “É uma questão delicada e de responsabilidade. Uma cobra, mesmo PET, sem o menor aviso pode morder. Nunca se deve esquecer que uma serpente pet é um animal silvestre com comportamento muito diferente de um cão ou de um gato”, analisa.

Data: 02.01.2013

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